Ocultação de crime

José Horta Manzano

Chamada do Estadão, 22 jul° 2016

Chamada do Estadão, 22 jul° 2016

Na máfia, essa atitude é conhecida como omertà(*). Criminoso apanhado pela Justiça mente para cobrir e proteger um superior. Faz parte dos códigos da bandidagem.

Em terras civilizadas, isso se chama não denunciação de crime (ou ocultação de crime ou ainda obstrução de Justiça), ato que costuma ser reprimido e punido pela lei. Na hipótese mais benigna, será considerado fator agravante de outros crimes. Como reagirão os juízes de Curitiba?

(*) Nota linguística
Omertà é palavra presente em dialetos do sul da Itália, especialmente em napolitano. É a maneira local de dizer umiltà (= humildade). A Lei da Humildade é outro nome da Lei do Silêncio. Segundo ela, bandido não tem o direito, em nenhuma hipótese, de denunciar comparsa. É obrigado a calar-se, evitando, assim, que o companheiro seja apanhado pela Justiça.

Na mafia siciliana, na camorra napolitana e na ‘ndrangheta calabresa, quem entregar companheiro tem o destino selado: mais cedo ou mais tarde, será despachado desta para melhor.

Na organização criminosa que se apoderou de nosso andar de cima, porém, as regras são mais flexíveis: a Lei do Silêncio transformou-se na Lei do Salve-se Quem Puder. Afinal, o brasileiro é, antes de tudo, cordial. Ou não?

Bunker de resistência

José Horta Manzano

O Artigo 92 da Constituição suíça trata dos serviços postais e de telecomunicação. Determina que a Confederação garanta existência e funcionamento de serviço de correios e telecomunicações, em todas as regiões do país, a preços razoáveis.

A lei suíça ‒ a começar pela Constituição ‒ vale-se frequentemente do conceito de «razoabilidade». «Prazo razoável», «valor razoável», «volume razoável» são expressões recorrentes em leis e regulamentos. Não se tem notícia de contestação quanto à abrangência do conceito. Razoável é tudo aquilo que for… razoável, ora! O bom senso cuida da questão.

Constituição 4Vasculhei a Constituição brasileira: o conceito de razoabilidade está ausente. Não conheço todas as leis do país ‒ será que alguém conhece? Assim mesmo, é lícito imaginar que não se costuma deixar a cada um a liberdade de definir o que é razoável e o que não é. Prazos, valores e volumes costumam ser bem especificados, tim-tim por tim-tim. Se assim não for, é briga programada.

O rito da destituição do presidente da República é impreciso. A Constituição estipula seu afastamento preventivo, por até 180 dias, à espera de que o Senado defina seu destino. A Lei Maior, no entanto, não desce a detalhes nem diz como deve decorrer esse período de afastamento. A lei complementar, velha de 65 anos, é muda sobre pontos importantes.

É aí que deveria entrar em cena o conceito de razoabilidade. No entanto, tendo sido tradicionalmente infantilizado, nosso povo se mostra incapaz de distinguir, sozinho, entre a legitimidade e a impertinência de certos atos da presidente ora afastada. Na ausência de lei detalhada, o jeitinho malandro entra em ação.

Neste momento, nossa presidente, fisicamente apartada do Planalto, age como bem entende. Vida privada é problema dela, sobre isso não se discute. Por seu lado, ação política, ainda que provinda de presidente afastada, importa à nação. Em nova afronta a uma democracia cujas bases já têm sido tão atacadas nos últimos 13 anos, dona Dilma tem ousado dar entrevistas a jornalistas estrangeiros, nas quais se apresenta como vítima de «golpe de Estado».

Entrevista de Dilma Rousseff à Rádio Televisão Russa Para assistir, clique sobre a imagem

Entrevista de Dilma Rousseff à Rádio Televisão Russa
Para assistir, clique sobre a imagem

O acinte às mais altas instituições brasileiras é insuportável. Mais grave é estar sendo perpetrado pela chefe do Executivo, ainda que esteja de molho. Protegida por um «bunker de resistência» custeado por todos nós, essa truculência contra o Estado brasileiro é intolerável.

Não há lei sobre a matéria? Que se legifere! Não estão fixados limites? Que sejam fixados! Nenhuma lei pode retroagir? Que a regulamentação passe a valer no dia de sua promulgação. O essencial é que seja rapidamente delimitado, nos conformes, o que um presidente afastado pode e o que não pode fazer.

Presidente suspenso perde o direito, enquanto durar a suspensão, de exprimir opiniões políticas em público ‒ essa é minha maneira de ver. Do jeito que está, virou bagunça. A inação do Congresso é incitação para a piora do cenário.

Interligne 18c

Registro complementar
Estamos perigosamente escorregando para um estado de anomia, de ausência de leis e de regras. Periga desembocar na desorganização e na anarquia.

Pirotecnia

José Horta Manzano

Bronca 2Desde que o mundo é mundo, todos sabemos que as grandes decisões, aquelas realmente capazes de mudar o curso da história, não são tomadas em reuniões sob a luz dos holofotes. Não precisa ter seguido curso por correspondência de espionagem para entender que o segredo é a alma do negócio. Faz séculos que todo comerciante conhece o caminho. Cochicho de corredor vale mais que pronunciamento diante de uma selva de microfones.

Numa operação tão espalhafatosa quanto esquisita, a PF chamou câmeras para testemunhar apreensão de bens do Collor. Foi surpreendente por várias razões. Apreender bens e deixar o dono solto é estranho. Anunciar a notícia aos quatro ventos é mais bizarro ainda. Fica no ar desagradável impressão de pirotecnia, de cortina de fumaça para impressionar a galeria e para ocultar fatos mais estorvantes.

Se o objetivo era impressionar (e pressionar) figurões políticos, os mentores da operação merecem nota dez: semearam desespero. Quem deve, teme. Muitos devem, logo muitos temem.

Bronca 1Em reação vexaminosa e reveladora, nosso guia precipitou-se para confabular com a atual presidente e aconselhá-la. Não se tem notícia de antigos presidentes que se tenham permitido levar, pessoalmente e de vontade própria, conselho ao ocupante do trono. Se aconteceu, ficou nas sombras.

Muito a seu hábito, o antigo mandatário não se contentou com discreta reunião, daquelas em que realmente se decidem rumos. Deixou que detalhes das discussões «vazassem». Ficamos sabendo que sua antiga excelência esbravejou – ora vejam só – com dona Dilma, nossa orgulhosa presidente.

Bronca 3«Você não tem que ficar falando de Lava a Jato!», «Vovê tem de governar, ir pra a rua!» – são expressões desabusadas do pesado esbregue que nossa altiva presidente teve de engolir do guru. O raciocínio peculiar do ex-presidente não evoluiu. Em sua visão de mundo, basta deixar de mencionar a realidade para fazê-la desaparecer. Segundo relato do jornal, a conversa foi «cordial». Permitam-me duvidar.

Pode-se classificar o episódio como encenação para a galeria ou como expressão de terror pânico. Fico com esta última explicação. De toda maneira, reunião decisória é que não foi. Também, pudera: com a água chegando ao nível da cintura, está a cada dia mais próxima a hora do “abandonem a nave e salve-se quem puder”.

Dignidade démodée

José Horta Manzano

Petrobras 3Nestes tempos bicudos de valores pervertidos e de salve-se quem puder, vez por outra surge um fato pra ajudar a levantar o moral.

Destoando da enxurrada de calamidades, uma notícia honrada apareceu mês passado. Em outros tempos, seria encarada como banal, evidente. Já em épocas degeneradas como a atual, merece destaque.

Mônica Bergamo, articulista da Folha de São Paulo, informou – em letrinhas miúdas – que familiares de dona Zilda Arns tinham polidamente declinado de uma homenagem que a Petrobrás se preparava a prestar à ilustre médica falecida tragicamente cinco anos atrás no terremoto de Porto Príncipe. A petroleira se propunha a dar, a um dos navios da Transpetro, o nome da médica sanitarista.

Zilda ArnsNuma educada resposta, a família renunciou à homenagem. Como justificativa, argumentou que só permitia que o nome de dona Zilda fosse usado em eventos ou objetos cujo objetivo não fosse comercial. Não era, evidentemente, o caso do barco da Petrobrás, portanto…

Andamos todos tão acostumados a ver gente se apoderando do que não é seu sem pedir licença que ficamos surpreendidos com tal demonstração de recato fora de moda.

O que costumava ser regra passou a ser exceção cada dia mais rara. Vamos torcer para que atitudes como essa se multipliquem.

Só para terminar: diante da recusa, a Petrobrás tascou na embarcação o nome da falecida escritora Zélia Gattai, mulher de Jorge Amado.