O triste destino dos intubados

José Horta Manzano

O Instituto de Pesquisa Poder360 expôs estes dias a elevada taxa de mortalidade dos brasileiros que têm de sofrer intubação em decorrência da covid-19. A letalidade entre os intubados no Brasil foi comparada com a de outros quatro países populosos: Itália, Alemanha, Reino Unido e México.

Constata-se que a mortalidade dos intubados brasileiros é superior à de britânicos e mexicanos, e muito superior à de alemães e italianos. Segundo o comunicado do instituto, as razões pelas quais o quadro é mais grave no Brasil são as seguintes:

1. UTIs lotadas;
2. profissionais sem experiência de intubação;
3. burnout das equipes;
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
4. falta de equipamentos;
5. centros médicos sem condições de atendimento;
6. quebra de protocolos de boas práticas.

Todas essas razões parecem válidas. Mas uma coisa não pode ser esquecida: a pandemia não é exclusividade brasileira. O coronavírus pegou o mundo todo de surpresa. Nenhum país estava preparado para lidar com ela. Em nenhum lugar do mundo, hospitais têm pessoal de reserva, treinado para intubação, nem equipamentos sobrando. O esgotamento nervoso (que hoje convém chamar burnout) atingiu todas as equipes, no mundo todo. As UTIs lotaram na Itália, no Reino Unido, no México. Na Europa, pacientes hospitalizados chegaram a ser exportados de um país a outro.

Portanto, as três primeiras razões invocadas atingem o mundo todo. Não sendo especificidade brasileira, não explicam a disparidade no número de intubados mortos.

As três últimas justificativas, sim, aplicam-se particularmente a nosso país. Aqui está a descrição de cada uma delas.

Centros médicos sem condições
Esse problema não começou com a explosão da covid. E, infelizmente, vai durar mais que a epidemia. É vício antigo e recorrente, que vem de muito antes do atual governo. Resulta de uma extravagância brasileira: a de contar com dois circuitos paralelos de saúde, um público e um privado. Trocando em miúdos, a rede pública, financiada por todos mas utilizada apenas pelo povão, é descurada pelo poder público, cujos membros contam com outros canais de atendimento hospitalar.

Quebra de protocolos
Protocolos são feitos para serem respeitados. Só devem ser quebrados em raríssimos casos de força maior. Acontece que a proverbial indisciplina que rege nosso comportamento transforma casos corriqueiros em casos de força maior. Assim, a quebra de protocolos passa a ser corriqueira. O resultado é a desordem.

Falta de equipamentos
Quando estourou a epidemia, nenhum país contava com suficiente quantidade de equipamentos. Em outras terras, o poder público se apressou em encomendar respiradores, máscaras, vacinas, seringas e equipamentos para UTI. O governo brasileiro optou por negar a gravidade da pandemia. Não agiu e preferiu pagar pra ver. Viu.

O exemplo vem de cima
Uma última razão ajuda a explicar o assustador quadro de mortandade dos intubados brasileiros. É talvez o fator que mais pesou. Desde o começo da epidemia, dia sim, outro também, doutor Bolsonaro fez pouco caso da doença, incentivou aglomerações, zombou de máscaras, trovejou contra a distanciação social, combateu a vacinação.

Nem todos os brasileiros são dotados de bom senso. Muitos acreditaram em nosso Napoleão de hospício e acreditaram poder fazer como ele. Em vez de procurar atendimento hospitalar desde o começo da doença, correram atrás de cloroquina e outras drogas milagrosas que compõem o “tratamento precoce” do doutor presidente. Quando, finalmente, foram hospitalizados, já era tarde.

Resumindo, constata-se que a diferença na taxa de mortandade entre o Brasil e os demais países não se explica por fatores como UTIs lotadas, esgotamento nervoso do pessoal, falta de experiência de intubação – que são problemas comuns a todos. A elevada mortandade dos infelizes que tiveram de ser intubados no Brasil prende-se a duas causas principais: a falta de equipamentos e a ingenuidade dos que, tendo acreditado na jactância do presidente, só procuraram o hospital quando a doença já se havia instalado firme e forte.

A tristeza maior é entender que, tivesse o governo federal agido com bom senso e boas intenções, esse morticínio poderia ter sido mitigado. Ora sabemos que, no Brasil, intubação é praticamente sentença de morte.

Números

Eduardo Affonso (*)

Noêmia se preparava para sair do cemitério, amparada pelos filhos, quando Moacirzinho a puxou pelo braço.

– Mãe, tá ouvindo?

Soluçando e fungando, Noêmia não ouvia nada.

– Mãe, escuta.

Todos pararam. Zirlene, que não tinha largado o celular um minuto durante todo o sepultamento, tirou o fone do ouvido e também ouviu.

– O barulho. Lá embaixo.

Havia mesmo um tum tum tum abafado, vindo debaixo do montinho de terra fofa.

Tudo bem que não tinha havido velório, que Moacir fora entregue envelopado e ninguém pudera ver o corpo, mas…

Começou o corre-corre, o escava-escava. O coveiro com a pá, Moacirzinho e o os primos e tios, com as mãos. O tum tum tum cada vez mais forte, até que chegaram ao caixão, abriram-no, puxaram o fechecler do saco plástico e lá estava Moacir, de olhão arregalado.

Noêmia não sabia se desmaiava de emoção ou de pavor.

– Papai! – contra todas as recomendações médicas, era Moacirzinho que se jogava sobre o corpo do pai, dando como no reencontro o abraço que não tinha podido dar de despedida.

Içaram Moacir enquanto Noêmia recuperava os sentidos.

Claro que estavam todos perplexos e felizes, mas era nítido que havia algo errado com Moacir.

Ele não respirava.

– Pai, você tá bem?

Moacir não respondeu.

Valdemar apalpou o irmão e declarou:

– Ele está duro.

Rigor mortis – pontificou o coveiro, gastando o único latim que sabia.

Zirlene, de celular em punho, decifrou o mistério.

– Foi o governo. Papai não está mais morto. Ele e mais 352 foram ressuscitados na recontagem.

Ficaram todos imóveis. Moacir mais imóvel que os outros. Quiseram levá-lo para casa, mas ele não andava.

Rigor mortis, eu falei – repetiu o coveiro. As juntas não dobram.

Carregaram-no até o Uno, mas logo viram que iam precisar de uma Kombi ou, quem sabe tivessem que levá-lo em pé, de ônibus.

Moacir não só não respirava como não piscava, e só parava em pé porque Valdemar e Moacirzinho o seguravam.

Noêmia pensava num jeito de desmaiar de novo e acordar apenas quando tudo aquilo tivesse acabado.

– Gente – falou Zirlene, ainda mexendo no celular – parece que o Globo, a Folha e o Estadão estão fazendo uma contagem paralela dos óbitos e…

No meio da frase, Moacir caiu para trás. Mais duro do que antes.

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.

Viagem astral educativa

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Ultimamente tenho tido experiências astrais muito impressionantes. Claro que eu poderia chamá-las de sonhos mas algo me diz que são mais do que isso. Os indícios são muitos. Em primeiro lugar, viajo por lugares totalmente desconhecidos mas que, nem por isso, podem ser descritos como menos realistas do que os que conheço. Nesses lugares, encontro pessoas que também ignoro. Algumas, mesmo assim, conversam comigo como se fôssemos velhos amigos.

by Antonio Carbona, desenhista francês

by Antonio Carbona, desenhista francês

Outras vezes o cenário e os eventos ocorridos durante essas viagens são surrealistas. Já sonhei, por exemplo, com um enorme gato flutuando pelos céus como se fosse uma pipa feita de papel-arroz, enquanto minha mãe, já falecida, pilotava um pequeno avião e me dizia que eu precisava esperar um pouco porque ela estava se desviando dos obstáculos. De outra, experimentei a angustiante sensação de estar subindo a pé uma ladeira impossível de ser escalada sem o uso de cordas e ganchos. Sentia a textura do asfalto, o cheiro, o calor do meu corpo e podia visualizar outras pessoas a meu lado, inclusive uma criança, transpirando na mesma tentativa. Já visitei em sonho a “Escola do Não Ver”, aparentemente localizada em um país do Oriente, onde humanos e animais de várias espécies se destruíam, alinhadas em blocos.

Há poucas semanas, acordei me sentindo muito cansada e me ouvi dizendo a mim mesma: “É claro que você está cansada. Afinal, você foi visitar o mundo dos mortos”. Arrepiada, rejeitei a ideia não só por não ter restado nenhum sinal de minha passagem por outro universo mas também porque me desagrada a possibilidade. Já tive experiências de contato astral com pessoas mortas e elas me deixaram uma sensação de inutilidade da tentativa de comunicação, já que nada novo me foi revelado ou acrescentado ao que eu já sabia.

Tive inclusive, desde minha infância, experiências premonitórias. No dia em que minha avó morreu, acordei assustada e olhei em volta do quarto procurando pelas razões da minha angústia. Em frente à minha cama havia uma cadeira dessas antigas, de braço e espaldar alto. Minha avó estava sentada nela e me sorria, tamborilando levemente com os dedos no braço da cadeira, como era seu hábito, como se me dissesse: “Relaxe, está tudo bem, eu estou bem”. Foi uma sensação tão doce e pacificadora que tudo me pareceu normal e eu voltei a dormir.

Sonho 1Agora vem a experiência mais perturbadora a que chamo de educativa. Há poucos dias, acordei com uma palavra na mente: “exegese”. Só isso, mais nada. Nenhuma imagem, nenhuma sensação física, nenhuma explicação. Intrigada, levantei da cama, peguei o dicionário e procurei aflita o significado. Não me lembrava dele, embora já conhecesse a palavra. Também não conseguia recordar do momento em que tinha visto essa palavra pela última vez – e era isso o que mais me intrigava. No dia anterior ela certamente não tinha frequentado meu cérebro. Reproduzo a seguir o texto do dicionário, antes de continuar navegando pelo tema das viagens astrais: “Comentário ou dissertação para esclarecimento ou minuciosa interpretação de um texto ou de uma palavra [aplica-se de modo especial em relação à Bíblia, à gramática, às leis]. Por extensão, explicação ou interpretação de obra literária ou artística, de um sonho, etc.”

Quase enfartei. Traduzindo, minha viagem astral me propunha um desafio: antes de se deixar enredar em imagens, sons, odores, sensações corpóreas e quejandos, é preciso enfocar as possíveis interpretações para os eventos que percorrem seu universo mental. Bingo! Tal qual um Freud redivivo, eu me via às voltas não com a interpretação de sonhos mas sim com a interpretação de viagens astrais. Meu espírito – ou minha alma, se preferirem – estava sedento de novas experiências, novos conceitos, novos temas. Ansiava por estabelecer contato com pessoas e seres que ainda não faziam parte do meu círculo de relações, estava carente de frequentar outros universos. Em resumo, tudo funcionava como uma espécie de compensação para a chatice e mesmice de minha vida cotidiana, daí o cansaço.

Sonho 2As interpretações religiosas do catolicismo e do espiritismo não se aplicavam às minhas sensações e, por isso, não convenciam. As interpretações da psicologia mecanicista sobre restos diurnos também eram frágeis demais para permitir o descortinamento do meu universo mental. Se não se tratava de nenhum surto psicótico nem de possessão demoníaca, era preciso buscar novas ilações.

Lembrei-me de repente de um verso de Fernando Pessoa: “De que serve uma sensação se há uma razão exterior para ela?” E, na sequência, dizia ele: “porque a alma humana é um abismo”. É isso, concluo agradecida. Não há exegese conhecida para os desvarios da minha alma e, ainda assim, como é bom me lançar nesse abismo de peito aberto e sem rede de segurança!

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.