Bunker de resistência

José Horta Manzano

O Artigo 92 da Constituição suíça trata dos serviços postais e de telecomunicação. Determina que a Confederação garanta existência e funcionamento de serviço de correios e telecomunicações, em todas as regiões do país, a preços razoáveis.

A lei suíça ‒ a começar pela Constituição ‒ vale-se frequentemente do conceito de «razoabilidade». «Prazo razoável», «valor razoável», «volume razoável» são expressões recorrentes em leis e regulamentos. Não se tem notícia de contestação quanto à abrangência do conceito. Razoável é tudo aquilo que for… razoável, ora! O bom senso cuida da questão.

Constituição 4Vasculhei a Constituição brasileira: o conceito de razoabilidade está ausente. Não conheço todas as leis do país ‒ será que alguém conhece? Assim mesmo, é lícito imaginar que não se costuma deixar a cada um a liberdade de definir o que é razoável e o que não é. Prazos, valores e volumes costumam ser bem especificados, tim-tim por tim-tim. Se assim não for, é briga programada.

O rito da destituição do presidente da República é impreciso. A Constituição estipula seu afastamento preventivo, por até 180 dias, à espera de que o Senado defina seu destino. A Lei Maior, no entanto, não desce a detalhes nem diz como deve decorrer esse período de afastamento. A lei complementar, velha de 65 anos, é muda sobre pontos importantes.

É aí que deveria entrar em cena o conceito de razoabilidade. No entanto, tendo sido tradicionalmente infantilizado, nosso povo se mostra incapaz de distinguir, sozinho, entre a legitimidade e a impertinência de certos atos da presidente ora afastada. Na ausência de lei detalhada, o jeitinho malandro entra em ação.

Neste momento, nossa presidente, fisicamente apartada do Planalto, age como bem entende. Vida privada é problema dela, sobre isso não se discute. Por seu lado, ação política, ainda que provinda de presidente afastada, importa à nação. Em nova afronta a uma democracia cujas bases já têm sido tão atacadas nos últimos 13 anos, dona Dilma tem ousado dar entrevistas a jornalistas estrangeiros, nas quais se apresenta como vítima de «golpe de Estado».

Entrevista de Dilma Rousseff à Rádio Televisão Russa Para assistir, clique sobre a imagem

Entrevista de Dilma Rousseff à Rádio Televisão Russa
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O acinte às mais altas instituições brasileiras é insuportável. Mais grave é estar sendo perpetrado pela chefe do Executivo, ainda que esteja de molho. Protegida por um «bunker de resistência» custeado por todos nós, essa truculência contra o Estado brasileiro é intolerável.

Não há lei sobre a matéria? Que se legifere! Não estão fixados limites? Que sejam fixados! Nenhuma lei pode retroagir? Que a regulamentação passe a valer no dia de sua promulgação. O essencial é que seja rapidamente delimitado, nos conformes, o que um presidente afastado pode e o que não pode fazer.

Presidente suspenso perde o direito, enquanto durar a suspensão, de exprimir opiniões políticas em público ‒ essa é minha maneira de ver. Do jeito que está, virou bagunça. A inação do Congresso é incitação para a piora do cenário.

Interligne 18c

Registro complementar
Estamos perigosamente escorregando para um estado de anomia, de ausência de leis e de regras. Periga desembocar na desorganização e na anarquia.

Amigos do alheio e Força Pública

José Horta Manzano

Assalto 1Quarta-feira, importante jornal de Paris fez análise da violência e da criminalidade que se impõem como regra de vida no Brasil. O quotidiano Libération, de orientação socialista, preocupa-se com o que está por vir daqui a um ano, quando o Rio hospedará os Jogos Olímpicos de verão.

A reportagem começa relatando o ataque de que foi vítima, faz algumas semanas, um ciclista francês de 19 anos na orla da Lagoa Rodrigo de Freitas, justamente onde se disputarão algumas provas dos JOs.

JO 2016Menciona, em seguida, menino de 14 anos esfaqueado mês passado por uma malta de jovens que lhe surrupiaram a bicicleta. Também lembra as facadas desfechadas domingo passado numa turista vietnamita cuja única culpa era ter atravessado meio mundo para apreciar a Cidade Maravilhosa.

O caso mais recente fecha a lista macabra. Trata-se do cardiologista assassinado na orla da lagoa por ogros imbecis interessados em subtrair-lhe a bicicleta. O artigo traz declaração de figurões, prefeito, governador. Cada um tem solução pronta na algibeira: adiantamento da idade da maioridade penal, intensificação do policiamento, luta contra desigualdades sociais, instalação de unidades ditas ‘pacificadoras’ em favelas.

Rio de Janeiro 2Conjecturo. Não tenho estatísticas criminais de cinquenta anos atrás. Mas posso assegurar meus leitores mais jovens que, meio século atrás, não nos invadia o sentimento de insegurança hoje onipresente.

Crimes passionais, sempre houve. Faziam a euforia de jornais populares. Na época, quem quisesse se informar só tinha o rádio e a imprensa. Brincando com coisa séria, a gente dizia que, se aqueles jornais sensacionalistas fossem espremidos, sairia sangue.

Ladrão 3Latrocínio era acontecimento relativamente raro. Furtos eram bem mais frequentes que roubos. «Amigos do alheio» – como eram chamados os ladrões – tinham comportamento refinado. Para começar, não costumavam andar armados. Bater carteiras era técnica requintada: finório, o punguista profissional aliviava a vítima de seus pertences sem ser notado por ninguém. De tirar o chapéu.

Policiamento sempre houve – nem mais nem menos que hoje. Os soldados da Força Pública, como dizíamos, não nos pareciam mais numerosos que os policiais atuais. A desigualdade social acho que era até mais acentuada que hoje: pobre era pobre, rico era rico, sem nada no meio.

O que terá mudado então? Por que é que o sentimento de vulnerabilidade é mais agudo hoje? Não tenho a resposta na algibeira. A meu ver, o problema vem de longe e, do jeito que as coisas vão, tende a agravar-se.

Goste-se ou não, parece-me evidente: a grande culpada é a sociedade brasileira, tomada como um todo. O relaxamento que começou, tímido, na efervescência dos anos 1970, não foi detectado a tempo pelos que seguram as rédeas da nação. As novas gerações foram abandonadas ao deus-dará. Medidas de formação e de orientação, que deveriam ter sido implementadas desde os bancos escolares, não o foram. O relaxamento gerou a permissividade, que descambou para a leniência. Estamos com um pé no «liberou geral».

JO 2016 2Aumentar o número de policiais, adiantar a maioridade penal, construir cadeias suplementares – nenhuma dessas medidas, isoladamente, vai adiantar. O sentimento de pertencimento a uma sociedade tem de ser incutido no povo brasileiro. Não é tarefa simples nem rápida. Mas toda longa caminhada começa com o primeiro passo.

Não há outra saída. A perdurar o atual vale-tudo, a sociedade brasileira não sobreviverá. Faz tempo que a saúva deixou de ser a maior ameaça. País onde criminosos condenados são louvados como «heróis do povo» e contraventores são eleitos ministros da Suprema Corte encaminha-se, célere, para a anomia. Ou bagunça total, se preferirem.

Os problemas que não temos

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 3 jan° 2015

Farofa 1Entrada de ano é hora de balanço. Todos nós, coração amolentado, olhamos pra trás, analisamos nossos próprios feitos e juramos de pés juntos fazer mais caprichado no ano que entra. Junto com o peru, a farofa e a troca de presentes, o exame de contrição faz parte do ritual da passagem de ano.

Canais de tevê, jornais, revistas e portais fazem questão de propor retrospectivas do ano que se foi. Pouca atenção se dá a acontecimentos positivos. Em compensação, é impressionante o que se vê de desastre e de desgraça. Compreende-se: coisa ruim vende melhor.

É verdade que, no Brasil, 2014 foi um ano e tanto. Eleições, seca saariana, vexame na Copa, violência endêmica, corrupção aos borbotões assustaram. Os problemas que temos são pesados. Às vezes nos fica a impressão de estarmos vivendo no pior país do planeta. Será mesmo?

Nestes dias flutuantes que separam passado e futuro, proponho darmos uma espiada no quintal do vizinho. Vamos, por um momento, esquecer nossas mazelas e imaginar a aflição de outros povos.

Manif 11Os Estados Unidos, símbolo de desenvolvimento e sucesso, estão sacudidos por distúrbios raciais. Ressurgem os espantalhos que imaginávamos falecidos com o último dos hippies.

Serra Leoa e outros territórios da África Ocidental choram seus mortos. Estão sendo dizimados por severa epidemia, mal terrível contra o qual pouco ou nada se pode fazer.

Desvario na condução da economia mergulhou nossa vizinha Venezuela no desabastecimento e na hiperinflação. O país resvala para a anomia.

Todos os Estados da orla do Pacífico vivem na permanente angústia de terremoto ou tsunami, catástrofes que podem irromper sem dizer água vai.

Imigração 4Empurradas pela miséria, populações inteiras arriscam a pele na temerária travessia do Mediterrâneo a bordo de embarcações precárias em busca de vida melhor na Europa. Esse fluxo continuado de infelizes aporta na Itália, onde acaba gerando fortes tensões que esgarçam o tecido social.

Os países produtores de petróleo do Oriente Médio, aqueles cuja única riqueza repousa na extração do ouro negro, sabem que a qualquer hora a fonte vai secar. Imagina-se a apreensão criada por essa perspectiva.

As duas Coreias vivem situação paradoxal. A do norte passa fome. A do sul vive há 60 anos na apreensão de um ataque do irmão desorientado.

Os iranianos pelejam contra o olhar reprovador do resto do mundo. Além de serem vistos com desconfiança, sofrem sanções que lhes sufocam a economia.

Já faz meio século que nossos vizinhos colombianos vêm tentando varrer do país o estigma da narcoguerrilha. Sem sucesso até agora.

Guerrilha 1Na França, imigração maciça oriunda das antigas colônias africanas tem semeado crescente discórdia entre franceses «de raiz» e recém-chegados. Essa cizânia é alimento para correntes políticas populistas e neonazistas, que ganham adeptos a cada dia.

Os países da África subsaariana, já castigados pela pobreza endêmica e pela natureza hostil, ganharam mais um inimigo. Grupos terroristas elegeram domicílio na região, que se tornou, de facto, território sem lei.

A queda vertiginosa do preço do petróleo, aliada às sanções aplicadas por países ocidentais, reduziu dramaticamente as rendas do Estado russo. Refletindo a desesperança, a moeda nacional perdeu boa parte de seu valor. Como de hábito, quem sente o baque é o povo.

Espanha, Turquia, Ucrânia, China são dilaceradas por crônicos movimentos separatistas – explícitos ou latentes. O estado insurreccional pode até, por momentos, se aquietar. Mas é calmaria que não ilude: por baixo da brasa, o fogo cochila. Um sopro basta para reavivá-lo e incendiar o país.

E o Brasil, bonito por natureza, como é que fica? Temos nossos problemas, sim. Seria hipocrisia negá-lo. No entanto, sopesando os males que corroem outros países, impõe-se o óbvio: nossos problemas têm solução.

Tsunami 1De fato, não dependemos da benevolência de governos estrangeiros, nem da descoberta de vacina milagrosa, nem da clemência da natureza. Não temos guerrilhas a combater, nem separatistas a derrotar, nem inimigos a temer. A faca, o queijo, a responsabilidade e a chave do futuro estão unicamente em nossas mãos – bênção de que outros povos não dispõem!

Quem quer mudar, muda. Quem não quer, reclama. Que tal incluir, nas intenções de fim de ano, a mudança de atitude? Que tal arregaçar as mangas e meter mãos à obra? A recuperação do País requer empenho de todos. Temos de salvar o que ainda pode ser salvo. E é bom acharmos logo solução contra a dissolução de nossa sociedade. Feliz ano-novo!