Vem aí o Sete de Setembro

José Horta Manzano

Já faz semanas que os franceses são obrigados a apresentar um “pass sanitaire” (passaporte vacinal) para entrar em bares, restaurantes, teatros, salas de concerto, museus e outros lugares públicos. Para obter o documento, é preciso dar prova de estar vacinado contra a covid ou de ter contraído a doença e estar curado. Há também raros casos em que, por razões médicas, o cidadão não pode tomar a vacina.

Desde que a obrigação foi anunciada, os franceses voltaram a praticar um de seus esportes preferidos: a tradicional passeata dos sábados. O ambiente costuma ser familiar, uns com faixas e cartazes, outros escandindo slogans. Todos exigem que lhes seja devolvida a liberdade de ir e vir, de entrar onde quiserem, sem ter de tomar essa vacina nem apresentar esse “maldito passaporte”, que consideram imposição de um governo tirânico.

Eu estava ouvindo hoje a fala do dirigente de uma região do país, a quem perguntaram o que gostaria de dizer a esses manifestantes que, sábado sim, outro também, saem às ruas pra manifestar desacordo e rebeldia. Sua explicação me pareceu cheia de bom senso. Aponto aqui os pontos principais.

Viver em sociedade implica aceitar abrir mão de certos direitos individuais em prol do bem coletivo. Por exemplo, todo adulto tem direito de se embriagar, à condição de depois renunciar a dirigir. Essa regra é, sem dúvida, uma restrição ao direito de ir e vir, mas foi imposta para proteger a maioria.

Com a vacina, dá-se o mesmo. A vacinação individual serve para proteger a sociedade como um todo. Na região administrada pela autoridade que citei, 7 mil manifestantes têm saído em passeata toda semana. Enquanto isso, entre 40 mil e 50 mil cidadãos têm se apresentado toda semana para a vacinação. Esses que tomam a vacina, embora quietos, sem faixa e sem slogans, também estão se manifestando!

Isso é democracia. Sondagens indicam que 67% dos franceses são favoráveis ao passaporte sanitário, ou seja, 2 em cada 3 cidadãos. Apesar de barulhenta, a minoria não pode impor sua vontade à maioria. Esse documento não foi inventado por capricho de uma autoridade qualquer; é fruto da decisão dos eleitos do povo – é a lei. No dia em que a minoria impuser sua vontade no grito, já teremos deixado de viver em democracia.

Acho que a lição cai bem para nosso Dia da Pátria. Quem decide é a urna. Como não dá pra votar todos os dias, as pesquisas fazem as vezes. Todas elas são claras e mostram de que lado está a maioria no Brasil.

Então, o que é que fazemos? Entregamos a vitória aos que berram mais alto?

Observação
Repare num detalhe revelador. Em países mais adiantados, não viria à cabeça de ninguém sair em “carreata” ou “motociclata”. Em Paris, tem disso não. Vai-se a pé, sem pensar duas vezes.

A divisão da população em classes superiores e inferiores é especialidade de sociedades mais atrasadas. E é tão arraigada no Brasil – em especial entre devotos do capitão – que a tradicional passeata, em que todos se igualavam ao pisar o asfalto, transformou-se em “moto-carreata”.

Na cabecinha dos “moto-carreateiros”, esse comportamento apresenta duas vantagens. Por um lado, têm a impressão de que a lataria protege sua frágil pessoa contra a plebe ignara. Por outro, mostram a todos que possuem veículo potente, o que significa que são importantes e ricos.

Sete de Setembro

José Horta Manzano

Pra quem não conhece, vamos começar do começo. Por estrada de rodagem, a distância entre Santos e São Paulo é de mais ou menos 70km. Dizendo assim, parece pouco, mas o desnível faz toda a diferença. Santos fica à beira-mar, enquanto SP se encontra num platô, a uma altitude de mais de 700 metros. Hoje, viajando num carro confortável, sobre quatro rodas de borracha girando no asfalto, a gente nem se dá conta de que subiu a serra. Duzentos anos atrás, eram outros quinhentos.

Dia 7 de setembro de 1822, o filho do rei fez a viagem de subida. Não se sabe como estava o tempo, se fazia sol, se chovia, se estava fresquinho ou quente como o diabo. Aliás, não se sabe grande coisa. Certo é que a viagem era laboriosa, cheia de perigos e imprevistos. Caminhava-se com as próprias pernas, quiçá agarrando em árvores. Cavalo não subia a serra. A tarefa de portar as bagagens era entregue a mulas. Nenhum viajante estava ao abrigo de um temporal, de um deslizamento de terreno ou de uma onça faminta que atacasse um infeliz que tivesse se apartado por via de uma necessidade urgente.

O príncipe, cujo caráter não era dócil, há de ter chegado ao planalto exausto e de maus bofes. Dizem que, naquele dia, estava com dor de barriga, o que só fazia piorar a situação. Na escola, aprendemos que um mensageiro o alcançou. Falando em mensageiro, não sei de onde terá saído esse personagem. Vinha do litoral ou de São Paulo? A história diz que a mensagem vinha do Rio. Dado que, naquele tempo, não havia estrada de ferro nem de rodagem, o moço terá vindo necessariamente pelo mesmo caminho que o príncipe. Portanto, também terá subido a serra. Como é que ele fez pra alcançar o príncipe às margens do Ipiranga, já às portas de SP? Subiu às carreiras? Enfim, isso não tem muita importância.

O magrinho e bem-comportado Riacho Ipiranga, São Paulo. Ao fundo, o Monumento da Independência.

O fato é que Dom Pedro não apreciou continuar a ser teleguiado desde Lisboa. Aconselhado por assessores, entrou na onda da independência das colônias americanas. A febre de movimentos independentistas tinha começado com as colônias inglesas da América do Norte, em 1776. A partir daí, os territórios castelhanos já se haviam despedaçado em quase duas dezenas de países. As colônias portuguesas estavam até atrasadas, situação que ajudou o filho do rei a tomar sua decisão (antes que algum aventureiro o fizesse).

Festejamos o Sete de Setembro como se dia de glória fosse. Fico um tanto pensativo. Gosto de examinar as coisas pelo avesso, fazendo a pergunta: “E se não tivesse acontecido?”. É puro exercício intelectual, que ninguém muda o passado. Mas como teria sido se Dom Pedro, cansado e com fome, tivesse decidido guardar a mensagem no bolso pra ler mais tarde, e tivesse tocado a mula pra chegar a São Paulo antes do anoitecer?

Neste ponto, pra continuar no exercício de futurologia-do-que-não-foi, é preciso admitir que nenhum movimento posterior tivesse conseguido a independência do Brasil. Os territórios lusos da América do Sul fariam parte do Império Português até hoje. Para nós, os brasileiros do século 21, isso seria um drama?

Não acredito. O Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves seria um império rico e importante. Seria, de longe, a nação mais populosa da Europa, bem mais que a Alemanha. Não haveria essa incômoda distinção entre europeus e americanos, dicotomia que, em geral, nos humilha. Assim como a Guiana Francesa faz parte da França, nós faríamos parte da União Europeia – uma vantagem e tanto.

Quanto ao desenvolvimento do Brasil, não acredito que tivesse sido muito melhor nem muito pior. Não há relação direta entre o desenvolvimento e o fato de o país ser independente. Canadá, Austrália e Nova Zelândia, que estão entre os países mais avançados, fazem parte do Commonwealth e reconhecem a rainha da Inglaterra como soberana, numa situação de semidependência.

Poderíamos ficar até amanhã neste exercício de futurologia-do-que-não-foi. De qualquer maneira, toda comprovação será impossível. Acredito que, muito mais do que comemorar bobamente uma independência que não mudou grande coisa no país, deveríamos escolher outros heróis. Mais vale festejar os que trabalharam para melhorar a Instrução Pública e a Saúde Pública. A abertura de um posto de saúde vale tanto quanto ou mais que um grito de independência, ainda que saído da boca de um príncipe.

O sete de setembro aqui e ali

José Horta Manzano

Sete de setembro não é feriado na França. Esta segunda-feira é dia como qualquer outro. O presidente da República, François Hollande, está concedendo entrevista coletiva a uma plateia de jornalistas. O formato é clássico: primeiro, fala o presidente; em seguida, jornalistas fazem perguntas.

A popularidade das personalidades políticas francesas é aferida mensalmente. A do presidente, embora seja bem superior aos 7% de dona Dilma, não vai além de 26% dos entrevistados. Um presidente impopular.

François Hollande 7Entrevistas coletivas presidenciais na França são organizadas duas vezes por ano. Ainda que a aprovação do presidente esteja lá no fundo, não há previsão de panelaço. Nem de colheraço. Os céus de Paris não perigam ver boneco inflado vestido de presidiário.

É permitido concluir que as vaias de que dona Dilma é obrigada a fugir não são unicamente fruto da baixa popularidade. O peso da roubalheira é que é insuportável. O sentimento de ter sido assaltado causa frustração e revolta. Eis o cerne da bronca dos brasileiros.