Bom-dia a cavalo

by Gerson Kauer, desenhista gaúcho

José Horta Manzano

Quem fala demais dá bom-dia a cavalo. Doutor Flávio Dino, nosso ministro da Justiça (e candidato ao STF), é homem sem dúvida inteligente. Inteligente e instruído, conjunção de qualidades raras no mundo político brasileiro atual. Mas ninguém é perfeito. Apesar das qualidades, o doutor tem um defeito: padece de uma compulsão irrefreável a manifestar sua opinião em qualquer ocasião.

A personalidade de nosso atual ministro da Justiça o leva a sentir-se obrigado a mostrar que sabe tudo, que tem resposta a tudo, em todas as ocasiões, seja qual for o assunto. Deve parecer-lhe inconcebível permitir que outra pessoa possa dar um fecho a qualquer conversa – a palavra final tem de ser dele. Essa compulsão, inofensiva e compreensível quando o ministro tem de fato opinião formada, torna-se perigosa quando ele não domina o tema.

Recentemente, o doutor andou dando bom-dia a cavalo. Distraído, esqueceu que é ministro da Justiça e decidiu comentar um vídeo meio besta que circulou pelas redes, no qual uma portuguesa insultava uma brasileira, em Portugal, e a mandava voltar para o Brasil. Coisa de gente malcriada.

Pois doutor Dino não se segurou. Passou por cima do fato de a senhora portuguesa se encontrar em estado visivelmente alterado – não se sabe se temporaria ou permanentemente. Num erro de apreciação indigno de um ministro de Estado, tomou as palavras daquela senhora como se representassem o clamor da totalidade do povo português. E fez questão de dar resposta.

Em vez de ficar quieto ou mandá-la catar coquinho, declarou que concordaria com o banimento dos brasileiros que vivem em Portugal desde que os portugueses “devolvessem o ouro que levaram de Minas Gerais”. Nessa altura, o doutor não só deu bom-dia ao quadrúpede, mas já estava batendo papo com o dito cujo.

Em primeiro lugar, fica muito feio um ministro imprudente se meter em briga de rede social. E se o bate-boca entre as duas mulheres não passasse de mise en scène, de gozação para ganhar likes? Quem é que ia passar carão, hein? Imprudência…

Além disso, o doutor deu flagrante mostra de não ter retido as aulas de História do Brasil recebidas de dona Leocádia. Na época da exploração do ouro das Gerais (século 18, anos 1700), nosso país ainda não tinha existência independente. As terras onde hoje vivemos eram as possessões portuguesas da América. Portanto, a corrida do ouro se deu em terras lusas. O “roubo” não foi roubo. Quem rouba o que já lhe pertence, a Deus convence.

Não se pode acusar os portugueses de terem levado “nosso” ouro. Não faz sentido. Quem diz isso se esquece de que seus antepassados talvez nem tivessem ainda emigrado para estas terras. Ou, quem sabe até, seus ancestrais eram os próprios portugueses que viviam na colônia. Não é impossível que o doutor seja descendente dos “ladrões” do ouro.

Só se pode falar de “nosso ouro” ou de “nossa terra” a partir da Independência, quando o Brasil passou a ter existência reconhecida pelo resto do mundo. Antes, isto aqui não passava de uma extensão de Portugal.

A meu ver, doutor Dino escorregou duas vezes. Quando se meteu em briga alheia e tomou a ofensa malcriada como se emanasse do povo português inteiro. E resvalou de novo ao considerar que o Brasil já existisse como terra independente um século antes do Grito do Ipiranga.

O discurso é prata, o silêncio é ouro. Se não… bom dia, senhor cavalo!

Histórico familiar

José Horta Manzano

Costuma-se dizer que a história é escrita pelos vencedores. Parece uma boutade ‒ uma frase de efeito, sem maiores consequências. Não é. O conceito é verdadeiro não só ao nível elevado da História que se aprende na escola, mas também ao modesto nível da história familiar.

Dia destes, um primo me procurou pedindo detalhes da vida de antepassados distantes. Como eu não sabia, resolvi procurar. Assim que me debrucei sobre meus alfarrábios pra repescar acontecimentos de séculos atrás, me veio a compulsão de encaixar pessoas e datas no devido compartimento.

Faz alguns dias que ando mergulhado numa São Paulo povoada por meia dúzia de corajosos que subiram a serra a pé e na Villa Rica da época do ouro e dos bandeirantes. Uma sensação estranha e, ao mesmo tempo, agradável.

Do que aconteceu duzentos anos atrás, já ninguém se lembra, o que é natural. O que é menos natural ‒ e que estou descobrindo agora ‒ são acontecimentos relativamente recentes, que foram apagados da memória familiar. De repente, um recorte de jornal da época revela a notícia do enterro de um parente próximo do qual não ficou lembrança. Por que será?

Suicidas somem do histórico familiar. O mesmo destino se reserva a membros desgarrados que se tenham ido contra a vontade dos pais. Quem nunca viu velhas fotos em que o rosto de um dos figurante foi recortado com tesourinha? Eliminar participantes é uma forma de reescrever a história.

No século 19, quando casais tinham uma renca de filhos ‒ às vezes mais de dez ‒, alguns não sobreviviam mais do que algumas semanas. Quando um deles falecia, era costume dar a um novo rebento o mesmo nome do falecido. Curioso costume. O primeiro do nome desaparecia completamente da memória familiar. Nunca mais se falava nele ou nela.

Como se vê, a história familiar é escrita como convém aos patriarcas. E não tem conversa. Quanta coisa deve ter acontecido, que a gente não ficou sabendo, não?