Ação e reação

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense de 30 julho 2022

Vladímir Putin é homem esperto. Até antes do tremendo erro tático que cometeu ao invadir a Ucrânia numa guerra de conquista, sua ascensão tinha sido fulgurante. Obscuro funcionário burocrático dos serviços de espionagem até o fim dos anos 1980, perdeu o emprego assim que o império soviético se desintegrou. De volta à pátria, pôs um pé na política ao se aproximar do então prefeito de São Petersburgo, segunda metrópole do país.

O prefeito era sabidamente “capo” de uma rede mafiosa. O fato não saía nos jornais, mas, à boca pequena, todos sabiam. O jovem Vladímir há de ter se entendido bem com o chefe, visto que este lhe abriu as portas de uma carreira política à moda russa: sinuosa, mas certeira. Poucos anos depois, Putin já se encontrava em Moscou, agora sob as asas de outro figurão: Borís Eltsin, presidente do país.

Eltsin simpatizou com aquele funcionário taciturno que estava comandando os serviços de segurança interna. Imaginou que ele pudesse ser-lhe útil. Bonachão mas desregrado, Eltsin não vinha governando bem. O país, após oito anos vividos sob sua presidência, encontrava-se em má situação. Uma nova classe de ávidos oligarcas tinha se apoderado do espólio da antiga União Soviética. A população estava desassossegada. No final de 1999, acossado por escândalos de corrupção, Eltsin renunciou à Presidência e deixou Putin em seu lugar como substituto temporário. Nas eleições seguintes, Putin foi confirmado no cargo. Desde então, não deixou o topo do poder.

Nos primeiros anos, foi visto pelo mundo como dirigente respeitável. Foi até convidado a integrar o grupo das nações mais ricas, que então se chamava G8. Em 2014, porém, a Rússia invadiu e anexou a Crimeia, território ucraniano. A partir desse momento, Putin foi desconvidado pelo G8 e a Rússia foi posta de molho. Alguma sanção econômica foi infligida, mas nada que bloqueasse o país.

Se a anexação da Crimeia pareceu ter sido digerida, a invasão da Ucrânia, em 2022, passou dos limites. Ressuscitou dolorosas lembranças de guerras passadas. Era intolerável ver uma nação europeia invadindo outra nação europeia. A reação do mundo civilizado foi imediata, unânime e radical. Sanções duríssimas foram aplicadas ao país.

Mas o pior, a marca que permanecerá por décadas e décadas, é a degradação da imagem da Rússia e de seu povo. A Europa e o mundo voltaram a temer o urso soviético – e quem teme, repele. Em poucas semanas, Putin destruiu a normalidade que tinha sido construída desde a queda do Muro de Berlim. Gerações de russos, embora não sejam culpados dos delírios de Putin, sofrem hoje e vão continuar amargando a desconfiança e a repulsa dos povos civilizados.

Diferentemente de Putin, Bolsonaro não é esperto. Desde o início de seu mandato, parece não conhecer outro modo de operar se não o da marretada. Se a porta não abre, prefere demoli-la, sem que lhe ocorra entrar pela janela. Se encasqueta que tem de armar a população, pouco se lhe dá que pesquisas informem que a maioria abomina essa ideia: armará seus sequazes. Falta-lhe o senso da nuance. Sua personalidade é feita de arestas aceradas. Em seu lugar, um indivíduo de mente arejada já teria se dado conta de que ventos contrários ameaçam sua almejada reeleição. Ele não parece perceber que é hora de dar o pulo do gato, ainda que fosse preciso guardar na geladeira algumas convicções. Não – continua na marretada.

O mundo civilizado não é anestesiado como Bolsonaro parece imaginar. Se não foi vaiado ao fim do “brienfing” a que convocou os embaixadores, é porque diplomata é discreto por dever de ofício. Mas paciência tem limites e ninguém atura ser feito de bobo. Se o mundo continua calado, é por estarem todos no aguardo das eleições de outubro. Caso o capitão seja reeleito, a passividade terminará em janeiro. Caso dê autogolpe, a reação será imediata. Os EUA já deram o tom ao redigir a nota de repúdio à fala presidencial.

Se as forças vivas da nação não reagirem com vigor, os países civilizados o farão. O mundo precisa menos do Brasil do que o Brasil precisa do mundo. Segurem-se, que a reação vai ser forte! Ricos e pobres, todos vão sentir.

Clientela ideal

J. R. Guzzo (*)

O Brasil, como bem sabem os estudiosos da língua portuguesa tal como ela é falada por aqui, é o maior importador mundial de palavras argentinas. Não espanholas, como a conhecida caramba, por exemplo – argentinas mesmo, ou, mais precisamente, portenhas, vindas diretamente das calçadas mais pobres de Buenos Aires para o cais do Porto de Santos e a Praça Mauá, no Rio de Janeiro, de onde transbordaram para o Brasil todo ao longo dos anos.

Essas palavras e expressões vêm do lunfardo, ou “lunfa”, linguajar obscuro, enigmático e com vocabulário descolado do castelhano oficial da Real Academia Española; a maior parte dele pouco ou nada significa na Espanha, no México ou no Peru. Não chega a ser um idioma, mas é bem mais que uma gíria; aparentemente surgiu no fim do século XIX como meio de comunicação entre presidiários, criminosos em geral, proxenetas, vigaristas, batedores de carteira, vadios e outros malvivientes do submundo de Buenos Aires.

Dali se incorporou ao falar da rua, nos bairros pobres dos quais La Boca é o símbolo mais conhecido dos brasileiros, e logo em seguida às letras de tango – das quais, enfim, passou para o mundo.

Ou melhor: para o Brasil. O resto do mundo pode repetir palavras cantadas por Gardel, mas não as utiliza na sua linguagem corrente. Aqui, porém, entraram com todo o gás, e há décadas fazem parte do dia a dia do português falado pelos brasileiros.

A lista não acaba mais: otário, afanar, engrupir, embromar, cambalacho, bacana, bronca, fajuto, punguista, fuleiro, grana, gaita, escracho, cana, tira, lábia, patota, cabreiro, pirado, campana, mina (não no sentido geo­lógico), barra-pesada, e por aí se vai.

Haveria, na preferência nacional pela importação de palavras com esse tipo de significado, entre tantas outras que o lunfardo oferece, alguma atração especial da alma brasileira pela linguagem da marginalidade?

É coisa para os profissionais do ramo responderem, mas certas realidades não se podem negar: feitas todas as contas, a palavra argentina que teve mais sucesso no Brasil, do seu desembarque até o dia de hoje, é “otário”. Amamos essa palavra. Quer dizer: amamos essa palavra quando ela é aplicada aos outros ou, mais exatamente, quando não é aplicada a nós. Vale, então, como uma espécie de certidão negativa, que nos absolve de tudo aquilo que não queremos ser – bobos, enganados, passados para trás.

No Rio de Janeiro, especialmente, é coisa muito séria, do milionário ao engraxate, manter durante a vida uma reputação de não otário. Vale para o Brasil todo, é claro – ser chamado de otário, em qualquer ponto do território nacional, é ofensa grave. Mas no Rio, por alguma razão que é melhor deixar para a apreciação dos mestres em psicologia social, é insulto maior ainda – assim como é um orgulho, assumido ou disfarçado, considerar-se portador da imagem oposta, a do “malandro”.

Depende, naturalmente, da circunstância e do jeito com que a palavra é usada, mas é frequente que o indivíduo classificado como malandro sinta que recebeu um elogio. Vale como um genérico para todo tipo de avaliação positiva: ser tido como malandro é ser tido como inteligente, esperto, habilidoso, experiente, prático, capaz de cuidar de si mesmo, vacinado contra a suprema humilhação de “ficar no prejuízo”.

É comum, no Rio, o sujeito trabalhar de sol a sol, cozinhando no meio de um calor de 40 graus na operação de uma britadeira de rua ou na direção de um ônibus urbano, ganhando uma mixaria e sendo barrado na entrada de tudo aquilo que se considera “vantagens da vida”.

Ao mesmo tempo, sabe que é roubado todos os dias, que o governador do Estado usa helicópteros oficiais, mantidos à sua custa, para transportar seu cachorrinho de estimação entre o Rio e Mangaratiba, e que a casa onde mora pode vir abaixo nas próximas chuvas de verão. Não importa: ele vai morrer achando que foi um grande malandro, e que otários são os outros.

É uma situação de sonho para governantes, vendedores de ilusões e vigaristas de todas as especialidades; têm à sua disposição, sempre, uma clientela que é tola o suficiente para achar que não é tola nunca. O Brasil da esperteza, onde se cultua a “malandragem” em tudo, é, na verdade, um dos países mais crédulos do mundo.

Há poucos, do seu porte, com tantos ludibriados, ingênuos, trapaceados, compradores de mercadoria falsa vendida pela marquetagem política, levados na conversa por palavrório de palanque, prontos a acreditar em farsantes notórios – enfim, e com o perdão da palavra, com tantos otários.

(*) Por J.R.Guzzo, no blogue de Ricardo Setti