De carona

O Globo, 7 jul° 2022

José Horta Manzano

Artigo d’O Globo informa que dezenas de candidatos às eleições deste ano para os cargos de deputado estadual ou federal têm bancado anúncios no feicebúqui e no instagrã. Espero que vosmicê saiba como funciona esse sistema de anunciar em rede social. Quanto a mim, não faço a menor ideia. Sou do tempo em que anúncio se punha no jornal. Não frequento “redes”.

Bom, imagino que, como todo anúncio que se preze, essas inserções tenham um custo. É difícil acreditar que os candidatos enfiem a mão no próprio bolso, portanto devem estar se servindo no fundo partidário – aqueles bilhões desviados de nossos impostos e entregues ao apetite da coleção de partidos que compõem o tabuleiro das incongruências desta exótica República.

Resultado do jogo: os anúncios, na verdade, estão sendo financiados por todos nós.

A maioria dos anunciantes da base bolsonarista se dedica a um sistemático exercício de desinformação, seguindo à risca a cartilha do conspiracionismo. As investidas mais recorrentes, como se pode imaginar, vão contra o sistema de voto eletrônico e contra os ministros do STF – os judas favoritos da turma.

O teor dos anúncios intriga. De candidatos normais, se esperaria que se apresentassem ao grande público, que louvassem as próprias qualidades, que dissessem a que vêm. Em vez disso, temos um bando de zumbis, que entram na sala de visitas dos outros para denunciar o sistema que há de elegê-los – ou até, em numerosos casos, que já os elegeu. Por que fazem isso?

A primeira explicação, que me parece evidente, é não terem nada de substancial a contar sobre a própria personalidade, suas convicções e seu plano de trabalho.

A segunda razão, que decorre da anterior, é que, não tendo nada de interessante a apresentar, tomam carona no bonde do capitão, na esperança de recolher o voto de um punhado de seus devotos mais medrosos.

Em seguida, vem a dúvida. O que pretende essa gente? Será que não se dão conta de que, com esse comportamento, estão jogando um grão de areia na engrenagem bem azeitada da votação eletrônica, consagrada há um quarto de século? Será que não percebem que, ao contribuir para eventual tentativa de golpe, correm o sério risco de serem tragados por ele?

Se – que Deus nos livre e guarde – golpe houvesse e fosse bem sucedido, a primeira providência seria fechar a Câmara Federal e as Assembleias estaduais. Por duração indeterminada, Suas Excelências seriam mandadas de férias sem vencimentos. Talvez fosse organizada nova eleição, talvez não. Em regime autocrático, tudo depende dos caprichos do autocrata, de suas fobias e de sua paranoia.

Com ou sem golpe, esse punhado de candidatos-zumbis já nos dá um antegosto do nível intelectual e moral da nova leva de parlamentares, todos afiados e prontos para se aboletar no bem-bom.

Vox populi – 3

José Horta Manzano

Semana passada, uma pesquisa encomendada ao Ipespe deu que falar. Entre outros pontos, media a percepção que o eleitor tem da honestidade de cada candidato.

Nesse quesito, 35% dos eleitores julgam que, entre todos os candidatos à Presidência, Lula é o que melhor se enquadra no conceito de honestidade. Quanto a Bolsonaro, são 30% os eleitores que o veem honestidade nele – 5 pontos percentuais abaixo do placar do Lula.

Não deixa de causar certa surpresa que o Lula, depois de gramar ano e meio de masmorra úmida por ter sido reconhecido como corrupto – por três instâncias –, ainda seja visto como campeão de honestidade.

Outra curiosidade vem do fato de Bolsonaro, que insiste em garantir que não há corrupção em seu governo, receber pontuação mais baixa que o Lula.

A pesquisa causou um choque nas hostes bolsonaristas. Choveram pedidos de bloqueio dos resultados. Pelo que entendi, os sondadores se encolheram e suspenderam a publicação, mas o estrago já estava feito. Todos os veículos da mídia nacional já tinham publicado a notícia.

Derramado o leite, só nos resta avaliar o que esses números dizem do Brasil que se oculta atrás de uma persistente cegueira coletiva e contagiosa.

Se for bem agitada a bateia, o ouro da pesquisa vai aparecer, bem escondido, lá no fundo. Pra se dar conta da realidade, basta examinar esses números ao contrário.

Se 35% dos eleitores acreditam que o Lula é honesto, isso significa que 65% o consideram desonesto. É verdade estatística. E o capitão? A pesquisa atesta que 70% dos pesquisados o veem como desonesto.

Fica a certeza de que, seja qual for o vencedor, o Brasil será presidido por um desonesto. Ou, pelo menos, por um indivíduo que é pressentido como desonesto por 2 em cada 3 brasileiros.

Brasil, país do futuro? Brasil, país sem futuro.

Sina

José Horta Manzano

Internet e redes sociais têm seu lado bom. Se assim não fosse, não teriam conquistado tantos adeptos. A informação instantânea (que hoje convém dizer “em tempo real”) é bom exemplo dos benefícios.

Nos tempos de antigamente, um meio muito utilizado de transmitir informação era o “telefone sem fio” ou “boca a boca”. Não era sofisticado, mas tinha sua graça. Logo após ter se inteirado de uma notícia, a gente corria pra informar algum conhecido.

– Você soube da novidade?

– Não. O que é que foi?

Neste ponto, o bom da coisa era contar o que tinha ocorrido e parar pra observar a cara de espanto do interlocutor. Era uma sensação impagável.

– Noooossa! Não diga!

– Digo, sim. E digo mais.

E aqui se acrescentava algum comentário pessoal. Como se sabe, quem conta um conto aumenta um ponto.

E assim seguia. Terminada a conversa, cada um seguia seu caminho pra continuar a espalhar a notícia.

Diálogos assim, hoje, são mais raros. Com o celular sempre no bolso, (quase) todos ficam sabendo de (quase) tudo ao mesmo momento. Não tem mais graça perguntar “– Soube da novidade?”. Normalmente, a resposta será “– Soube, sim.”

Nem tudo, porém, é cor-de-rosa. Há gente que exagera na dose e tem nas redes sociais seu único canal de informação. Não é o caso do distinto leitor, naturalmente, visto que chegou a este blogue caminhando com as próprias pernas. Está ficando cada vez mais raro ver gente que usa as próprias pernas para andar; muitos por aí andam caminhando com as pernas alheias. Parece cômodo, mas pode ser nocivo a longo prazo. Massa cinzenta pouco utilizada acaba se atrofiando.

Essa dedicação exclusiva e em tempo integral às redes pode causar distorções em certos momentos. Em política, na hora de escolher candidato para eleição majoritária (presidente, governador, prefeito), esse hábito trabalha contra o eleitor, visto que limita sua liberdade de escolha.

A frequentação permanente das redes acaba por fagocitar outros canais de comunicação que costumavam ser usados entre candidatos e eleitores. Debates, por exemplo, em que cada pretendente tem ocasião de expor as próprias ideias, estão em processo de rápida perda de importância.

Esse estreitamento dos canais de informação dificulta o aparecimento e a ascensão de novos candidatos, enquanto favorece a reeleição dos nomes mais conhecidos. Para as presidenciais de 2022, o quadro se delineia cada dia com maior nitidez.

Um terceiro candidato, fora do binômio Lula x Bolsonaro, tem pouca chance de se fortalecer eleitoralmente. Esses dois personagens são tão conhecidos, que um terceiro será naturalmente menos popular do que eles. E terá menos espaço nas redes, o que limitará suas chances de sucesso.

Salvo acontecimento extraordinário, os dois nomes que o país inteiro conhece – o do ex-presidente (e ex-presidiário), e o do atual presidente (e futuro presidiário?) – têm todas as chances de aparecer na cédula do segundo turno.

Eta carma pesado, o nosso!

Candidatos 2020: origem do sobrenome

José Horta Manzano

Na Europa de 1000 anos atrás, ninguém tinha nome de família – aquilo que conhecemos como sobrenome no Brasil e apelido em Portugal. Vilas e vilarejos eram pequenos, o que dispensava a atribuição de nome às famílias. Todos se conheciam pelo nomezinho de batismo, invariavelmente nome de santo: Josés, Marias, Joões, Claras, Antônios, Anas se sucediam. Sem falar de nomes medievais como Gome, Águeda, Jácome, Sancho, Crisóstomo, Briolanja, Lopo, Violante, Mem, Iseu, Guidania, Pantaleão, Agridônia, hoje praticamente esquecidos.

Caso o povoado tivesse mais de um morador com o mesmo nome, a distinção se fazia por alguma característica. Era o início do longo caminho que, séculos mais tarde, levaria à prática institucionalizada de atribuir a cada indivíduo um nome de família.

Os nomes de família se distribuem basicamente em cinco grupos:

Patronímico
São aqueles em que o prenome do patriarca (ou da matriarca) serviu de sobrenome para a descendência. Na Espanha e em Portugal, os nomes terminados em es/ez são patronímicos: Péres/Pérez (filhos de Pero), Álvares/Álvarez (filhos de Álvaro), Esteves/Estévez (filhos de Estêvão), Nunes/Núñez (filhos de Nuno).

Toponímico
É quando o nome de família tem relação com o lugar de origem ou de residência da família. Exemplos: Aguiar (lugar alto onde havia ninhos de águia), da Costa, do Monte, Napolitano, de Toledo, Ribeiro (da beira do rio), Castelo Branco (nome da cidade), Figueiredo (lugar onde havia figueiras), Azevedo (terreno coberto de azevém – espécie de capim), Nogueira (campo onde se colhiam nozes; equivale ao francês Dunoyer, ao alemão Nussbaumer, ao espanhol Nogales e ao italiano Nocetti).

Alcunha
Alcunha é o que, no Brasil, chamamos apelido. Esta tendência é interessante e muito difundida. Famílias carregam até hoje a lembrança de alguma característica física do patriarca ou pelo apelido pelo qual era chamado. Os antigos eram raramente gentis ao atribuir alcunha: Calvo, Preto, Manso, Gago, Valente, Bravo, Ruço (cabelo vermelho), Pezão.

Nome religioso
Em terras lusofalantes, muitas famílias têm sobrenome relacionado com a religião. Exemplos: de Jesus, Assunção, São Marcos, dos Santos, Batista, Santamaria.

Ofício (profissão)
Frequente em outras terras, não é comum ver o ofício do patriarca transformado em nome de família em Portugal. A profissão de ferreiro é uma das poucas que servem de exemplo: Ferreira (a ferraria é o lugar onde se malha o ferro). Temos ainda: Pastor, Farina, Molino e Trigueiro (o moleiro).

Estudo do nome dos candidatos

Na ausência de eleição nacional em 2020, escolhi trabalhar com a lista dos candidatos a prefeito da cidade de São Paulo. Entre eles, há gente desconhecida, figurinhas carimbadas, um ex-ministro, um ex-governador e até um ex-candidato à presidência da República. Vamos a eles.

Silva Orlando & Antônio Carlos
Silva, por certo o sobrenome mais difundido em nossa terra, é um claro topônimo. (Entre os 14 candidatos, 2 têm esse sobrenome.) A palavra latina silva traduz-se por selva. Bosques e matas, há por toda parte. Assim mesmo, algumas fontes designam certa localidade portuguesa como lugar de origem da estirpe. Tenho cá minhas dúvidas. Por mais férteis que fossem os primitivos portadores desse nome, não dariam conta de engendrar prole tão vasta. A grande quantidade de Silvas no Brasil há de ter outras explicações. Uma delas terá sido a atribuição desse sobrenome a escravos alforriados.

Matarazzo Andrea
Este sobrenome é originário do sul da Itália, especificamente da Campânia (região de Nápoles). É grande a possibilidade de ser um nome de ofício. O patriarca da estirpe, na Idade Média, teria sido um fabricante de colchões (materasso, em italiano atual). Também não é impossível que alguns dos atuais Matarazzo sejam originários de uma localidade com esse nome, situada bem perto de Nápoles, junto ao vulcão Vesúvio; neste caso, será um topônimo.

Hasselmann Joice
Nome alemão pouco difundido, é um topônimo. Informa que, na época em que os sobrenomes começaram a ser atribuídos, a família tinha chegado, não fazia muito tempo, do vilarejo de Hassel, na Baixa Saxônia (norte da Alemanha).

França Marcio
Não é fácil descobrir a origem desse sobrenome. Embora não muito convincente, a explicação mais evidente parece ser de que a família era originária da França. Hesito em adotar essa solução. Na Idade Média, deslocamentos eram raros e, quando ocorriam, a distância nunca era grande. Como é que uma família havia de se mudar da França para Portugal, numa viagem de 2 mil quilômetros? Para mim, este nome vai para a lista dos misteriosos.

Do Val Arthur
É claramente um topônimo. Val é um vale que perdeu o E final (ou que ainda não o ganhou). A família é originária dos baixios de um lugarejo, da parte do povoado situada à beira-rio.

Tatto Jilmar
O nome Tatto é italiano. Há duas possibilidades de abordá-lo. Tanto pode ser de origem sarda (Sardenha, Itália) quanto proveniente da Apúlia (região de Bari, sul da Itália). Seria interessante conhecer o lugar de residência dos antepassados do candidato que emigraram para o Brasil. Caso tenham vindo da Sardenha, o nome é uma alcunha. Nos dialetos sardos, tattu significa farto, saciado. Como os apelidos eram maldosos, o patriarca pode bem ter sido um homem rechonchudo, gordinho. Caso tenham vindo da Apúlia, o nome é um patronímico, alteração dialetal do nome próprio latino Tatius (Tácio). Um dos primeiros reis de Roma levava esse nome.

Covas Bruno
Não se formou unanimidade sobre a origem deste sobrenome. Parece certo que seja um topônimo. Pode referir-se a alguma localidade portuguesa, que há várias: Covas do Douro, Covas do Barroso, Covas de Ferro. Pode também ser ligado ao lugar de residência do patriarca, que teria vivido, nesse caso, numa região esburacada.

Boulos Guilherme
É nome de origem sírio-libanesa. É a forma árabe do nome cristão Paulo. (A língua árabe não tem o som P, que é substituído pelo B). O árabe tem alfabeto próprio, o que significa que a transliteração para o alfabeto latino varia conforme a língua de quem fizer o trabalho; alemães escreverão Bulos, ingleses preferirão Boolos, franceses grafarão Boulos. O nome do candidato Boulos está transcrito para a língua francesa. A pronúncia original não é Boulos (OU), mas Bulos (U). Naquela região do Oriente Médio, só famílias cristãs dão o nome Paulo a uma criança.

Fidelix Levy
Este nome parece derivar do adjetivo latino fidelis = fiel, o que o instala na categoria dos patronímicos. O x final não aparece no original latino; há de tratar-se de latinização tardia (e equivocada). Variantes são: Fidelio, Fidal, Fidèle, Fedele.

Sabará Filipe
Tudo indica tratar-se de toponímico ligado à velha Vila Real de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, hoje cidade de Sabará, que começou como acampamento bandeirante nas Minas Gerais. Tendo em vista que, no século 18, todos já tinham sobrenome, a adoção do nome do povoado (Sabará) pode se explicar pelo desejo de uma pessoa de jogar fora o passado e recomeçar a vida com nova identidade.

Russomanno Celso
De origem italiana, este nome é uma alcunha. Tem inúmeras variantes, conforme a região: Russomanda, Rossomanno, Russumanno, Rossomandi, Rossumando, Russomanno. Vista a profusão de variantes e a presença deste nome em todo o território italiano, os estudiosos convergem para uma explicação simples. Russomanno é de formação híbrida, envolvendo uma raiz latina e outra germânica. Ross/russ (latino) significa vermelho. Mann (germânico) é o homem. Os dois juntos designam o homem de cabelo vermelho, ou seja, o ruivo. O patriarca da família devia ter esse atributo cromo-capilar. (Essa foi chique!)

Salgado Vera Lúcia
Não há certeza quanto à origem deste nome. Algumas fontes acreditam que seja uma alcunha pespegada a um patriarca cheio de vivacidade, daqueles que animam o grupo, como o sal anima uma refeição. Pode ser, embora a explicação me pareça tortuosa. Prefiro acreditar numa explicação mais simples, isto é, que se trate de um topônimo. O nome teria sido atribuído aos que viviam num terreno junto ao mar, encharcado de sal, um solo salobro impróprio para cultivo.

Helou Marina
É nome árabe, trazido ao Brasil por imigrantes sírio-libaneses. Designa aquilo que tem sabor doce. Não conheço suficientemente os nomes daquela região; assim, não posso afirmar se é topônimo ou alcunha. Se algum distinto leitor souber, uma cartinha para a redação será bem-vinda!

É interessante ter, na mesma eleição, uma candidata do time doce concorrendo com uma do time salgado. Com as duas, a mesa estará completa e farta. E a eleição terá sabor.

O quarteto cruz-credo

José Horta Manzano

As sondagens mais recentes mostram um curioso quarteto na dianteira da corrida presidencial. São quatro personagens em busca de autor. Acolhidos por um bom dramaturgo, até que comporiam excelente dramalhão. São tipos marcantes, basta escrever o enredo.

Um deles é o cangaceiro esculpido e escarrado. Bota medo em todo o mundo, deita fogo pelas ventas. Grita, ameaça, cospe palavrão. No entanto, sei não, com todo esse esperneio, me faz pensar num certo cão que ladra mas… não morde.

O quarteto cruz-credo

O segundo é o professor. Tem ar cansado, a coluna arqueada, a cabeça que pende para a frente, como se carregasse o peso do mundo nas costas. Fala pausado, como quem explica uma lição ‒ ou como quem se esforça pra não dizer besteira. Deixa a imagem do bom sujeito que gostaria de chegar lá mas não se anima a fazer o esforço necessário, na esperança de seus méritos serem reconhecidos por inércia. Não serão.

O terceiro é a esfinge. Está sempre com cara de quem comeu, não gostou e vai chorar. Parece sempre na defensiva. Quando confrontado com um problema mais complexo, não se vexa em dizer que não tem a solução, mas que tem um amigo que vai resolver o caso. Deixa sempre uma impressão de obra inacabada, de que falta alguma coisa, como uma casa sem alicerce.

O quarto é e não é ao mesmo tempo. Apresenta-se como procurador de um sujeito oculto. Deixa claro e público que não passa de canal de expressão de um terceiro personagem. Transmite impressão de não ter vida própria, dependente que é de ordens vindas da cadeia. Um personagem surreal.

Estamos bem arranjados. Desse magma, só sai uma certeza: o próximo presidente do Brasil será paulista. De fato, todos os integrantes do quarteto viram a luz em São Paulo ‒ o que não é necessariamente motivo de orgulho para o Estado.

Francisco de Paula Rodrigues Alves
(1848-1919)
5° presidente do Brasil

Para constar
Tirando doutor Temer ‒ que é substituto e não foi eleito nominalmente ‒, o último paulista escolhido para presidir o país foi doutor Rodrigues Alves, nascido em 1848(!). Seu mandato terminou em 1906, faz 112 anos. Desde então, neca.

A hora da verdade

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 29 setembro 2018.

Pomposo, o título alude ao voto da semana que vem. Podia ser ainda mais empolado, algo do tipo momento supremo, encruzilhada de caminhos ou até nunca antes neste país. Bobagem. A hora da verdade é toda hora, é agora e sempre, é um contínuo. O hoje é produto do ontem e será semente do amanhã.

É verdade que as escolhas que os brasileiros farão nestas eleições vão determinar, em grande parte, o futuro de todos nós. Mas o leque de candidatos que nos lançam santinhos e nos assassinam com boutades toscas não surgiu do nada nem brotou de geração espontânea. Se estão lá é porque cada um deles representa uma parcela, maior ou menor, do gênio nacional. Nenhum dos postulantes entrou de penetra. A nenhum se lhe pespegará a etiqueta de usurpador.

Um cidadão que se apresenta como Só Na Bença disputa uma poltrona na Assembleia de Rondônia. Um outro, registrado como Alceu Dispor 24hs (sic), pretende ser eleito em Goiás. Uma senhora, dona Olga Um Beijo E Um Queijo, pede votos em São Paulo. Estivéssemos na Alemanha, país em que candidatos costumam usar nome próprio e deixar alcunha pra outros ambientes, esse quadro seria inconcebível. Nossa cultura, contudo, vê com naturalidade candidatos embrulhados pra presente com papel furta-cor a mascarar-lhes a identidade. Eles são produto de nossa verdade quotidiana. Farão sucesso e terão votos.

Faz poucos dias, conceituada revista britânica estampou, logo na capa, foto de um dos candidatos à presidência de nossa República. Assustadora, a legenda apresentava o homem como a “ameaça da hora”. Não só para o Brasil, como para toda a vizinhança. A meu ver, estão carregando nas tintas ao atribuir ao personagem poderes que ele não tem. A candidatura de doutor Bolsonaro planta raiz nos treze anos de lulopetismo, período desastroso que deixou marcas profundas. A toda ação corresponde uma reação oposta e de igual intensidade, reza o axioma newtoniano. Não tivéssemos sido castigados com os descalabros do andar de cima durante década e meia, a candidatura Bolsonaro não prosperaria. Aos olhos de grande parte do eleitorado, esse candidato parece encarnar o mais perfeito antídoto contra a volta do PT ‒ daí sua ascensão irrefreável.

Sir Isaac Newton

A clivagem engendrada pelo discurso excludente do lulopetismo foi tão profunda que o resultado não podia ter sido outro. Não se sabe se a predicação que separava a população entre nós e eles era mero instrumento retórico ou se mirava a abrir brechas. Fato é que acabou se materializando. O país está hoje dividido entre os que, por motivos que lhes são próprios, gostariam de ver o lulopetismo de volta, e os demais, que sentem arrepio à simples evocação dessa ideia.

A eleição terá ares de plebiscito. Seu vencedor representará, goste-se ou não, o desejo da maioria do eleitorado. Muitos temem seja eleito um político com tendências radicais. A crer nas pesquisas, que já delineiam os dois favoritos, esse temor se realizará. Que fazer? Será chegada a hora de fazer novena pra Santo Expedito na esperança de evitar desastre?

Que ninguém se amofine. Nenhum candidato, ainda que mostre perfil agressivo, resiste à unção presidencial. Uma vez eleito e devidamente empossado, seu comportamento muda. O chefe do Executivo pode muito mas não pode tudo. O Estado dispõe de travas e ferrolhos a cercear dirigentes impetuosos. O Congresso é contrapeso ao poder presidencial. Apesar de duramente criticado ultimamente, o Judiciário marca presença como terceira força, a equilibrar os outros Poderes. Dirigentes arrebatados e voluntariosos, já tivemos. Não esquentaram cadeira por muito tempo. Doutor Jânio Quadros foi um deles. Num dia de piripaque, o homem escreveu um bilhete de adeus e, antes que o despejassem, abandonou o trono. Doutor Collor e doutora Dilma, por sua vez, tentaram resistir, mas acabaram destituídos.

Seja qual for o eleito, não há o que temer, gente fina! Golpe é coisa do passado. Revolução só fazem os que estão na miséria. Num Brasil escaldado pelos recentes escândalos, se os eleitos para o próximo quadriênio roubarem menos, já estará de bom tamanho. Que se assosseguem todos os súditos! O tsunami não passará de marolinha.

Quando a liberdade dá mais medo que a servidão

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Não tenho acompanhado de perto os lances da atual campanha eleitoral. Envolvida que estou com assuntos mais prosaicos, como minha própria sobrevivência financeira e a evolução pós-cirúrgica de minha cachorra, não consigo esconder de mim mesma o tédio e o desalento que me invadem quando me deparo com as mesmas velhas promessas requentadas, apresentadas como iscas de credibilidade para seduzir o eleitorado.

Navegando pela internet e pelas redes sociais, volto, no entanto, a entrar em contato com um fenômeno que me embasbaca há décadas: a disseminada dependência psicológica de uma liderança política que mostre ser capaz de construir – sozinha e por puro voluntarismo ‒ o futuro que almejamos para o país. Esse não é um fenômeno exclusivamente atrelado à política, é claro. No entanto, o efeito deletério causado pelo contínuo surgimento de pretensos salvadores da pátria assombra mais nessa área.

Hoje quero falar mais genericamente sobre a dinâmica psicológica de quem é chamado a escolher um guia. Gostemos ou não, em diversos momentos de nossa vida sentimos a necessidade de nos apoiar em alguém que caminhe à nossa frente, abrindo novos caminhos ou nos indicando a trilha mais sensata a percorrer em qualquer excursão que pretendamos fazer. É isso que esperamos de um pai, de um parceiro, de um professor, de um conselheiro espiritual ou de um consultor especializado na área em que pretendemos nos aventurar.

Até aí, tudo bem. Faz sentido, se o que estamos buscando é aprender novas habilidades, desenvolver novas competências, identificar novas formas de relacionamento. Posso até concordar que a dependência de um modelo externo de conduta seja decorrência do longo processo de amadurecimento dos mamíferos. O que não posso aceitar é que a dependência psicológica que se prolonga para a adolescência e vida adulta seja teorizada como instintiva ou “natural” da espécie humana. Contar com o apoio de alguém mais experiente é, sem dúvida, fonte de profundo alívio. O problema, a meu ver, está em aprender a discernir em que ponto de nossa jornada de aprendizagem o alívio se transforma em estagnação.

Talvez seja pura ingenuidade de minha parte, limitação intelectual ou simples ignorância ideológica, mas nada me tira da cabeça que a necessidade de esperar que alguém que nos pegue pela mão para nos conduzir a nosso destino pode ter como importantes efeitos colaterais a falta de iniciativa, a acomodação mesmo a contragosto aos desígnios de terceiros e a paralisia intelectual ou emocional que impede de explorar soluções próprias.

Se já me é difícil entender a necessidade de liderança por si só, mais complicado será compreender por que ansiamos tanto nos dias de hoje pelo retorno da autocracia. Esse, infelizmente, não é um fenômeno apenas local. No mundo todo, há demonstrações inequívocas de que a tolerância às novas formas de despotismo vem crescendo de forma assustadora.

Em tempos de empoderamento das minorias, esse fenômeno torna-se ainda mais intrigante. Diversos teóricos da filosofia, sociologia e psicologia já levantaram hipóteses a respeito do que leva as pessoas a aceitar abrir mão do direito à autoexpressão e autodeterminação, trocando-os pela sujeição a uma mentalidade externa. Insegurança causada pelo excesso de escolhas, a volatilização e relativização de princípios e valores morais decorrentes da globalização, medo da liberdade, falta de sintonia com elementos culturais locais – muitas são as explicações possíveis, mas nenhuma com poder de impedir o recrudescimento da vontade de esmagar toda forma de dissidência.

Há pouco tempo li uma reportagem sobre os fatores que estão na base do populismo. Para chegarem ao poder ou nele se sustentarem, os líderes populistas usam e abusam da estratégia de gerar medo na população, caso seus antagonistas sejam os escolhidos. Acredito que nenhum brasileiro que tenha acompanhado as duas últimas eleições presidenciais se esqueceu dos inúmeros exemplos desse tipo de propaganda, tanto a ameaça de que “vai tirar a comida da mesa do pobre” quanto a de “vai privatizar tudo”.

Por que, continuo me perguntando dia e noite, cheia de angústia, preciso que um governante me diga que tipo de educação devo ter, que livros devo ou não ler, com que ideologias políticas posso me envolver, que tipo de família devo construir, com quais parceiros afetivos e sexuais posso me relacionar, com que amigos posso ou não me identificar, por quais princípios religiosos devo orientar minhas decisões dentro de um estado laico, que profissão devo adotar, que formas de entretenimento são mais ou menos aceitáveis ou até por quais critérios posso enquadrar uma obra como arte? Como posso prosseguir na minha luta por mais autonomia se necessito que alguém do lado de fora defina em meu nome o que é moral e o que é civismo?

Passei boa parte de minha vida fazendo pesquisas políticas, na tentativa de compreender as motivações que estão por trás da escolha deste ou daquele candidato ou dos critérios levantados para traçar o perfil de governante ideal. Entrevistei centenas de eleitores para conhecer que mensagens eles retiram das propagandas políticas ou do horário eleitoral gratuito. A única conclusão segura a que cheguei foi a de que todos querem aquilo que sentem não ter no momento.

Há poucas semanas, escrevi sobre a mudança ineficaz. Para quem não leu, relembro: quando o desejo de mudar aparece, o primeiro impulso é fazer o contrário do que se vinha fazendo até então. Se não der certo, aumenta-se a dose. Se, por exemplo, você está com frio, veste uma malha ou agasalha-se com um cobertor. Só que há um limite para a incorporação de mais calor externo. Em um dado momento, você acaba fazendo um strip-tease e, inadvertidamente, volta ao ponto de partida. Em outras palavras, se a alternativa escolhida para a mudança pertence ao mesmo grupo do problema, um estímulo acaba anulando o outro.

Sabemos todos o que não queremos para o próximo presidente e para o próximo Congresso. Somos capazes de fazer um diagnóstico preciso do que vem nos infelicitando como nação. Só falta agora colocar mãos à obra para nos apropriarmos do destino deste país, perceber de uma vez por todas que é nossa responsabilidade como cidadãos monitorar todos os desdobramentos sociais e políticos, independentemente de quem sejam os vencedores desta e de futuras eleições.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Anestesiados

José Horta Manzano

Nunca vi guerra. Imagino (e espero) seja também o caso do distinto leitor. Dizem que os que viram guerra por dentro se assustam no começo, mas acabam por habituar-se com bombardeios e atrocidades de arrepiar o cabelo.

Isso também vale para outras situações. Por exemplo, quem tem a janela da sala dando pra uma avenida barulhenta já nem se dá conta, depois de algum tempo, do ruído contínuo.

O Insper publicou recentemente uma pesquisa intitulada Vitimização em São Paulo ‒ 2018. O estudo traz um dado estarrecedor. Atesta que 48% dos paulistanos já foram alvo de roubo ou furto pelo menos uma vez na vida. Metade dos habitantes da maior cidade do país! Um em cada dois!

E olhe que, nas outras metrópoles brasileiras, não deve ser muito diferente. Até cidades menores estão entrando nas estatísticas fúnebres. Para quem vive fora do país, como eu, é situação impressionante, difícil de conceber.

Nas muitas décadas em que tenho visto o Brasil de longe, não assisti a nenhum assalto nem me lembro de ter conhecido alguém que tenha sido assaltado. Que fique claro: não vivi num convento, mas em cidades comuns. Por aqui, assalto a mão armada sai no jornal televisivo da noite e deixa a população traumatizada.

Percebo que a população brasileira está habituada com essa barbaridade. Anestesiados, os honestos cidadãos acabam aceitando a situação, consolando-se com a (falsa) ideia de que «nas grandes cidades do mundo inteiro também é assim». Não é.

O problema no Brasil é complexo. Infelizmente, na atual temporada de eleições, não vejo nenhum candidato tratando a raiz da questão. Trancar-se em casa, levantar muros eletrificados e chamar o Exército é paliativo que não enfrenta nem resolve o problema. O buraco é bem mais embaixo.

Gostaria que candidatos mostrassem disposição pra integrar esse estrato da população que vive nas fímbrias da sociedade. Falo dessa juventude que, sem formação, sem trabalho, excluída e sem perspectiva, descamba para o crime. Infelizmente, parece que os do andar de cima ainda não se sensibilizaram com a situação. É pena.

Candidatos: origem do sobrenome

José Horta Manzano

Você sabia?

Na Antiguidade, não havia necessidade de sobrenome. Como vilarejos eram pequenos, o prenome bastava pra identificar cada membro da comunidade. Com o crescimento da população, na Idade Média, foi preciso acrescentar um especificador ao nome de batismo. A mudança foi gradativa e se fez sem método predeterminado. Os sobrenomes se classificam em cinco categorias principais.

1a) Patronímico
O prenome do patriarca serviu de sobrenome para a descendência. Alguns casos são bastante evidentes, como os ibéricos Péres/Perez (filhos de Pero), Álvares/Álvarez (filhos de Álvaro), Esteves/Estevez (filhos de Estêvão), Nunes (filhos de Nuno). Em território germânico, estão os Johnson/Jansen (filhos de John/Jan). Outros patronímicos saltam menos aos olhos.

2a) Toponímico
O nome de família tem relação com o lugar de origem do patriarca. Exemplos: Aguiar (lugar alto onde havia ninhos de águia), da Costa, do Monte, Napolitano, de Toledo, Ribeiro (da beira do rio), Castelo Branco (nome da cidade).

3a) Profissão ou ocupação
O ofício do patriarca acabou dando sobrenome à descendência. A profissão de ferreiro por exemplo, deu: Ferreira, Herrera, Fabbri, Lefèvre, Smith, Schmid, Kovac. Temos ainda: Pastor, Farina, Molino, Trigueiro. Poucos sobrenomes portugueses entram nesta categoria.

4a) Alcunha
Esta tendência é interessante e muito difundida. Famílias ficaram conhecidas por alguma característica física do patriarca ou pela alcunha dele. Calvo, Preto, Manso, Gago, Valente, Bravo.

5a) Nome religioso
Muitas famílias têm sobrenome relacionado com a religião. Exemplos: de Jesus, Assunção, São Marcos, dos Santos, Batista.

Analisei o sobrenome dos principais candidatos à Presidência. A origem de cada um deles está aqui abaixo.

Henrique Meirelles
Meirelles é toponímico. Deriva do município de Meira, na província de Lugo, Galiza, Espanha.

Álvaro Dias
Dias tem origem patronímica. Equivale ao Diez espanhol. Deriva do nome próprio Diago, variante de Diego, Tiago e Iago. Na Idade Média, quando foram adotados sobrenomes, o patriarca devia chamar-se Diago.

João Amoedo
Amoedo é toponímico de origem galega. É o nome de um distrito do município de Pazos de Borbén, na província de Pontevedra, Galiza, Espanha.

Jair Bolsonaro
Bolsonaro é topônimo. É transcrição errônea do original Bolzonaro. O patriarca deve ter sido originário do município de Bolzano Vicentino, situado na província de Vicenza, Vêneto, Itália.

Guilherme Boulos
Boulos é patronímico. É a versão árabe de nosso nome próprio Paulo. A transcrição Boulos vale para a fonética francesa. Para ser pronunciado corretamente por nós, deveria ser grafado Bulos. Esse nome sugere que a família tem origem cristã.

Fernando Haddad
Haddad é nome de profissão. Em árabe, designa o ferreiro, uma das raras profissões da Idade Média, época em que o homem era faz-tudo, sem especialização. Este candidato é descendente longínquo de um artesão da forja.

Ciro Gomes
Gomes é sobrenome patronímico comum ao espanhol e ao português (Gómez/Gomes). A origem é o nome próprio Gome, difundido na Idade Média, hoje desaparecido. Gome pertence à mesma raiz do latim homo (=homem).

Marina Silva
Silva é o sobrenome mais difundido nos países de fala portuguesa. É considerado toponímico, derivado do latim silva (=selva, mato, bosque, floresta). No Brasil, sua difusão foi amplificada pelo fato de muitos ex-escravos o terem adotado como nome de família.

Geraldo Alckmin
Alckmin não tem origem clara. É forte a probabilidade que derive do árabe al-kimyia, que significa química e também alquimia. Se assim for, trata-se de nome ligado ao ofício do patriarca.

Convite (acrescentado em outubro 2020)
Por ocasião das eleições 2020, escrevi novo artigo onde analiso o sobrenome dos candidatos à prefeitura paulistana. Está aqui.

Convite (acrescentado em novembro 2020)
Tendo em vista o sucesso deste post, recomendo ao distinto leitor dar uma espiada no artigo que escrevi para o Correio Braziliense em abril 2020 com outra hipótese para a origem do sobrenome Bolsonaro. Está aqui.

Banalização da indecência

José Horta Manzano

Na política e na sociedade, a decência tem-se tornado artigo de luxo, raro, cada dia mais difícil de alcançar. Nem sempre foi assim, acreditem. Não digo que, décadas atrás, políticos e autoridades agissem com decoro e comedimento em todas as situações. Não vamos nos enganar. Escândalos havia, sim, mas eram exceções. Hoje tornaram-se norma.

Sempre houve alguma figurinha carimbada da qual se podiam esperar barbaridades. Lembro de Tenório Cavalcanti, alagoano de nascimento, que evoluiu na política do Rio de Janeiro nos anos 1950 e 1960. Conhecido como o homem da capa preta, andava armado o tempo todo, às vezes com uma metralhadora que levava o nome inocente de Lurdinha. O homem protagonizou um episódio tragicômico no dia em que, em plena sessão da Câmara, sacou dum revólver pra ameaçar um outro deputado. Não chegou a atirar, mas provocou momentânea incontinência urinária no colega ameaçado. O caso entrou para os anais da Casa.

A quebra da decência, que antes era folclórica e espetaculosa, hoje em dia é silenciosa, bem mais sutil do que no tempo dos deputados cangaceiros. Por desgraça, porém, está mais generalizada. Os pecadores são tantos, que o pecado acaba assumindo ar de normalidade. É uma lástima que isso aconteça. Pelas conclusões da filósofa Hannah Arendt, a banalização do mal pode ter consequências devastadoras. Pode significar a autodestruição de uma sociedade.

A Folha levantou o prontuário dos candidatos às eleições do mês que vem. Limitou-se a investigar a situação dos envolvidos na Operação Lava a Jato. Constatou que pelo menos 19 réus e 12 acusados(!) na operação disputam o voto do eleitor descuidado. E tudo bem. A lei, é verdade, não impede que esses elementos se candidatem. É que, até não faz muito tempo, o sentimento de decência bastava para mantê-los afastados. Já não basta.

É inevitável concluir que, entre nós, a noção de decência anda frouxa. Diluída, está escorrendo pelo ralo. Chegou a hora de cercear pela força da lei o que bambeou por afrouxamento do decoro. A Lei da Ficha Limpa acaba de provar sua enorme utilidade: livrou-nos da figura nefasta e impertinente de um ex-presidente hoje encarcerado.

Por melhor que seja, no entanto, está evidente que essa lei não é suficiente. A próxima legislatura terá de debruçar-se sobre o problema e encontrar jeito de apertar o cinto. Não é possível que gente em débito com a Justiça se candidate para representar o povo. Não dá mais.

País das maravilhas

José Horta Manzano

Crescer 50 pontos em 8 anos no Pisa ‒ exame internacional de avaliação do Ensino Médio.

Usar inteligência e tecnologia para combater o crime organizado.

Aprimorar o Bolsa Família, com adoção de medidas que garantam uma “porta de saída” efetiva, por meio de qualificação profissional e empreendedorismo.

Fazer o país crescer 4% ao ano.

Criar pelo menos 10 milhões de empregos.

Ampliar o espaço do Brasil nas negociações políticas e comerciais globais.

Os objetivos citados foram extraídos ipsis litteris do programa de alguns dos candidatos à Presidência. Dei uma olhada na carta de intenções de cada um deles. Tirando alguma proposta folclórica (vinda de concorrente nanico) ou de viés marcadamente ideológico (emanada de algum postulante situado na extremidade do espectro político), os programas são excelentes. Todos prometem dar o melhor de si para o bem do Brasil.

Há até pontos em que todos estão de acordo. Por exemplo, nenhum propõe incentivar a criminalidade, nem aumentar a pobreza, nem declarar guerra à Mongólia. Com maior ou menor ênfase, todos pregam o combate ao crime e o aprimoramento da Instrução Pública. Todos exaltam a inserção do Brasil no mercado mundial ‒ o detalhe curioso é que a extrema esquerda gostaria de restringir a abertura à América Latina, enquanto os demais concordam com expandi-la para todo o planeta, algo que parece lógico.

by Constantin Ciosu (1938-), desenhista romeno

Pouco importa, são detalhes. O principal é que, em teoria, todas as listas de intenções são excelentes. Nenhuma ‒ digo bem: nenhuma ‒ enaltece o apoio à corrupção nem o assalto ao erário. Embora não mencionem apoio à Operação Lava a Jato, transparece acordo implícito.

Aqui e ali, topa-se com um detalhe picante. Esquecido de que o mandato é de 4 anos, um dos candidatos promete fazer o Brasil crescer no Pisa nos próximos 8 anos. Sem cerimônia, está invadindo o mandato do sucessor. Mal-educado.

Não temei, brava gente! Votai em quem quiserdes, que todos os candidatos à Presidência são supimpas! Todos prometem conduzir-nos ao país das maravilhas ‒ no papel, pelo menos. Inxalá!

O day after

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 13 agosto 2016

Faz mais de trezentos anos que Isaac Newton estendeu monumental tapete vermelho para o desenvolvimento da Física moderna. Por praticidade, o título quilométrico de sua obra foi encurtado. Basta mencionar os Principia e todos saberão que se fala do genial britânico. A terceira lei de Newton reza que «actioni contrariam semper & æqualem esse reactionem» ‒ a toda ação corresponde igual reação em sentido contrário. Além de valer para a Física, o princípio se aplica também à vida real.

Nações atravessam períodos de crise, aqueles em que se sente o sacolejo e se percebe que a nave está para soçobrar. Se o barco não afundar de vez, é certeza que, mais dia menos dia, a lei newtoniana se aplicará. O pós-crise será um combate às causas que, no imaginário das gentes, tiverem engendrado o sufoco. Só que tem uma coisa: paixões humanas nem sempre se encaixam no rigor científico ‒ guardam certa propensão ao exagero. Reações podem ser desproporcionadas, mais intensas que as forças que as geraram. Chegam-se a tomar canhões para exterminar pardais. A história registra bom número de crises que desembocaram em solução despropositada. Contrária, sim, porém mais vigorosa do que seria razoável. Há casos em que reação extremada traz resultados positivos. Mas não é garantido.

Sir Isaac Newton

Sir Isaac Newton

O ataque com que tropas japonesas surpreenderam uma desprevenida marinha de guerra americana em Pearl Harbor nocauteou os EUA. Naquele dezembro de 1941, momento grave de estupor, vergonha e cólera, quis o destino que administradores competentes e bem-intencionados estivessem no comando do país. A reação, forte e coordenada, os levou a derrubar o inimigo e a ganhar a guerra.

A humilhação sofrida pela Alemanha na Primeira Guerra e as indenizações que foi obrigada a pagar estrangularam-lhe a economia e ladrilharam a via para um salvador da pátria, um arrivista que prometesse desforra, glória e vida melhor para todos. No terreno fértil, brotou um ditador abilolado. Na esperança de lavar a honra ofendida, todos obedeceram a seu mando desvairado. No embalo da louvação, o mandachuva chegou a imaginar-se senhor do universo e… exagerou. Deu no desastre que conhecemos.

A revolução iraniana de 1979, que visava a coibir excessos da era do xá, abusou da lei de Newton e virou o país de ponta-cabeça. Os aiatolás foram tão incisivos e tão visceralmente opostos ao regime anterior que o mundo, alarmado, botou a velha Pérsia de molho, à margem da sociedade civilizada.

Aiatolá 1O Brasil atravessa momento histórico peculiar. Nos últimos dois anos, acontecimentos pouco ortodoxos se sucedem num crescendo infernal. Não se passam dois dias sem que novo escândalo venha nos embasbacar. Verbos empoeirados por falta de uso e adjetivos antes escassos tornaram-se triviais. O susto, o assombro, o estarrecimento, o espanto, a comoção tornaram-se feijão com arroz.

Desde o tempo das cavernas, a sabedoria popular entendeu que não há mal que sempre dure nem bem que nunca se acabe. Como numa grande ópera verdiana, o deprimente espetáculo que nos é dado presenciar vai terminar por falta de personagens. Não está longe o dia em que o último acusado será devidamente apanhado e julgado. E aí, como é que fica? Que virá depois?

by Freydoon Rassouli (1943-), artista iraniano

by Freydoon Rassouli (1943-), artista iraniano

A reação virá intensa como preconiza a lei de Newton ‒ isso é certeza. Sob que forma? Ora, num país onde até o passado pode mudar, impossível será vaticinar com precisão. O nojo que os atentados à coisa pública estão instilando nos cidadãos honestos há de nos predispor a varrer tudo e todos os que se tiverem beneficiado com o descalabro. É aí que mora o perigo. O risco grande é ver surgir novo ser providencial, um caçador de marajás 2.0, uma alma pura e honesta em versão repaginada, um novo Antônio Conselheiro ao qual, em desespero, muitos perigam se abraçar. Hoje em dia, basta ter prontuário virgem para ser considerado apto a representar cidadãos e a dirigir o país.

De olho nas próximas eleições presidenciais, já aparecem as primeiras sondagens. Parece-me cedo demais pra nisso, que ainda tem muita poeira pelo caminho. Aposto que o próximo presidente da República será alguém que nunca se candidatou antes, elemento novo que encarne a esperança de que corrupção e roubalheira, ainda que não desapareçam de todo, voltem a níveis «comportados» e não tornem a precipitar o país na ribanceira. É tudo o que esperamos da lei de Newton.

Questão de interpretação

José Horta Manzano

Foto Agência Estado

Foto Agência Estado, 5 out° 2014

A fotomontagem que ilustra este escrito saiu este 5 out° no Estadão online. Ela abre portas para várias interpretações:

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Vestidos com as cores primárias – vermelho, azul e amarelo – os candidatos deixam claro que cobrem todo o espectro de qualidades que se podem esperar de um presidente da República. Dão, assim, uma banana para os nanicos.

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Nos bastidores, os três combinaram para não usar roupa da mesma cor. Para saírem bem caracterizados na foto.

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Cada um deles vestiu a cor do principal partido de sua pletórica coalizão.

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A candidata que aparece à esquerda já vem ocupando o cargo máximo da República faz quatro anos – o que justifica a silhueta mais nutrida.

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O candidato que aparece no meio não passou de governador de Estado – fato que explica a silhueta levemente acima do que é aconselhado para sua idade.

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A candidata que aparece à direita nunca ocupou cargo de chefia no Poder Executivo – o que justifica sua aparência esgrouviada.

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Aécio e Marina, optimistas, mimam o número 2 com os dedos. Cada um sinaliza estar confiante de que ocupará o segundo lugar na classificação.

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Aécio e Marina, optimistas, mimam o número 2 com os dedos. Cada um sinaliza estar confiante de que estará presente no segundo turno.

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Todos acenam com a mão direita, menos Aécio. Se for canhoto, faz sentido. Se não for, ai, ai, ai. Não é bom sinal. Convicção se mostra com a mão dominante.

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Dois dos candidatos mimam o V da vitória enquanto dona Dilma, com ar resignado, parece já dizer adeus.

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Basta de divagação. O voto aqui na Europa já terminou. É questão de fuso horário. O que tem de brasileiro não está no gibi. Em Genebra, tinha gente saindo pelo ladrão.

Tenho uma sugestão a fazer a quem organiza o voto dos brasileiros no exterior. No Brasil, a população é bombardeada durante semanas pela propaganda eleitoral dita gratuita. Todos acabam conhecendo e guardando de cor nomes e números. Aqui não é assim que acontece.

Não temos propaganda eleitoral. Eu imaginava que a «urna» mostrasse o nome dos onze candidatos numa tela táctil. Aí, era moleza: bastava passar o dedo em cima do candidato desejado e confirmar. Mas não funciona assim. O eleitor tem de teclar um número – que ele não conhece necessariamente.

Minha sugestão, em consideração aos eleitores do estrangeiro, é que nos forneçam uma lista com o nome dos candidatos e o número correspondente a cada um. O que é evidente para uns nem sempre é claro para outros.