Navios de guerra

José Horta Manzano

IRIS Makran, maior navio de guerra iraniano

Neste momento, o governo brasileiro está embaraçado diante de um dilema. Mas vamos começar pelo começo. Na origem do problema, está o Irã, esse “enfant terrible” do tabuleiro mundial, aquela batata quente que passa de mão em mão e que ninguém quer segurar.

Desde que passou pela revolução de 1979, que o transformou numa teocracia xiita, o Irã passou a trafegar do lado sombrio da rua, sancionado pelos EUA, hostilizado pelos vizinhos, olhado com desconfiança pelos países democráticos. Desde então, a antiga Pérsia vai se virando como pode.

Faz décadas que seu objetivo maior é fabricar uma bomba nuclear. Nem pensar em lançá-la sobre a cabeça de algum país inimigo, que ninguém é besta. A finalidade é puramente dissuasiva. No dia em que conseguirem, terão provado ao mundo que são fortes, que sobrevivem apesar das sanções econômicas, que têm nível superior de tecnologia. Será uma vitória psicológica.

Acontece que o resto do mundo, em especial os países que já possuem a tecnologia nuclear, não estão nada interessados em receber novo membro no clube. Imaginam que quanto mais membros houver, maior será o risco de um dia ocorrer algum acidente ou erro de manipulação de consequências imprevisíveis.

Sem verdadeiros amigos entre os grandes, o Irã procura contacto entre os países de segunda linha. Os iranianos querem mostrar que, apesar de não terem (ainda) a bomba, já contam com imponente marinha de guerra. Com esse fim, despacharam dois navios para uma volta ao mundo. Um deles é a maior nave da frota iraniana, um antigo petroleiro adaptado para portar canhões, lançar mísseis e receber helicópteros. A outra nave é uma fragata de dimensões convencionais, também armada de canhões e mísseis.

Gostariam de lançar âncora em todos os países importantes. O problema é que os portos estão fechados para eles. Nem América do Norte, nem Europa, nem Japão, nem Austrália. Rússia e China fazem de conta que não é com eles. Sobraram potências regionais. Os dois navios já passaram pela Indonésia e agora se dirigem ao Brasil.

IRIS Dena, fragata da marinha de guerra iraniana

A autorização de atracar no Rio de Janeiro está incerta. Num primeiro momento, o Brasil deu seu acordo. Em seguida, em razão da viagem de Lula aos EUA, a licença foi suspensa, dado que o momento não era conveniente. Agora, passada a visita de Lula a Biden, os iranianos insistem em vir. Por trás, os EUA pressionam para que não seja dada autorização de atracar em nenhum porto brasileiro.

Nosso governo está entre a cruz e a espada, num dilema cabeludo. Se autorizar os navios de guerra a lançar âncora no Rio, vai desagradar muita gente fina, como EUA, Europa e demais democracias. Se negar permissão, como é que fica a “neutralidade” da política externa brasileira, que Lula apregoa dia sim, outro também?

Na minha visão, se a neutralidade dá liberdade de comerciar com todos os países, não implica aderir à ideologia nem apoiar as guerras de nenhum deles. Já abrir os portos para receber naves de guerra carregadas de mísseis e canhões é outra coisa. Não tem nada a ver com comércio e pode passar impressão de cumplicidade. Melhor evitar.

Dependesse de mim, a autorização seria negada.

Talibã

José Horta Manzano

Nestes dias em que o mundo se surpreendeu com a queda ultrarrápida do governo afegão diante dos talibãs, todos procuram culpados. Como é possível que o país tenha caído com tanta facilidade?

Análise é o que não falta. Há quem aponte a falta de preparação do exército afegão. Há quem diga que as tropas legalistas não eram em número suficiente diante dos revoltosos. Há ainda quem acredite que o exército nacional, além de mal preparado pelos americanos, estava mal equipado.

É possível que todas essas críticas sejam apropriadas – é difícil fazer afirmação definitiva. No entanto, elas ignoram um problema de raiz, que, a meu ver, está na origem dos males atuais: o Afeganistão não é um país. Pelo menos, não é o que costumamos entender como um estado-nação.

Aquela região é um mosaico de etnias, que falam línguas contrastadas e que, muitas vezes, professam religiões antagônicas. As línguas do grupo iraniano são majoritárias (baluche, aimaque, hazara, tadjique, pachtu), mas extensas regiões do país falam línguas do grupo túrcico (turcomeno, uzbeque, quirguiz, todas aparentadas ao turco). Há ainda línguas minoritárias, classificadas fora desses troncos principais. Dê uma olhada no mapa etnolinguístico que reproduzi logo na entrada do post.

Essa diversidade de falares impede a intercompreensão. Em outros termos: ninguém o que diz um habitante de outra região. Para se entenderem, teriam de eleger uma língua comum – uma lingua franca –, objetivo impossível para um povo de poucas letras. Só essa particularidade, de não se entenderem, já é barreira intransponível para a formação de um país.

Imagine o distinto leitor o drama que seria não poder dialogar com os nativos de um Estado vizinho ao seu. Como é que se há de governar uma tal colcha de retalhos? Só se consegue pela força, com mão de ferro. Foi o que fizeram as forças de ocupação durante 20 anos e é exatamente o que os novos donos da região – os talibãs – se preparam a fazer.

Assim mesmo, é bom ter em mente que esse tipo de mosaico transformado em Estado é fonte permanente de tensões. Até países altamente civilizados, como a Bélgica, por exemplo, assistem a confrontos periódicos entre as comunidades que o compõem. No Afeganistão, é certeza: os talibãs nunca poderão se mostrar “bonzinhos” nem afrouxar o regime, sob pena de o país se desagregar.

Taliban? Talibã? Taleban? Talebã?
Tenho visto na imprensa todas essas grafias e ainda mais algumas. Como escrever certo? Vamos começar pelo começo.

Talibã é palavra afegã inspirada no termo árabe taleb, que quer dizer estudante. No começo, a palavra designava os estudantes de teologia que, nos anos 1990, tomaram conta do país. Radicais, impetuosos e despreparados para governar, fizeram um desastre. Foram contidos pelas forças de ocupação de uma coalizão encabeçada pelos EUA e coadjuvada por países europeus. Só que a presença estrangeira não resolveu os conflitos seculares. Mal os ocupantes começaram a se retirar, tudo está voltando ao que sempre foi.

Agora, que sabemos de onde vem a palavra talibã, como aportuguesar a grafia? Dado que quem faz a língua é o falante, as coisas vão se acomodar com o tempo. Por enquanto, é muito cedo. Cada jornalista escreve como imagina ser correto. Eu escreveria assim, como pronunciamos nós: talibã. Com inicial minúscula e ã no final, que é nossa maneira de aportuguesar (Irã, Omã, Amsterdã).

Em nenhum caso eu poria inicial maiúscula. Assim como democracia, monarquia, fascismo, getulismo e janismo levam inicial minúscula, talibã também deve levar. Eu evitaria o coletivo “o Talibã”. Melhor falar no “regime talibã” ou, no limite, “regime dos talibãs”.

Mas isso é o que este escriba acha. É possível que o uso imponha outras normas. Se assim for, seguiremos o cortejo.