A grande derrota de Bolsonaro

José Horta Manzano

Desde que a pandemia tomou conta do mundo, Bolsonaro não perdeu ocasião de desdenhar. Chamou-a de gripezinha. Assegurou que, com dois ou três comprimidos de cloroquina, a questão se resolvia. Zombou do povo que o elegeu ao nos tratar de maricas. Mandou que todos se juntassem e se esfregassem, que era pra pegarem a doença, eliminando, ao final, os mais frágeis – todo o mundo tem de morrer mesmo, não é? Antivax desde o primeiro momento, segurou quanto pôde a compra das vacinas. Tentou frear a produção do Butantan porque, politicamente, não lhe convinha.

Mas há uma justiça. O preço da vitória – 600 mil mortos – foi elevado, mas o Brasil acabou vencendo. Bolsonaro perdeu. Ele queria chegar à imunidade coletiva (ou “de rebanho”, expressão que ele prefere) sem aplicação de vacina. Na sua cabecinha tosca, a doença eliminaria os fracos e deixaria os robustos, num arremedo de eugenismo tropical.

Sua estratégia não deu certo. Na sua biografia, estarão para sempre gravados os mortos e o epíteto de genocida. E a vacina foi aplicada. Graças ao trabalho de governadores menos obtusos que o capitão e graças ao empenho de todo o pessoal da área de saúde, o Brasil já vacinou integralmente mais da metade de seus habitantes. Apesar da inépcia de um Pazuello, aquele que, em matéria de saúde pública, entrou sem saber e saiu sabendo menos ainda.

Segundo a contabilidade global de vacinação contra a covid-19, atualizada em 25 de novembro, o Brasil aparece em honrosa posição, com 60,4% da população completamente vacinada. Está até melhor que os EUA, que só vacinaram 59,1% dos habitantes. Estamos muito à frente de grandes países produtores de vacina como Rússia (38,1%) e Índia (30,6%).

À nossa frente, só aparecem uns poucos microestados e alguns países europeus. Portugal, com espantosos 86,6%, é o país europeu que mais vacinou. Bem à frente de potências como a Alemanha (68.2%), França (69,5%) e Reino Unido (68,8%).

Estes dias, foi anunciada a descoberta de uma nova variante, batizada de Ômicron, que surgiu na África do Sul. É cepa perigosíssima, altamente contagiosa, bem mais assustadora do que todas as que tinham aparecido até agora. Bolsas caíram, aeroportos se fecharam, a covid voltou a frequentar as manchetes.

Mas por que razão essas novas cepas surgem sempre em países populosos e pouco desenvolvidos? Tivemos a variante indiana Beta, a brasileira Gama, as sul-africanas Delta e, agora, Ômicron. A razão é simples: o vírus gosta de gente. Quanto mais gente houver, maior a possibilidade de ajuntamentos, de promiscuidade, de extenso contágio. O atraso na vacinação e o descaso na observação das medidas de contenção – álcool em gel, máscara, distanciação social – são fatores agravantes.

Dado que a taxa de vacinação completa ainda está baixa em alguns países populosos, a ameaça não desapareceu. Alguém já disse, com razão, que o planeta só estará protegido quando todos os cidadãos estiverem protegidos. Não adianta um país atingir 100% de plano vacinal, se os demais ainda estiverem gerando cepas resistentes às vacinas disponíveis. Com essas variantes agressivas, o mundo não está livre de voltar ao ponto de partida e ter de esperar por novas vacinas. E a começar a contar de novo os mortos.

Índia (30,6%), África do Sul (23,8%), Rússia (38,1%), Nigéria (1,7% !), Indonésia (34,0%), Paquistão (22,5%), Bangladesh (21,7%) são países populosíssimos, com plano vacinal em atraso. Constituem terreno fértil para a epidemia. Vamos torcer para que nenhuma cepa resistente se desenvolva lá enquanto o vírus ainda circula redondo.

Enquanto seu lobo não vem, alegremo-nos, irmãos! O Brasil venceu Bolsonaro. Apesar do atraso e da má-fé do capitão, a competência nacional em matéria de vacinação forçou a porteira e mostrou que o povo brasileiro é maior que a ignorância do presidente e que o oportunismo irresponsável do grupelho que o cerca.

Militares nos EUA e no Brasil

Nos EUA, militares seguiram a lei em vez de Trump, e afastaram temor que agora há no Brasil

Pedro Doria (*)

Comandante do Estado-Maior das Forças Armadas americanas, o general Mark Milley discursou em novembro de 2020 sobre o dever de cada militar em sua visão, após o presidente Donald Trump promover uma série de mudanças no alto escalão do Pentágono. “Não fazemos juramento a um rei”, ele afirmou, “a um tirano ou a qualquer pessoa. Juramos defender a Constituição dos Estados Unidos.”

O cargo de Milley está acima do dos três comandantes de cada uma das Armas e ele é o militar mais graduado do país, imediatamente abaixo do secretário da Defesa, que em geral é civil. Existe um motivo para que, em democracias liberais, militares não possam se manifestar politicamente. Não é uma razão trivial. É, isso sim, uma razão da qual depende a essência da democracia.

As Forças Armadas são, o próprio nome diz, a instituição mais armada de uma nação. Tem tanques, mísseis, caças, toda sorte de armas, e profissionais especialistas em seu manuseio. Elas precisam existir. Se um país é atacado, precisa se defender. A existência de Forças Armadas já é um motivo para evitar guerras.

Mas isso cria, para democracias, um dilema. Armam-se essas instituições e seus integrantes – e o que acontece se elas decidem se envolver em política? O debate público não pode envolver violência. Não pode, portanto, ter a participação de elementos que ameacem de alguma forma, com violência, a defesa de seus ideais. É por isto que qualquer cidadão, quando escolhe a carreira militar, abre mão imediatamente de se manifestar publicamente sobre política.

Porque tem acesso às maiores armas de um país, não pode entrar no debate sobre política. É preciso que o debate público ocorra sem que um lado tenha força militar.

Não é uma peculiaridade do Brasil. Está no alicerce de qualquer democracia. O que o alto-comando do Exército decidiu na quinta-feira, ao não punir o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello por ter participado de uma manifestação com o presidente Jair Bolsonaro, é, portanto, isto: militares já podem se manifestar publicamente em favor do presidente da República. Uma decisão temerária: o Exército acaba de se colocar na política.

(*) Pedro Doria é jornalista e escritor. O artigo foi publicado no jornal O Globo de 4 junho 2021.

Perigo vermelho

José Horta Manzano

Consultei o Regulamento Disciplinar do Exército, código oficializado em agosto de 2002 na forma de decreto-lei. Com 74 artigos, ele é extenso, mas claro e preciso.

Faz alguns dias, por ocasião de uma manifestação de rua, Eduardo Pazuello subiu ao palanque do presidente. Não precisa ser versado nas artes jurídicas pra entender, após rápida vista d’olhos ao regulamento, que o general transgrediu. A disciplina é valor essencial da carreira. Na visão militar, todo desvio de conduta, fosse ele pequeno, exige punição.

Pois não foi o que ocorreu. Depois de tergiversar por dias e dias, o alto-comando do Exército decidiu não decidir. Resolveram que o general não transgrediu e que tudo fica por isso mesmo. Soou estranho. A inabitual condescendência não encontra justificativa no regulamento. Portanto, a razão tem de ser procurada alhures.

Para entender, convém voltar meio século, ao tempo em que a Guerra Fria determinava o destino do planeta e assombrava muita gente. No Brasil, a justificativa que disparou o golpe de 64 e que perpassou todo o período da ditadura militar foi defender o país contra a ameaça comunista. Ao apagar das luzes do regime militar, quando se extinguia a repressão, surgiu o PT como encarnação do perigo vermelho.

Treze anos de governos petistas mostraram que, de comunistas, eles não têm nada – se é que um dia tiveram. Estão mais é pra oportunistas, trambiqueiros e desonestos. No entanto, tudo indica que, nos círculos militares, a mensagem não chegou. Tem-se a impressão de que as autoridades militares estacionaram nos anos 70 e continuam a enxergar o PT como a encarnação do perigo vermelho que um dia ainda há de implantar o comunismo no Brasil. E o Lula, naturalmente, é seu símbolo maior.

A absolvição de Pazuello se inscreve nessa lógica: contra o comunismo, Bolsonaro surge como o melhor antídoto. Daí apoiarem integralmente o capitão e dobrarem-se cegamente a seus caprichos. Há sinceridade na luta dos militares, mas há sobretudo grande ingenuidade. Eles parecem ter dificuldade em entender que o Muro de Berlim caiu em 1989, que o mundo mudou, que o combate hoje é outro.

Até onde darão apoio a Bolsonaro? Será que toda a cúpula militar enxerga o mundo pela mesma luneta? Será que todos concordariam com a quebra das instituições em favor de um capitão arrivista, a fim de proteger o país contra o Lula?

Não tenho a resposta. As sugestões do distinto leitor são bem-vindas. Cartas para a redação, por favor. E bom fim de semana a todos.

Na semana que passou

Carlos Brickmann (*)

Frente a frente
Seria ótimo promover uma acareação entre três membros do Governo: o publicitário Fábio Wajngarten, que disse que Bolsonaro ignorou ofertas de vacinas; o diplomata Ernesto Araújo, que confirmou a ordem do presidente de negociar a importação de cloroquina; e Pazuello. É provável que a tal “síndrome vasovagal”, que dizem que teve e levou à interrupção da sessão da CPI, acabe sendo chamada pelo nome mais popular.

Dilmismo bolsonarista
O então deputado Jair Bolsonaro disse que, para o país tomar jeito, era preciso que morressem umas 30 mil pessoas. Donde se conclui que o general Pazuello atingiu a meta, dobrou a meta e dobrou-a de novo até ser afastado.

(*) Carlos Brickmann é jornalista, consultor de comunicação e colunista.

O general e a gravata

José Horta Manzano

Curioso para conhecer Pazuello, o ex-ministro que eu nunca tinha tido oportunidade de ver nem de ouvir, fui dar uma espiada em seu depoimento de ontem na CPI. Devo admitir que fiquei um tanto decepcionado. Depois de tudo o que já li sobre ele, imaginava dar de cara com um General Trovão, um Figueiredo dos tempos atuais, um líder do tipo “deixa comigo, que eu mato e arrebento”. Em vez disso, o homem está mais pra Zangado, um dos anões que rodeavam a Branca de Neve, aquele que nunca sorria. Parece um Zangado falante, mas sempre de maus bofes.

Na foto tirada durante o depoimento, o general aparece de olhos fortemente avermelhados. Fica a nítida impressão de ele não ter dormido na noite anterior – o que poderia explicar o quase-desmaio que sofreu à tarde. É difícil imaginar que ele tenha passado a noite se agitando num baile funk, mas é concebível que tenha ficado acordado até altas horas recapitulando as respostas que lhe tinham sido aconselhadas pelos media trainers contratados pelo Planalto. Pode ser também que, nervoso, tenha simplesmente perdido o sono.

Fiquei surpreso com a inabilidade dos senadores para conduzir o interrogatório. O próprio interrogado parecia mais bem preparado que eles, quando deveria ser exatamente o contrário. Os inquiridores é que tinham de surpreender o convocado com perguntas inesperadas, incisivas e inescapáveis. Em vez disso, notei certa displicência entre os parlamentares, como se estivessem surpresos pelo fato de o general dar respostas firmes sem tropeçar. É verdade que senador não está necessariamente formado para a função de promotor público, mas a CPI tem como se fazer assessorar por especialistas trabalhando em tempo real. Se não o fez, foi porque não quis.

Fiquei encantado com a gravata do general. Não me esqueço de quando esse modelo foi apresentado ao mundo. Foi em Copenhague (Dinamarca), em outubro de 2009, no dia em que o Comitê Olímpico Internacional anunciou que atribuía ao Rio de Janeiro a organização das Olimpíadas 2016. Representando o Brasil, um grupo eufórico estava presente. Quando souberam do resultado, soltaram gritos e deram pulos de contentamento. Na época, a gente imaginou que fosse por patriotismo. Usavam todos esse modelo de gravata.

Como modelo, até que ela não é feia, com as cores da bandeira. Só que os primeiros usuários, além de não serem modelos de desfile de moda, tampouco eram o que se pode chamar de modelo de virtude. Os figurões mais proeminentes estão na foto acima, todos devidamente engravatados com o mesmo modelito do general. Vamos ver quem são. Da esquerda para a direita.

Eduardo Paes
Atual prefeito do Rio, é o único em atividade neste momento. Não chegou a ser preso, mas a lista das acusações de corrupção que o perseguem é longa como um dia sem comer.

Sergio Cabral
Foi governador do Rio. Condenado por corrupção e outros crimes, não só passou pela casa prisão, como ainda está lá. Condenado a mais de 200 anos de privação de liberdade, ainda deve permanecer encarcerado por algum tempo.

Carlos Arthur Nuzman
Era o presidente do Comitê Olímpico Brasileiro à época. Acusado de corrupção, passou pela casa prisão em 2017.

Lula da Silva
Foi presidente do Brasil. Condenado por corrupção e outros crimes, passou pela casa prisão, onde purgou mais de ano e meio.

Orlando Silva
Dos retratados, este parece ser o mais maneiro. Foi ministro do Esporte. Teve problemas com a justiça por ter comido uma tapioca de R$ 8,30 e posto na conta da Viúva. Visto que é arraia miúda demais, não passou pela casa prisão.

Não conheço o sexto cavalheiro.

Tendo em vista a folha corrida dos primeiros portadores da gravata verde-amarela, vale indagar que motivo levou o general a enrolar essa gravata de corruptos em torno do pescoço ontem. Algumas suposições:

• Ele não assistiu à cerimônia de 2009, portanto não sabe que os que lançaram a moda são personagens pouco recomendáveis, pra dizer o mínimo.

• Imaginando que ia acabar preso, já veio paramentado para seguir os passos dos que o precederam.

• A coisa é o que parece: sabe-se lá por que, vestiu a gravata em homenagem à bandidagem.

• Distraído, saiu de casa de camisa aberta, como quem se prepara para um passeio num shopping de Manaus. Foi Bolsonaro que, ao vê-lo descamisado, emprestou sua gravata de estimação.

Pode ser alguma dessas razões. Ou nenhuma das anteriores. O distinto leitor o que acha?

A pátria amada e a macacada

José Horta Manzano

Por ocasião do depoimento do general Pazuello(*), que deve ser dado daqui a dois dias (se, até lá, ninguém levantar alguma questão de embargos infringentes), me vem à mente uma traquinagem de meu tempo de estudante.

Lá se vão muitas décadas, quando os generais ainda nem haviam instalado a ditadura, a gente se sentia livre de fazer troça com todo o mundo, inclusive com os militares. Ainda bem que deu tempo, porque, logo em seguida, os tanques sairiam às ruas e brincadeiras desse tipo seriam tiradas de circulação por 20 anos.

Talvez o distinto leitor conheça a Canção do Exército – no youtube aqui. É aquela que começa assim: “Nós somos da pátria a guarda, fiéis soldados por ela amados”. Pois é, uma das características do adolescente é a irreverência. Minha geração não escapou, como nenhuma escapa.

Aprendemos a cantar esse hino, não me lembro por que razão. Terá sido dado pelo professor Caldeira, de Canto Orfeônico. O que sei é que fizemos uma paródia e estropiamos a letra. No pedaço em que diz:

Porém se a pátria amada
for um dia ultrajada,
lutaremos sem temor.

A gente cantava:

Porém se a pátria amada
precisar da macacada,
ó meu Deus, que maçada!

Bom, essa era a letra light, cantada quando havia crianças na sala. Na (nossa) versão original heavy, as palavras eram um pouco mais encorpadas:

Porém se a pátria amada
precisar da macacada,
puxa a cerda, que caçada!

No último verso, escrevi sons que lembram as palavras originais; cada um que use a imaginação pra descobrir o que está por trás da tarja preta.

Na época, cantar assim era uma ousadia; hoje, principalmente depois que o bolsonarismo espalhou pelo país seus modos rasteiros, ninguém mais se choca por tão pouco. No entanto, por mais que nosso presidente baixe o nível, não consigo acompanhar. Continuo me comportando como se houvesse permanentemente senhoras na sala. Não é na minha idade que vou começar a soltar palavrão por aí. Talquei?

Como eu dizia lá no começo, o comportamento do general Pazuello me fez lembrar a paródia dos ginasianos dos anos 1960. Ao tentar se esconder pra não ter de revelar seus “malfeitos”, o ex-ministro prova ter no ombro muita estrela pra pouca valentia. Sua conduta combina com nossos versinhos:

Porém se a pátria amada
precisar da macacada,
puxa a cerda, que caçada!

Se Pazuello estivesse no lugar do general Eisenhower, aquele que comandou o exército americano na Europa durante a Segunda Guerra, teria se escondido, e hoje estaríamos todos falando alemão. (Que é, sem dúvida, uma bela língua, mas o problema não é esse.)

(*) Para conhecer a origem e o significado do sobrenome do general, leia o artigo que escrevi em março último.

O destino de Pazuello

José Horta Manzano

Não acredito. Tirando esposa e família próxima, não acredito que alguém possa estar ‘preocupado’ com o destino do General Cloroquina. No fundo, no fundo, o que se quer mesmo é a prisão do capitão. Na impossibilidade, a do Pesadelo já serve de aperitivo e advertência.

O chefe não perde por esperar. A hora dele vai chegar um dia. Se chegou para um Lula, por corrupção passiva, por que não haveria de chegar para um Bolsonaro, corruptor ativo?

De ministros e telenovelas

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 29 março 2021.

Não é à toa que telenovela faz tanto sucesso no Brasil. E não é de hoje. Quando não havia tevê, nossas mães e avós já se encantavam com as radionovelas. A razão é simples: brasileiro adora assistir a um espetáculo grátis. Se for dramático, melhor ainda. Se sair sopapo e palavrório, é um delírio. Se pingar sangue, então, é o nec plus ultra, o júbilo total.

Em outras terras, troca de ministros é operação que já chega ao distinto público como pacote pronto e embrulhado pra presente. Sai um, entra outro, cumprimentam-se na porta, e a vida segue macia. As tratativas e negociações que precedem a escolha fazem parte da cozinha interna e nunca são divulgadas. Entre nós, não funciona assim.

O povo aprecia um espetaculozinho. Começa já semanas antes, com ‘fritura’ pública do titular e boatos que correm. Será que cai? Será que não cai? Depois vêm os ‘convites’. Fulano foi convidado; vai aceitar? Ih, foi conversar com o presidente! Será que se entenderam? Não, parece que não deu certo. Dizem que a Ala X quer, mas a Ala Y rejeita. E assim segue, como se fosse espetáculo teatral, com a população sentada na fileira da frente. Entre uma pipoca e outra, cada um dá seu palpite.

Quando, finalmente, a coisa decanta e o novo ministro é nomeado, parece último capítulo de novela. Comentários correm soltos pelos elevadores, na rua, no cabeleireiro, no supermercado, na padaria. Passado o desenlace, todos murcham e já se preparam para a próxima atração.

É um procedimento peculiar, esse modo brasileiro de troca ministerial. Mal comparando, é como se um sujeito fosse trocar de carro e os vizinhos resolvessem se intrometer. Cada um se permitiria dar palpite (não solicitado) sobre marca, modelo e cor, tudo sob o olhar atento da rua inteira (ou do condomínio inteiro), uma multidão dividida em alas, cada uma torcendo por seu modelo ou sua cor. É surreal.

No fundo, a escolha de ministros de Estado é ato privativo do presidente da República, visto que são assessores de sua confiança – é o que reza a Constituição. Em princípio, pois, o chefe do Executivo não deve satisfações a ninguém nesse assunto. Se o povo está em desacordo com a política deste ou daquele ministério, o melhor caminho não é reclamar do ministro. Ele foi nomeado para executar a política ditada pelo chefe. No fundo, o cômico Pazuello tinha, até certo ponto, razão: “Um manda, outro obedece”.

O general ficou marcado para o resto da vida pela ingenuidade de ter pronunciado a frase, mas ela não deixa de refletir a realidade. O que se reprova não é tanto que ele a tenha dito, mas que tenha aceitado o posto, já sabedor de que teria de se curvar a um chefe iracundo. A doutora que, outro dia, recusou o posto mostrou-se também ingênua de acreditar poder impor suas visões a um presidente obcecado por conceitos que, viessem de um terraplanista, não chocariam. A ex-futura titular da Saúde escapou na undécima hora, justo a tempo de evitar ter de carregar no currículo a pecha de ter sido ministra de Bolsonaro.

Esse rebuliço que se alevanta a cada troca de ministro não desenha imagem firme e forte do governo federal. Dirigente forte, bem assentado e de pés no chão dispensa teatralidade: troca seus assessores e pronto. Tratativas há, como é natural, mas não há por que deixá-las transpirar. Com a publicidade que foi dada à contratação da quase ministra Hajjar, quem saiu mal foi o próprio presidente. Ao fim e ao cabo, a imagem passada à nação é de que foi ela a dispensar Bolsonaro, e não o contrário. Outro que saiu mal na foto foi o sucessor do general demitido. Está passando recibo de ser ministro de segunda linha – “second choice”, como diriam os ingleses. Isso é péssimo.

Inteligência e sutileza não são mercadoria abundante no Planalto, disso sabemos todos. Será essa a razão de Bolsonaro não estar se dando conta de que, ao imprimir a uma simples troca ministerial ares de espetáculo teatral, está deixando claro que o governo é fraco, hesitante e dependente da opinião alheia. Não fica bem sobretudo para um presidente que, mais de uma vez, já chegou a reclamar: “Quem manda aqui sou eu, pô!”.

Os galegos

José Horta Manzano

A contagem dos imigrantes que se estabeleceram no Brasil indica que os originários da Espanha formaram o terceiro contingente mais numeroso, atrás de italianos e portugueses. No entanto, sobrenomes de outras comunidades parecem ser muito mais difundidos que os espanhóis.

Há de ser só uma impressão decorrente da grande semelhança entre nomes portugueses e espanhóis e de imprecisões de grafia. De fato, muitos Fernandes, Gomes e Rodrigues – que a gente toma por lusitanos – são, na origem, Fernández, Gómez e Rodríguez, espanhóis da gema mal transcritos.

Na esfera pública, é ainda menos comum ver um descendente de espanhóis suceder a outro. Aconteceu estes dias um caso que está dando que falar.

É do conhecimento de todos que Bolsonaro trocou o antigo e folclórico ministro da Saúde por um novo, que ninguém sabe ainda que pito vai tocar, nem como vai se equilibrar para continuar merecendo o respeito que se deve a um médico e ao mesmo tempo escapar do desprezo que a gente sente pelo negacionismo. Dizem que o recém-chegado é admirador do presidente, o que não é propriamente o que se possa considerar excelente cartão de visitas.

Mas vamos aos nomes, aparentemente ambos galegos.

Pazuello (o que sai)
Já me detive sobre o sobrenome do ministro que se vai. Mas não custa contar de novo.

Pazuello é sobrenome de evidente origem ibérica. A raiz latina palatium (=palácio) deu, em castelhano, palacio. Na língua galega, falada nas províncias do noroeste da Espanha, palatium evoluiu para pazo, que equivale a nosso paço. Designa um solar, uma casa suntuosa.

Pazuello seria, pois, o diminutivo de pazo = um pequeno solar, um palacete. O nome é curiosamente de formação híbrida. Embora o núcleo seja galego (pazo), o sufixo uello é castelhano legítimo. Em galego, diminutivos se constroem com o sufixo iño, que corresponde a nosso inho. Portanto, seria de esperar um Paziño (Pazo + iño).

Híbrido ou não, neste ponto, surge um problema. O sobrenome é raríssimo. Tão raro que, vasculhando a lista telefônica da Espanha inteira, não se encontra ninguém que o ostente.

No entanto, ele aparece no Dicionário Sefaradi de Sobrenomes, obra compilada por Paulo V. Faiguenboim & alia, ao lado de variantes tais como Pazuelo (com um L só) e Pazuelos (com S no final).

Sefardis são os judeus espanhóis. Eles foram expulsos do país em 1492 pelos reis católicos, o que explica o desaparecimento do nome na Espanha. É concebível que o general seja descendente de uma dessas famílias forçadas ao exílio quinhentos anos atrás.

Rio Quiroga, província de Lugo (Galiza, Espanha)

Queiroga (o que chega)
O sobrenome Queiroga é variante do tronco principal Quiroga. É um topônimo, ou seja, um nome geográfico. Na realidade, é o nome de um riacho afluente de um riozinho chamado Sil que, por sua vez, deságua no caudaloso Rio Minho – que marca a fronteira entre Espanha e Portugal. O Vale do Quiroga fica na região da Galícia, situada no nordeste da Espanha. Quiroga é também o nome de um vilarejo à beira do rio.

É bem provável que, cerca de 700 anos atrás, longínquos antepassados de nosso ministro tenham um dia deixado a aldeia de Quiroga para se estabelecer noutro vilarejo nas cercanias. Era um tempo em que ninguém tinha ainda sobrenome. A família acabou ficando conhecida como «os [que vêm] de Quiroga», denominação que, com o tempo, foi abreviada.

Quirogas, na Espanha de hoje, há numerosos. No entanto, na lista telefônica, só encontrei uma pessoa que tem por sobrenome a variante Queiroga. É sinal de que não são multidão.

O sonho e o pesadello

Elio Gaspari (*)

Sonham acordados
Quando o governador João Doria anunciou que em janeiro começaria a vacinação em São Paulo, o secretário executivo do Ministério da Saúde, coronel da reserva Élcio Franco (aquele que usa brochinho de crânio atravessado por uma faca), disse o seguinte:

– Senhor João Doria, não brinque com a esperança de milhares de brasileiros, não venda sonhos que não possa cumprir, prometendo uma imunização com um produto que sequer possui registro nem autorização para uso emergencial.

No dia 17 de janeiro, foi vacinada no Hospital das Clínicas a enfermeira Mônica Calazans.

Jogo jogado
Na quinta-feira, a repórter Paula Ferreira mostrou que Franco encaminhou ao Senado uma planilha informando que neste mês o ministério distribuirá 38 milhões de vacinas.

No dia 17 de fevereiro, o general Eduardo Pazuello anunciou que entregaria 46 milhões de imunizantes. Onze dias depois, a previsão baixou para 39,1 milhões.

Em duas semanas, evaporaram-se 7,9 milhões de vacinas.

O doutor deveria entrar na sala do general Pazuello admitindo:

– Chefe, estamos brincando com a esperança de milhares de brasileiros, vendendo sonhos que não podemos cumprir.

(A conta do Ministério da Saúde inclui 8 milhões de doses de um laboratório que ainda não deu entrada ao pedido de autorização da Anvisa, mas deixa pra lá.)

(*) Elio Gaspari é jornalista. O texto é parte de artigo publicado em 7 março 2021.

Vão morrer na rua!

José Horta Manzano

Chamada Fato Amazônico, 29 jan° 2021.

O corpo do artigo informa que o recém-nomeado ‘assessor de Pazuello’ é general. Como o chefe. O que está fazendo essa leva de generais da reserva em postos que requerem tato e diplomacia? Foram para a reforma e estão sendo pagos por nós para ficar em casa, de pijama, bonitinhos, assistindo às novelas. Que cumpram o combinado. Não faz sentido receberem ordenado extra para soltar ameaças.

Quando se lê nas entrelinhas, as palavras do aspone soam como ameaça aos enfermos. É como se o imbecil tivesse dito: “Olhaí, vagabundos, tratem de melhorar, se não vão sofrer as consequências!”.

Lugar de elefante não é em loja de porcelana, principalmente quando o país enfrenta uma pandemia altamente letal. Quem é que essa gente pensa que é?

O grau de civilização de uma sociedade se reconhece pelo modo como trata seus elementos mais frágeis.

O general e a selva

José Horta Manzano

Cada macaco no seu galho. Para a guerra, vão os militares. Para a mesa de discussões, vão os diplomatas. Não convém misturar os profissionais, se não é capaz de dar choque.

Nosso presidente, como o Brasil e o mundo já se deram conta, sofre de séria disfunção cognitiva; em termos familiares: é imbecil. Essa dificuldade de apreensão da realidade é agravada por seu caráter agressivo e por suas reações paranoicas.

De um personagem com essas características, não se poderia esperar que acertasse na hora de escolher assessores. Recheou ministérios e autarquias com militares. Não se sabe se fez isso para confortar sua paranoia ou por outra absconsa razão. O resultado é um desastre. O inefável general Pazuello, ‘gerentão’ da Saúde Pública, é brilhante exemplo.

A subida ao trono de Joe Biden ratifica a perda do único apoio externo com que Bolsonaro podia contar. Agora que o presidente se sente vulnerável, a paranoia aumentou e seus efeitos se espalham pelos altos círculos da República. Doutor Bolsonaro perde o sono ao imaginar que, qualquer dia destes, a Amazônia será invadida por sabe-se lá quais inimigos. Sem dificuldade, tem conseguido contaminar generais. Militares são treinados a enxergar o mundo em preto e branco, sem nuances intermediárias. Em princípio, interlocutores têm de se encaixar obrigatoriamente em um de dois grupos: ou são amigos, ou são inimigos.

Quando dirigentes estrangeiros criticam a política ambiental do Brasil, não é hora de ‘mandar pólvora’, como insinuou Bolsonaro. É hora de mandar a diplomacia para a linha de frente. É hora de conversar, de ouvir, de explicar, de entender, de refletir, de apaziguar, de maneirar. É hora de escutar, de se abrir, de argumentar, de convencer. É hora de perceber que a riqueza das florestas brasileiras não se resume ao estrondo do abate de árvores, ao lucro da extração de madeira, à tristeza da extinção da vida animal.

Diferentemente do que pensam Bolsonaro e seus amigos militares, ninguém no mundo tem séria intenção de tomar a Amazônia brasileira. Nem mesmo a China, capitão! O que assusta o mundo é a ameaça de perder a mais importante floresta equatorial do planeta. Se ela desaparecesse, o clima mundial – e, naturalmente, do Brasil também – sofreria consequências desastrosas para a vida de todos nós. Mas Bolsonaro e seus amigos não entendem isso. Ou se recusam a entender, o que dá no mesmo.

Fiquei sabendo hoje que o Exército está cuidando de ocupar a Amazônia antes que algum aventureiro lance mão. A derrocada de Trump e o sentimento de impotência estão por trás. Este escriba tem uma sugestão – gratuita e sem compromisso. Sugiro que o comando da organização de resistência ao invasor seja confiado ao general Pazuello. Com essa cajadada, mata-se um coelhão: o general será curto-cirtuitado, fazendo desaparecer o principal entrave(*) à Saúde Pública. O país vai respirar aliviado. Os cidadãos estão precisando respirar – no sentido próprio.

(*) ‘Principal entrave’ é modo de dizer. O principal entrave à Saúde Pública não é o general trapalhão, mas seu chefe.

Esqueceram de aprender com os erros

José Horta Manzano

Em abril do ano passado, a epidemia de covid começava a assustar o mundo. No entanto, no Brasil, muita gente fina jurava que a doença nunca chegaria ao país, visto que o clima tropical não convinha ao vírus. Era a primeira de uma longa série de patacoadas pronunciadas desde então. A fala da ‘gripezinha’, obra de nosso capitão, veio logo engrossar a série. Aliás, em qualquer série de patacoadas, a participação do presidente é garantia de boas pérolas.

Naquele momento, pouco ou nada se sabia sobre o novo vírus. Na Europa, por uma razão ignorada, a Itália foi atingida mais cedo e mais duramente que os vizinhos. Embora o país conte com estrutura sanitária de alto nível, o súbito aumento no volume de doentes apanhou a todos de surpresa. Hospitais lotados, pacientes em macas nos corredores, cortejos de carros fúnebres circulando na escuridão da noite – foram cenas chocantes que marcaram aquelas semanas.

Primeiro país a sofrer um assalto maior da epidemia, a Itália se defendeu como pôde. A maciça investida do vírus desequilibrou a ação do governo e transtornou a vida dos cidadãos. Toda essa confusão estava ligada à emergência da situação e à inexistência de precedentes. Foi compreensível.

Quando se alastrou com força para os outros países, que já tinham assistido aos dissabores italianos e já tinham tido tempo pra se preparar, o ataque viral encontrou terreno mais organizado. O horror visto na Itália nas primeiras semanas não se repetiu nos vizinhos.

O princípio de que o ser humano aprende com as desgraças não parece aplicar-se, infelizmente, a nosso país. Os erros se repetem e, como é sabido, acarretam as mesmas consequências.

by Kleber Sales

Neste segundo ano em que o planeta vive em função da pandemia e mergulhado nela, o que está acontecendo estes dias em Manaus é um rematado absurdo. É situação surreal, inconcebível, insuportável. Estivéssemos num país africano miserável, ainda passava. Mas no Brasil? Como é que conseguimos chegar a esse ponto de descaso?

Há certamente uma cadeia de responsabilidades, que incluem a direção de hospitais, autoridades municipais, estaduais e federais. No nível operacional, como é possível que os encarregados esperem que pacientes morram asfixiados para só então botar a boca no trombone pra denunciar a falta de oxigênio? Por outra, se denunciaram e não foram escutados, aí o enguiço é feio. Até que nível chegou o grito de alarme? Até o topo? Doutor Pazuello, o mago da logística, é a autoridade máxima. Acima dele, somente o doutor maior, Jair Bolsonaro. Estavam a par da catástrofe anunciada?

Tivemos quase um ano para nos preparar. Somos 200 milhões de almas, com um sistema nacional de saúde que funciona há décadas, com um corpo médico e paramédico de excelência, com indústria que produz os insumos básicos para assistir os doentes de covid. Numa federação como a nossa, não se podem tolerar horrores como os de Manaus. São a negação da solidariedade e da coesão nacional.

Pergunta
A simbólica visita de reconforto a um hospital manauara, que nosso chefe de Estado está programando, foi marcada para quando mesmo?

Vacina em duas doses?

José Horta Manzano

General Pazuello – oficial que, apesar de ostentar três estrelas no galão, funciona como ordenança do capitão – está diante de um problema logístico. Dada sua fama de especialista na área, sua decisão deverá ser correta. Certo? Não sou general nem sou especialista em logística, mas desconfio que ele esteja escolhendo caminho equivocado.

O mundo anda correndo atrás de imunização contra a covid. Muitos querem, mas a vacina é pouca. Os laboratórios não dão conta. Se metade da humanidade tivesse de ser vacinada, seriam 4 bilhões de doses, volume que nem todos os fabricantes somados conseguiriam produzir em tempo razoável. O Brasil então, que dormiu no ponto e não passou encomenda, vai ter de esperar mais que os outros.

A entrega de vacinas prevista para os próximos meses não cobre as necessidades brasileiras. Pfizer e Astra-Zeneca, os principais fornecedores, preconizam que se apliquem duas doses espaçadas por um intervalo de quatro semanas. Revelam que a imunização adquirida após a primeira dose decresce e precisa ser reforçada pela segunda aplicação.

Países ajuizados decidiram seguir a recomendação dos fabricantes. Acreditam que mais vale imunizar corretamente, com duas doses, a faixa mais vulnerável da população para, em seguida, passar à fase seguinte e cuidar dos demais. Outros governos tomaram a decisão de fornecer a primeira dose a um número maior de cidadãos; a segunda dose virá se e quando estiver disponível, ainda que o prazo recomendado de 4 semanas tenha estourado.

Adivinhe por qual caminho doutor Pazuello está pensando optar? Pelo segundo, naturalmente. No papel, fica bonito: um número maior de indivíduos se sentirá protegido; no duro, não terão sido corretamente vacinados, mas pouco importa, visto que sai bem nas estatísticas. No frigir dos ovos, nem os vulneráveis nem os demais vão estar devidamente imunizados. Ao espaçar as duas doses, não se sabe o que pode acontecer. Talvez o efeito da primeira tenha se desmilinguido, o que obrigaria o paciente a receber não duas, mas três aplicações.

Pode ser que o ordenança do capitão ainda mude de ideia, nunca se sabe. Mas acho difícil. Como se sabe, a proteção da saúde dos brasileiros nunca esteve entre as prioridades daquele pessoal.

Gênio da logística

Marcelo Godoy (*)

Pazuello – nunca é demais repetir – é o gênio da logística que não conseguiu comprar seringas porque tentou cancelar a lei da oferta e procura e não encomendou vacinas por acreditar que a indústria farmacêutica dependia de nós.

Com o chefe, tentou obrigar os brasileiros a assinarem um termo de consentimento para a vacinação, espalhando descrédito sobre os imunizantes. Quando descobriu milhões de testes de covid-19 no depósito com a data de validade quase vencida, acreditou que a solução seria ampliar a data de validade.

Tem dono de mercado que faz igualzinho quando a validade das salsichas está para vencer.

(*) Marcelo Godoy é jornalista especializado em assuntos militares. O texto foi extraído de artigo de 4 jan° 2021.

Demência de Bolsonaro

Ruy Castro (*)

Para nós que passamos 21 anos de vida adulta (1964-1985) sob a ditadura, os generais eram sujeitos sinistros, de óculos escuros, que nos ditavam quando, se e em quem podíamos votar, o que podíamos ler, ver, escutar, dizer e escrever e, se falássemos em instituições, direitos e liberdade, eles mandavam prender e arrebentar. Eles tinham as armas, as verbas e as canetas com as quais impor sua autoridade. E os porões, instrumentos de tortura e beleguins para aplicá-la. A mera visão de uma farda era intimidadora. Ela nos reduzia moralmente à menoridade, às calças curtas, à fralda.

Aí está algo incompreensível para um brasileirinho de hoje. Ele não entenderá como os militares podiam ter essa força. Para ele, militares são sujeitos que Jair Bolsonaro põe no governo, exibe nas redes sociais e logo começa a depreciar, diminuir, desmoralizar e, por fim, fulmina com a demissão. Em menos de dois anos, já fez isso com 16 generais, quatro brigadeiros e um almirante, e só entre os oficiais de alta patente.

Segundo levantamento da Folha, Bolsonaro demite um desses caciques por mês, até os que, por causa dele, abriram mão de suas promoções. Nada se compara, claro, ao esbofeteamento simbólico a que vive submetendo o general Eduardo Pazuello, pseudoministro da Saúde e seu mais dedicado ajudante de ordens.

Se Bolsonaro trata assim os graúdos, imagine seu apreço pelos 6.000 fardados do segundo time com que entupiu os ministérios, estatais, autarquias e bancos públicos. Só lhe servem para alimentar sua ilusão de que comprou o Exército.

Pode ser psicologia de galinheiro, mas estou certo de que Bolsonaro faz tudo isso para se compensar de humilhações em sua medíocre carreira militar. É uma forma de demência, que parece fascinar os generais – ou não se submeteriam a ela.

O brasileirinho de hoje tem razão. Se eles são assim, como conseguimos passar 21 anos sob suas botas?

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista. Seus artigos são publicados em numerosos veículos.