O país mal-amado

José Horta Manzano

Deslumbrada com as baboseiras cuspidas por Bolsonaro nos EUA, a grande mídia brasileira sonegou a seus leitores a notícia do ano: o corredor automobilístico Lewis Hamilton foi homenageado pela Câmara Federal brasileira.

O que me alertou foi um artigo publicado na mídia estrangeira. Um projeto de resolução relatado no ano passado pelo deputado federal Jhonatan (sic) de Jesus propunha conceder ao corredor britânico o título de cidadão honorário do Brasil.

Entre os partidos, só o Novo (Amoêdo) orientou seus deputados a rejeitarem a proposta. Sem mais objeções, o projeto acabou sendo aprovado quinta-feira passada. Sir Lewis Carl Davidson Hamilton, que já ostentava o título de cavaleiro da Ordem do Império Britânico, recebeu mais uma honraria para enriquecer sua coleção: é cidadão brasileiro “honoris causa”.

A justificativa para a concessão da cidadania honorária é a “relação emocionalmente forte” que o campeão tem com nosso país. Mas o que derreteu mesmo os deputados foi quando Sir Lewis (agora Senhor Lewis) teve a feliz ideia de desfraldar uma bandeira brasileira ao término do último GP de São Paulo de F1. O gesto trouxe a lembrança de Ayrton Senna, figura que marcou nossa memória coletiva.

Numa primeira análise, a reação dos parlamentares parece anacrônica. Afinal, com tanto problema mais importante no país, outorgar cidadania honorífica a estrangeiros parece falta do que fazer. No entanto, diante da situação atual do país, a atitude dos parlamentares é compreensível.

Estes últimos tempos, nossa bandeira tem sido confiscada por uma gente estranha, saída não se sabe de onde. Refiro-me a esse povo que, embora se enrole nas cores nacionais, dá sustentação a um presidente que corrói o pouco de civilização que tínhamos. Dá tristeza ver um símbolo – que é de nós todos – prisioneiro de gente que não enxerga além do próprio umbigo.

A visão do pavilhão verde-amarelo destemidamente desfraldado por um estrangeiro sem ligação com os violentos devotos do capitão foi como um bálsamo, o primeiro passo para a reapropriação de nosso símbolo maior.

Acredito que, embora nenhum dos parlamentares se dê conta, seja essa a razão inconsciente que levou boa maioria da Câmara a aprovar a acolhida de novo cidadão.

A pátria, machucada pelos maus tratos que vem recebendo dos que a governam, tem premente necessidade de reconhecimento internacional. Não sei se Senhor Lewis levantou a bandeira de caso pensado. Seja como for, acertou em cheio.

Ayrton Senna: 60 anos

José Horta Manzano

O jornal austríaco Kleine Zeitung traz hoje um artigo interessante. A autora lembra que Ayrton Senna, não fosse aquela trágica tarde em Imola, estaria completando 60 anos exatamente nesta data – efeméride sobre a qual não vi nenhuma menção na imprensa nacional.

A julgar pelo tom elogioso, a jornalista há de ter sido fervente admiradora do piloto brasileiro. Afirma que ele era dono de personalidade muito especial, não somente no esporte, mas também na vida civil. Diz ainda que Senna, com sua extrema mistura de vulnerabilidade e resistência, era simplesmente diferente de muitos outros atletas de ponta. Carismático e dono de sorriso cativante, era capaz de pensamento filosófico e de fortes emoções.

Senna e Berger

O artigo menciona também uma frase de Gerhard Berger, piloto austríaco, companheiro de equipe de Senna na Fórmula 1. Berger aposta: «Senna seria hoje presidente do Brasil».

É impossível fazer profecia de um futuro que não virá. Não dá pra saber se Senna seria bom presidente. Mas, com certeza, seria melhor do que o presidente que temos agora. É difícil ser pior.

V como Velocidade

José Horta Manzano

Sigismeno é boa gente, mas meio bobão. Embora seja muito aplicado, atencioso e curioso, a compreensão de certas coisas lhe escapa. Para compensar, o que lhe falta de cultura sobra-lhe de boa vontade. É um tipo agradável.

Hoje, logo de manhã, leu uma chamada do Estadão online que lhe deu nó nos miolos. A manchete associa o nome de Ayrton Senna ― o símbolo de um Brasil veloz e triunfante ― a um reles congestionamento de tráfego, símbolo de um Brasil lento e descrente.

Eu lhe expliquei que, assim que o glorioso campeão de velocidade sobre quatro rodas desapareceu num trágico acidente, seu nome havia sido dado à antiga Rodovia dos Trabalhadores. A intenção, naturalmente, era ligar o nome do corredor a uma estrada por onde se costumava transitar em alta velocidade.

Sigismeno, que não sabia disso, olhou-me muito espantado. Ele me perguntou por que tinham «desomenageado» (não reparem, Sigismeno inventa neologismos de vez em quando) todos os trabalhadores para homenagear um só. Quis saber se uma só figura podia ser mais importante que todos os outros reunidos. Fiquei sem saber responder.

Chamada do Estadão de 29 nov° 2013

Chamada do Estadão de 29 nov° 2013

Refletindo um pouco mais sobre o caso, concluí que realmente não faz sentido, numa cidade que se expande a cada dia, dar preferência a desnomear logradouros tradicionais para honrar novos ídolos. Teria sido tão mais simples dar o nome do campeão a, digamos, um novo bairro. Um bairro inteiro!

Além de não desonrar todos os trabalhadores do Brasil, traria vantagem adicional: afastaria o vexame de ligar o nome de Senna ao de um congestionamento de tráfego.

É comum e compreensível banir estátuas e homenagens a heróis caídos em desgraça. Na antiga União Soviética, estátuas de Stalin desapareceram. Naquele país, até uma cidade mudou de nome: Leningrado recuperou seu primitivo nome de São Petersburgo. No Iraque, a imensa escultura representando Saddam foi posta abaixo. Na própria cidade de São Paulo, logo em seguida à implantação do regime republicano, a Rua da Imperatriz virou 15 de novembro, enquanto a Rua do Príncipe tornou-se Quintino Bocaiuva.

Já faz quase 20 anos que a estrada mudou de nome. Mas só hoje Sigismeno se deu conta disso. Ficou deveras chocado com a confiscação do nome antigo, perpetrada em detrimento de todos os trabalhadores. Há de ser para confirmar a tradicional máxima: rei morto, rei posto. Mesmo assim, não faz sentido. Trabalhador nunca foi rei no Brasil.

Se Sigismeno chegar a alguma conclusão, eu lhe conto.