Recordar é viver ― 8

José Horta Manzano

Dez anos atrás, em artigo publicado na edição de 21 maio 2009, a britânica The Economist descrevia nosso Supremo Tribunal Federal da seguinte maneira:

«Brazil’s Supreme Federal Tribunal is the most overburdened court in the world, thanks to a plethora of rights and privileges entrenched in the country’s 1988 constitution. (…) The result is a court that is overstretched to the point of mutiny.»

«O STF brasileiro é o tribunal mais sobrecarregado do mundo, em virtude da superabundância de direitos e privilégios enxertados na Constituição de 1988. (…) O stress exagerado gera ambiente próximo do amotinamento.»

by John Collins (1917-2007), desenhista canadense

Dez anos se passaram. Em vez de acalmar, o ambiente esquentou. Comparadas com os insultos que se ouvem no STF atual, as alfinetadas mútuas que se aplicavam Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes dão saudade. Pareciam crianças mostrando a língua.

País judiciarizado

José Horta Manzano

«Era abril de 1996 em Assunção. Um golpe estava em andamento contra Juan Carlos Wasmosy, presidente constitucional. Adiantando-se aos fatos, ele mandou para a reforma o general Lino Oviedo, chefe da insurreição ‒ que respondeu com a ameaça de bombardear a residência presidencial.

Ao cabo de três dias dignos de filme de suspense, Wasmosy recebeu telefonema de Fernando Henrique Cardoso, presidente do Brasil. Era para expressar seu apoio. Mas não foi mero bate-papo telefônico. A chancelaria brasileira tratou de despachar um avião para recolher os demais ministros de Relações Exteriores dos países do Mercosul para levá-los a Assunção.

O motim foi neutralizado. Alguns terão certamente etiquetado os fatos como ingerência em assuntos internos do Paraguai. Esse golpe foi exatamente o motivo pelo qual o Mercosul conta hoje com a cláusula democrática, consagrada pelo Protocolo de Ushuaia, assinado em 1998. Diante das crises, mais instituições.»

A citação acima é parte do excelente artigo ‘Indispensable Brasil’, escrito estes dias pelo cientista político argentino Héctor E. Schamis e publicado no jornal espanhol El País. Vale a leitura. Quem estiver interessado clique aqui.

«Diante das crises, mais instituições [são criadas]», a última frase da citação, merece reflexão. É fato. Quando situações de alto poder explosivo se esgotam, o risco é grande de serem substituídas por ordenamento ostensivamente oposto.

Nem precisa ir muito longe pra encontrar exemplo. Em nosso país, em meados dos anos 80, após a falência de um regime duro e repressivo que tinha durado duas décadas, a tendência era reorganizar a sociedade para mantê-la o mais longe possível de derivas autoritárias. Nova Constituição foi negociada. O temor de que o regime descambasse de novo não foi bom conselheiro. A Carta saiu exageradamente liberal, com muitos ‘podes’ e pouquíssimos ‘não-podes’, recheada de ‘direitos’ e parca de ‘deveres’.

Muitas das distorções que nos atormentam hoje vêm justamente das boas intenções dos constituintes de 1988. A liberalização exagerada acabou gerando descontrole. Mensalões e petrolões são filhotes tardios daquele estado de espírito. E olhe que tivemos sorte de não terminar como a Venezuela, sufocada por um autoritarismo desesperado. Estávamos caminhando para a mesma situação. Era um paradoxo. Estávamos resvalando pela ladeira da qual os constituintes tudo fizeram para nos resguardar.

A crise está de novo aí. Desta vez, é política, insitucional, econômica e moral. Um pacote de mazelas pra ninguém botar defeito. Como vai se resolver, ninguém sabe. É possível que, aos trancos e barrancos, cheguemos às eleições previstas para 2018. Não é impossível que uma PEC qualquer nos leve pelo caminho de eleições antecipadas. Pode ainda ser que uma emenda nos traga regime parlamentarista. Nem a restauração da monarquia está excluída da lista de possibilidades ‒ aliás, no meu entender, está entre as boas opções.

O importante é evitar todo exagero. Nossa república já se tornou por demais judiciarizada. Por um sim, por um não, contrata-se advogado, pede-se habeas corpus, apela-se para cortes superiores, chega-se até STF. Há que ter cuidado para não nos tornarmos um país onde tudo e qualquer coisa se decide dentro de um tribunal diante de um juiz. A justiça deve estar ao alcance de todo cidadão, mas abusar dela pode ser nocivo ao país. É questão de bom senso.

Direitos & deveres

José Horta Manzano

Certos pormenores, embora pareçam insignificantes, dão recado certeiro. O distinto leitor já terá reparado que, no Brasil, fala-se muito mais em direitos do que em deveres, pois não?

Desde o sublime direito de ir e vir até o folclórico «exijo meus dereito», passando por todas as garantias intermediárias, sempre tive a impressão de que temos direitos demais e deveres de menos.

Direito de expressão

Direito de expressão

Diz a lógica que não se pode gastar o que não se tem. A Lei de Responsabilidade Fiscal é materialização desse princípio. A cada despesa, tem de corresponder uma receita, caso contrário, o jeito é tomar dinheiro emprestado. E endividamento em excesso acaba provocando, sabemos, o rompimento da corda. Em geral, do lado mais fraco, que assim são as coisas.

A mesma lógica ensina que, a direitos, hão de corresponder deveres. Se o trabalhador tem direito a salário, tem o dever de trabalhar para merecê-lo. Se o espectador tem direito a assistir a um filme, tem o dever de pagar o bilhete de entrada no cinema. Se vigora o direito ao pensamento crítico e à sua livre expressão, contrapõe-se o dever de respeitar a honra e a dignidade da pessoa criticada.

Direito de fazer fila na entrada da fábrica São Paulo, anos 1910

Direito de fazer fila para entrar na fábrica
São Paulo, anos 1910

A Constituição é o arcabouço de nosso contrato social. Nenhuma lei, nenhum dispositivo, nenhum regulamento pode contrariá-la. Assim, direitos e deveres básicos já constam, em esboço, em nossa Lei Maior. Não sei se alguém já teve a curiosidade de contar quantas vezes os termos «direitos» e «deveres» aparecem no texto de 1988.

Pois eu tive. É singular. A palavra direitos, no plural, é mencionada 78 vezes. Surpreendentemente, o termo deveres, só aparece… 6 vezes. O distinto leitor leu bem: meia dúzia de vezes. Em nosso país, a não relação ‒ pra não dizer o divórcio ‒ entre os dois conceitos parece institucionalizada.

Jogo do bicho

Jogo do bicho

Maldade
Levei a curiosidade um pouquinho além. Quis saber qual era a relação entre 78 e 6. Dividindo um pelo outro, dá exatamente 13. Ô numerozinho complicado, sô! Na dezena, é borboleta. No grupo, é galo. No andar de cima, está mais pra ave de rapina.

É pura coincidência. Aquele partido político ‒ hoje em via de expulsão dos polos do poder ‒ sequer deu voto favorável à Constituição de 1988.

Ser ou não ser

José Horta Manzano

Faz mais de uma década que o Planalto decidiu proclamar, pela segunda vez, a independência do Brasil. Encasquetaram no bestunto a ideia de que nosso país já tinha atingido o patamar mais elevado, que nos tínhamos tornado grandes entre os grandes, fato que agora nos garante direitos reservados aos primeiros da classe. A obtenção de uma cadeira cativa no Conselho de Segurança da ONU tornou-se a obsessão maior de nossos medalhões.

Fizeram o que podiam e o que não deviam. Distribuíram dinheiro a ditadores sanguinários, acolheram foragidos internacionais, abriram embaixadas em lugares improváveis, fecharam os olhos para as barbaridades cometidas por nossos amáveis vizinhos. Não deu certo. Estamos hoje tão distantes da almejada cadeira quanto estávamos uma dúzia de anos atrás. Talvez até mais afastados. Por quê?

Mapa das Filipinas

Mapa das Filipinas

Porque, como sói acontecer na Terra de Santa Cruz, o enfoque é posto nos direitos, enquanto os deveres são esquivados. Direitos andam de mãos dadas com deveres ― eis aí uma verdade. Dito assim, parece uma evidência. Mas, no Brasil, temos grande dificuldade em assimilar essa correlação entre o esforço despendido e o prêmio conquistado. Não se pode levar o prêmio sem prévio esforço. Se isso acontecesse, as relações humanas se desequilibrariam. Se a gangorra sobe de um lado, tem de descer do outro. A física e o bom-senso concordam.

Sexta-feira passada, um tufão assolou as ilhas Filipinas. A História não tinha guardado notícia de um furacão dessa magnitude. Aldeias e cidades foram devastadas em poucas horas. Em certas regiões, nada ficou de pé ― todas as construções humanas desabaram. Fala-se em dez mil mortos. O número de vítimas não será jamais conhecido com exatidão.

Tufão Yolanda, nov° 2013

Tufão Yolanda, nov° 2013

O mundo se comoveu. Num primeiro momento, os Estados Unidos encaminharam ajuda de emergência por via aérea. Logo atrás, vem vindo o porta-aviões George Washington, carregando remédios, víveres, 5000 marinheiros e 80 aviões. Outros navios militares americanos receberam ordem de acudir ao local da catástrofe.

A Rússia cuidou de enviar um hospital de campanha (airmobile hospital). A França já despachou víveres e um destacamento de bombeiros especializados em localizar pessoas desaparecidas. A Espanha decidiu mandar dois aviões com material de ajuda humanitária. A Austrália remeteu material de emergência mais uma ajuda em dinheiro. O Vaticano deu ajuda financeira. O governo alemão informou que, além de uma primeira ajuda de meio milhão de euros, já havia enviado um avião com 25 toneladas de carga humanitária. Até a China, que mantém antigo diferendo com as Filipinas por questões territoriais, pôs a briga na geladeira por algum tempo e mandou ajuda financeira. Enquanto isso, no Brasil…

Juro que procurei. O Globo nos informa que brasileiros residentes nas Filipinas fazem o que podem para ajudar os sinistrados. Outro site de informação nos conta que o governo brasileiro «lamenta» a morte de tanta gente inocente. Não me pareceu suficiente. Fui diretamente à fonte. Consultei o site da mui oficial EBC ― Empresa Brasil de Comunicação, uma «instituição da democracia brasileira» ― como eles mesmos se apresentam. Procurei por notícias oficiais sobre a reação da «democracia brasileira» a essa infelicidade que se abateu sobre os pobres filipinos.

Manila, capital das Filipinas (Qualquer semelhança com nossa paisagem urbana pode não ser mera coincidência)

Manila, capital das Filipinas
(Qualquer semelhança com nossa paisagem urbana pode não ser mera coincidência)

Quem procura, acaba achando. Além dos renovados pêsames ao governo daquele arquipélago, a Empresa Brasil de Comunicação nos direciona para o site de dez ongs que coordenam doações que particulares queiram fazer. Ajuda oficial do governo brasileiro? Não encontrei.

Ok, admito que o fato de eu não ter encontrado não significa irremediavelmente que nossos mandachuvas não estejam pensando no assunto. Talvez eu não tenha buscado no lugar certo. Se algum leitor me puder mandar alguma luz, agradeço antecipadamente.

De um gigante despertado, de uma potência da magnitude da nossa, de uma nação pujante, soberana, independente, primeiro-mundesca e altaneira, o mundo espera algo mais que um telegrama de pêsames. O poderio não se alardeia com bravatas, mas se demonstra com atos.

Constituição indulgente

José Horta Manzano

A Folha de São Paulo contou quantas vezes o termo direito(s) aparece em nossa atual Constituição. Nada menos que 163 vezes, segundo o jornal. Dos conceitos usuais, é o mais citado. Ganha estourado do segundo classificado, o termo justiça, com 123 menções.

Todos sabemos que não é domingo todos os dias e que não há almoço grátis. Aos direitos do cidadão, correspondem necessariamente deveres. O levantamento da Folha não incluiu esse termo. Fui conferir na fonte. Procurei o texto completo da Constituição de 1988 e contei. Pasmem: a palavra dever(es) aparece apenas 33 vezes ― incluídos aí o índice, os títulos e os subtítulos.

Está aí um bom termômetro. Ele aponta para algumas das grandes mazelas de nosso caráter coletivo. Queremos nossos direitos, mas preferimos escamotear o fato de que temos deveres. A disparidade de referência a cada um desses dois conceitos ― direito e dever ― dá também boa indicação da propensão populista dos que fazem as leis.

No fundo, essa discrepância constitucional entre direitos e deveres revela nossa ingenuidade. Imaginamos ser possível viver numa sociedade utópica, com balaios de direitos e meia colher (de café) de deveres.

Infelizmente, o mundo não funciona assim.

Los apagones

BarrageJosé Horta Manzano

Quando ouvem um lugar-comum, uma banalidade, os franceses e os ingleses costumam dizer que se trata de uma platitude. Políticos soem pronunciar discursos e frases recheadas de lugares-comuns, de afirmações evidentes. Mas alguns exageram.

Nos últimos dez anos, nossos governantes foram dominados por uma ideia fixa: a permanência no poder a qualquer custo. Não sejamos fariseus. Quem alcançou posição confortável agarra-se a ela. É natural e compreensível. It’s human nature. O exagero está em aferrar-se ao poder como se ele fosse um fim em si. Não é.

Posições de mando certamente fazem bem ao ego. Em compensação exigem que o titular exerça de facto suas funções.

Pelo aumento exponencial de episódios de falta súbita de energia que temos constatado estes últimos tempos, é forçoso concluir que a devida atenção não tem sido dada ao planejamento desse setor estratégico.

Não basta cruzar os dedinhos, fechar os olhinhos e mentalizar seus desejos para que as coisas aconteçam por milagre. Os que detiveram o poder estes últimos anos não fizeram a lição de casa. Acham que posições de ministro, diretor, superintendente e que tais são apenas títulos honoríficos. Imaginam que as coisas acontecem automaticamente. Têm sido ingênuos. Sua incúria e seu despreparo têm emperrado o desenvolvimento do País.

Nossa presidente recusa o termo apagão. Talvez não lhe agrade o fato de essa palavra ter sido importada diretamente da Argentina, cujos apagones precederam os nossos. A senhora Rousseff prefere que se fale em «interrupção de fornecimento de energia», uma troca de seis por meia dúzia. Parece-lhe menos violento, mas, no fundo, reflete a mesma realidade.

Além da implicância com a expressão importada, a presidente proferiu (mais) uma platitude ao atribuir a culpa dos apagões a falha humana. É uma evidência. Alguém errou ao prever o crescimento da demanda. Alguém errou na instalação de para-raios de proteção às torres de transmissão. Alguém descuidou da manutenção preventiva. Alguém se enganou e apertou o botão errado. Alguém errou ao abrir (ou fechar) as comportas Poteaude alguma barragem. Seja o que tiver acontecido, terá sido erro humano.

Dizer que apagão é consequência de falha humana é uma banalidade. Levando nosso raciocínio até o fim, temos de considerar que o equipamento que constitui o parque energético também foi projetado, produzido, controlado, transportado, instalado e manipulado por seres humanos. Portanto, qualquer pane do material será, em última instância, efeito retardado de alguma falha humana anterior.

Será que teremos um dia dirigentes não só imbuídos de seus direitos mas também compenetrados de seus deveres?