Muro da USP

José Horta Manzano

“O Brasil tornou-se um purgatório” – diz um amigo meu. Não tenho como contradizê-lo. Crimes e delitos (que alguns preferem chamar ‘malfeitos’) se tornaram tão corriqueiros, que a gente passa reto, sem se dar conta, como se a vida fosse assim mesmo.

Alguns anos atrás, foi construído um belíssimo muro de painéis de vidro transparente para substituir o antigo muro de concreto que separava a Universidade de São Paulo do mundo exterior. Segundo palavras do próprio reitor, a intenção era “integrar a USP na paisagem urbana”. A substituição do antigo pelo novo faria o efeito da derrubada de um simbólico “Muro de Berlim”.

O primeiro trecho, inaugurado há quatro anos, isolava a raia olímpica da ultramovimentada e superbarulhenta autoestrada urbana (dita marginal), que margeia o Rio Pinheiros. Feito parcialmente com doações, deve ter custado caro. Mas ficou bonito que só.

Bonito até demais aos olhos cavernosos dos neandertais que se multiplicam entre nós e que aceitamos que circulem soltos e que convivam com a parte civilizada da sociedade. Nem bem inaugurado esse primeiro trecho, o vandalismo gratuito mostrou sua face primitiva.

Um dia, um dos painéis amanheceu estilhaçado. Noutro dia, foi um segundo. A ação foi sempre noturna, que a covardia não permite fazer esse tipo de coisa à luz do sol. A derrubada continuou dia após dia, diante da inação complacente e quase cúmplice de todos. Não sobrou nada.

Nenhuma ação preventiva foi tomada pelas forças policiais, que são, afinal de contas, as autoridades encarregadas de defender a população e o bem público. Em terra de bandido, quem é que liga pra um vidro quebrado, não é mesmo?

Sob essa luz, dá pra entender a chamada da Folha, que aparece na entrada deste artigo. O jornalista, em tom de reclamação, constata que “os vidros continuam quebrados após 4 anos da inauguração”.

Num país normal, antes de pensar em consertar (ou em refazer inteiramente o trabalho, como é o caso), a população se preocuparia em descobrir quem cometeu esse crime contra o patrimônio de todos. Crime ou “malfeito”, como preferirem.

De fato, enquanto os autores estiverem correndo soltos por aí, será perda de tempo, de esforço e de dinheiro refazer o trabalho destruído. Antes, é preciso identificar e tirar de circulação os causadores do estrago; só depois é que se pode pensar em reconstruir.

Como era

O problema é que a selvageria se instalou de modo tão enraizado em nossas mentes, que já ninguém se dá conta da enormidade de uma ocorrência como a destruição voluntária desse muro. Fatos assim são admitidos e digeridos como se fossem parte integrante de nosso atual estágio de civilização. Não são. Isso é obra de criminosos. A desigualdade social e a carestia não levam hordas de famintos a levantar de madrugada pra destruir paredes de vidro. Não paga a pena. Saquear um supermercado daria mais futuro.

Além de estarmos nos acostumando com a baixaria onipresente (obrigado, capitão!), estamos banalizando e aceitando o crime. Isso é perigoso e pode terminar mal.

Sem medo da punição

José Horta Manzano

Num país civilizado, se um indivíduo ousar agredir um semelhante e esmurrá-lo violentamente a ponto de fazê-lo sangrar, periga ser preso, julgado e condenado a pena pesada.

Outro dia, no curso de um jogo de futebol no Mato Grosso do Sul, um dos times fez gol no finzinho da partida. Torcedor desse time, um gandula, postado à beira do campo, festejou a façanha. Um dos jogadores do time adversário sentiu-se incomodado com a alegria do rapaz. Não pensou duas vezes: partiu para a agressão física. Derrubou o jovem e pôs-se a esmurrá-lo com toda força até chegar a turma do deixa disso. Nessa altura, o agredido sangrava abundantemente.

A ferocidade nossa de cada dia dá volta ao mundo.
Aqui, em italiano.

O episódio foi integralmente transmitido ao vivo pelas câmeras de tevê. Quais serão as consequências? Para o agressor, um cartão vermelho e talvez suspensão por alguns jogos. Para o ferido, restarão os olhos para chorar.

O único animal a conhecer o sentimento de raiva é o homem. Os demais animais, se atacam um terceiro, será para devorá-lo ou para afujentá-lo. São reações instintivas, que o animal não tem como refrear. Já o ser humano costuma agredir semelhantes por outros motivos além da fome ou da delimitação de território. As paixões ‒ ciúme, vingança, raiva ‒ estão entre eles.

A ferocidade nossa de cada dia dá volta ao mundo.
Aqui, em francês.

Em terras menos selvagens, a sociedade reprime firmemente os que fraquejam e se deixam dominar pelas paixões. Se assim não fosse, se fossem tolerados acessos de fúria, a sociedade caminharia rapidamente para a extinção.

No Brasil, não se costuma dar muita importância a surtos de selvageria. Embora se repitam continuamente e alimentem a sensação de insegurança, ‘espetáculos’ como o que relatei são olhados com certa displicência pelo legislador e pela Justiça. Não devia ser assim.

A ferocidade nossa de cada dia dá volta ao mundo.
Aqui, em espanhol.

Nada justifica a agressão da qual foi vítima o desafortunado gandula. A costumeira mansuetude de nossa Justiça em casos como esse serve de incentivo. Estivesse o agressor, naquele momento, de posse de arma de fogo, é lícito imaginar que teria feito uso dela.

Sou de parecer que casos como esse deveriam ser enquadrados como tentativa de homicídio. Uns dez aninhos atrás das grades dariam ao estourado o tempo de refletir sobre o crime cometido. E serviriam também de exemplo ‒ e de freio ‒ para futuros valentões.

Vem de cima

José Horta Manzano

Cachorro 13Desde pequenino, a gente ouve dizer que o exemplo vem de cima. É pura verdade. Assim como a criança se molda imitando os adultos, a sociedade se norteia pelo exemplo de seus líderes. É lógica da qual não dá pra escapar.

O cão rosna para afastar quem ousar se aproximar dele na hora da comida. Por natureza, o homem também é egoísta. Se se deixar dominar pelo instinto, não há de se comportar de modo diferente. Não somos espontaneamente altruístas – muito pelo contrário. «Se a farinha é pouca, meu pirão primeiro.»

Assalto 1A educação, a família, a escola, a sociedade e – mais importante ainda – os que estão no topo da pirâmide são os que ditam o ritmo e o tempo da valsa. Com pequenas variantes individuais, os cidadãos de determinada sociedade costumam agir e reagir de modo coerente e homogêneo.

Petrificado, leio que vítimas de um desastre ferroviário nos arrabaldes do Rio de Janeiro foram assaltadas enquanto aguardavam por socorro.

Já tinha ouvido falar em roubo de carga espalhada na estrada por motivo de colisão de veículos. Já tinha ouvido falar em saqueio a casas abandonadas por motivo de terremoto ou tsunami. Já tinha até ouvido falar em assalto a cidadãos presos no tráfego e impossibilitados de se defender.

Ambulância 1De agressão a vítimas de acidente, é a primeira vez que tenho notícia. Parece difícil que nossa sociedade descambe ainda mais baixo na escala da selvageria. Até brutamontes do Velho Oeste sabiam que não se atira em homem caído. Todo bandido sabe que tampouco se deve atirar em ambulância.

Assaltar vítimas de desgraça – infligindo-lhes, assim, duplo castigo – é covarde e ignóbil. É ato incompreensível num País cuja presidente afirmou, ainda outro dia, que seu governo é «o que mais tem combatido malfeitos».

Das duas, uma:

Interligne vertical 151) A correia de transmissão de valores, que deveria conduzir o exemplo do topo à base, está emperrada. Há que providenciar conserto urgente.

2) Ou então – o que é bem pior – a correia está, sim, funcionando. O comportamento abjecto dos que assaltaram vítimas de desastre é mero reflexo do comportamento dos inquilinos do andar de cima. Os valores do topo estão-se alastrando para a base. Meu pirão primeiro, companheiro!

O distinto leitor é livre de escolher a opção que lhe pareça mais adequada.

Rapidinha 4

José Horta Manzano

Dona Dilma definiu os atos de vandalismo como barbárie. Tem razão, ponto para ela. Manifestantes brutais não podem ser tratados com luva de pelica. A autoridade tem de usar métodos equivalentes. Não se enfrenta canhão com estilingue.

Já basta a imagem de pusilanimidade que nossas autoridades têm exibido. O mundo não precisa ficar sabendo que, no Brasil, além de o governo ser fraco, o povo é baderneiro e violento. Nossa imagem já anda um bocado amassada. É melhor parar por aqui.

A prefeitura tem o poder de proibir que manifestantes saiam às ruas mascarados. Aquele que desobedecer será sumariamente detido para averiguações, mesmo que (ainda) não tenha quebrado nenhuma vitrine. Depois de algumas dezenas de prisões, os ânimos vão-se acalmar. O que move esses selvagens é a certeza da impunidade.

Life is cheap

Mãos ao alto 1José Horta Manzano

Pelo fim dos anos 70, numa época em que eu trabalhava para uma firma americana estabelecida em São Paulo, recebemos um visitante dos EEUU. Lá pelas tantas, em meio a um bate-papo despretensioso, não me lembro mais por que razão, ele se saiu com esta: life is cheap in this country ― a vida é barata neste País.

Levei um bom tempo tentando decifrar a mensagem do forasteiro. Certamente ele não se referia ao preço dos gêneros alimentícios, nem ao salário dos funcionários ― que, naquela época como hoje, andava um bocado defasado se comparado com os países mais adiantados.

Com o passar dos anos, confrontando fatos brasileiros com acontecimentos internacionais, fui pouco a pouco me dando conta do alcance das palavras do visitante. Acredito que hoje consigo decodificar o significado delas.

Faz umas duas semanas, os jornais deram, nas páginas internas, a notícia de que o dono de um restaurante havia assassinado um cliente. O motivo? Uma discussão provocada por uma reclamação sobre uma diferença de 7 reais na conta da refeição. Sete reais! Uma vida ceifada por três dólares! Para reavivar memórias curtas, aqui está a informação publicada pela Folha de São Paulo.

Estes dias, repeteco fúnebre. Desta feita, foi a vez de o dono de um restaurante ser presenteado com bilhete de ida simples para o necrotério em consequência de um litígio sobre uma conta de 8 reais. Oito reais! Quem esteve passeando na Polinésia semana passada pode se atualizar relendo a informação dada pelo Correio Braziliense.

Poderia ter acontecido com o distinto leitor, com a elegante leitora, com qualquer um de nós. Ou não?

A notícia de que um jovem desequilibrado trucidou 20 pessoas numa escola americana, faz alguns dias, chocou e comoveu o mundo. Baldes de tinta foram gastos em tentativas de explicação do tresloucado gesto. Jornais da Guatemala, da Somália e da Mongólia repercutiram a pavorosa informação.

Que eu tenha visto, salvo escassas notas internas de nossa mídia, poucos se interessaram pelos homicídios tupiniquins. Um filósofo de botequim poderia até chegar à conclusão de que massacres só chamam a atenção quando as vítimas são numerosas. Ou ricas e famosas.

Vamos, minha gente, matutemos um instante. Cometer o irreparável contra um semelhante já era, por si, uma barbárie condenada pelos neandertais, cinquenta mil anos atrás. Fazê-lo hoje, em pleno século XXI, por um punhado de reais ultrapassa o entendimento. É surrealista.

Mãos ao alto 2Desgraçadamente, como sabemos todos, selvagerias como essas acontecem diariamente em nosso País. As duas que mencionei só tiveram direito a menção na imprensa por terem sido perpetradas em recintos públicos de grandes cidades. Bateladas de acontecimentos semelhantes passam em branco. Sabe Deus o que se comete quotidianamente nos grotões de Santa Sebastiana do Fundão ou de Jururu d’Oeste.

Onde está o erro? Por que é que a constatação do visitante de 35 anos atrás permanece tão atual? De que serve adotar linguagem politicamente correta, patrocinar manifestações esportivas prestigiosas, trombetear crescimento econômico, enquanto o valor da vida humana continua tão insignificante?