Sacrifício no altar

José Horta Manzano

Seitas e religiões antigas tinham sacrifícios rituais. O Antigo Testamento lembra a hebreus e cristãos a alegoria do quase-sacrifício de Isaac, interrompido in extremis pela chegada do anjo. Muçulmanos têm metáfora equivalente, representada pelo sacrifício de Ismael, irmão mais velho de Isaac.

Mais perto (geograficamente) de nós, temos os incas que, até a chegada dos europeus, entregavam moças adolescentes aos oficiantes para serem assassinadas e oferecidas aos deuses para que não castigassem o império com catástrofes naturais e outras pragas. Depois de escolhidas, as jovens eram, durante meses, preparadas para o grande dia do sacrifício.

Ao observar a sequência de imagens que reproduzo acima, não pude deixar de associar a cena brasiliense com os relatos sacrificiais. A simbologia está presente.

  • O menino, que ainda está longe de ter chegado à idade da razão, é ingênuo e inocente. Não tem condições de entender que sua imagem há de ficar para a posteridade como símbolo triste e involuntário da desvairada passagem do capitão pelo Planalto.
  • A maneira como o pequenino está paramentado indica que passou por preparação específica antes de ser levado ao altar – exatamente como as donzelas andinas.
  • A criança chega ainda mascarada, numa imagem que sugere a virgindade e a proteção contra todo mal externo que possa atacar o corpinho.
  • No momento supremo, o capitão age com a brutalidade que lhe é característica e arranca a proteção. É o defloramento simbólico praticado pelo Grande Sacerdote.
  • As mãos erguidas do que se supõe serem os pais do ‘sacrificado’ aparecem ocupadas em clicar freneticamente, no intuito de eternizar o instante sublime. A criança assiste, ingênua, à movimentação. Daqui a algumas décadas, quando for adulto, o menino por certo se envergonhará de ter sido um dia entregue como troféu a um miserável bufão.

A foto termina aqui. Não sei dizer se, assim que a criança voltou para o colo dos orgulhosos pais, a máscara voltou a ser instalada na posição de onde nunca devia ter sido retirada.

Tanto faz. De qualquer maneira, o mal estava feito. Se o pobrezinho não se tiver contaminado com o bafo pestilento do Grande Sacerdote, é porque tem corpo fechado e assim continuará pelo resto da vida. Pode jogar fora a máscara.

A polícia e o fio dental

José Horta Manzano

Setecentos anos atrás, os europeus começavam a despertar do longo período de semiletargia que hoje chamamos Idade Média. O mundo moderno engatinhava. Pouco a pouco, a necessidade de instituições formais e organizadas foi-se fazendo premente. Entre elas, a criação de tribunais.

Não havemos de esquecer que, à época, o poder eclesial abarcava tanto o espiritual quanto o secular. Um foro estável e sistemático era, assim, duplamente oportuno.

Em 1331, durante o pontificado de João XXII, foi instituído o Tribunal Rotæ Romanæ, mais conhecido como Sacra Rota, Tribunal da Rota ou simplesmente Rota. Dizem que o nome curioso tem origem na disposição dos juízes, sentados em volta de quem estivesse sendo inquirido.

Sabemos todos que o poder temporal da Igreja esgarçou-se com o passar dos séculos, reduzindo-se hoje ao território vaticano. O Tribunal da Rota, apesar disso, continua lá, firme e forte. Já não lhe cabe julgar feiticeiros, hereges ou apóstatas. Exceptuando-se crimes cometidos no interior da Santa Sé, a Rota está hoje para os fiéis como o STF está para os cidadãos brasileiros. É o tribunal máximo. Seu poder restringe-se, naturalmente, ao julgamento de transgressões do direito canônico.

Rota Romana

Entre outras atribuições, o Tribunal da Rota tem o poder de anular casamentos religiosos. Prestemos bastante atenção. O doutrina católica considera que o matrimônio é sacramento único e indissolúvel. Portanto, a Rota não tem o poder de «desfazer» ou «dissolver» casamentos. Não é um tribunal secular onde se discutem casos de divórcio. Seu único poder é de estatuir que um casamento era nulo ab initio, desde o começo. Em outras palavras, a Rota se determinado casamento foi válido ou não. Se chegarem à conclusão de que o par nunca formou um casal aos olhos da Igreja, isso significa que o casamento nunca existiu. Estarão, assim, ambos os antigos noivos livres para contrair matrimônio religioso. Sem peso na consciência.

Há uma boa dezena de razões pelas quais uma união pode ser considerada nula. Entre elas, um caso de casamento forçado, combinado contra a vontade de um dos contraentes. O caso (raro) de erro de pessoa pode também ser invocado como motivo de nulidade. Algo do tipo “pensei estar-me casando com Fulano, mas depois descobri que ele era Beltrano”. Há ainda outras motivações pitorescas. Uma razão à qual por vezes se recorre é o dolo. Configura-se o dolo quando um dos nubentes esconde voluntariamente do outro algum fato que, se conhecido, teria dissuadido o parceiro de se casar.

Cheguei a conhecer pelo menos um caso que terminou em anulação de casamento por motivo de dolo. Aconteceu nos anos 50 com pessoa que cheguei a conhecer. Para encurtar a história, digo logo: na noite de núpcias o noivo descobriu que a noiva não era mais virgem. Teimoso, o marido fez questão de apelar para o Tribunal da Rota Romana para reclamar a anulação do casamento. Custou-lhe anos de esforço, muito dinheiro, viagens a Roma. Mas conseguiu. Aos olhos da Igreja, voltou a ser solteiro. A história escandalizou metade da cidade, mas os tempos eram outros.

Mais de meio século se passou. Sou incapaz de dizer se a Rota ainda considera que a não virgindade da noiva seja alegação válida para pedido de anulação de casamento. Na cabeça da maioria da população, certamente não é mais assim.

.:oOo:.Bagues 3

Com espanto, li hoje no Correio Braziliense que um edital lançado pela Polícia Civil da Bahia acendeu uma polêmica danada. Um concurso para preenchimento de 600 vagas foi anunciado. Entre as exigências estão, naturalmente, acuidade visual, boa saúde, senso cromático (ausência de daltonismo), equilíbrio psíquico. Muito mais assombrosa é a quase exigência de … virgindade. Comprovada por exame ou assinada e carimbada por médico com registro no CRM.

Desconfiado de que se tratasse de primeiro de abril, fui conferir. Pois não é que a Folha de São Paulo confirma?

E eu que pensava que homens e mulheres eram considerados iguais perante nossa Constituição. Fico matutando como é que comprovarão micoses, fungos e outros bichos nos candidatos do sexo masculino. Quiçá uma declaração de virgindade emitida por oficial de justiça com fé pública e firma reconhecida?

A coisa tá preta, como diria o outro! Fosse no Afeganistão ou na Arábia, daria para entender. No país do fio dental, do carnaval e do samba, pega mal.

Brasil, país de todos. Desde que sejam virgens, naturalmente.