José Horta Manzano
Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 3 de agosto de 2013
A História não se repete. Acontecimentos novos podem até evocar situações passadas, mas cada caso é um caso.
Em novembro de 1923, um punhado de indivíduos se reuniram numa cervejaria de Munique para encenar o que lhes parecia o ato final de um rocambolesco plano de tomada do Estado alemão pela força. O golpe foi um rotundo fracasso. Vistos como loucos mansos, os cabeças, presos e processados, foram condenados a penas leves. Quis o destino que, dez anos mais tarde, o chefe da malta, um certo Adolf Hitler, fosse içado ao posto máximo da nação. O resto da história todos conhecem.
Nos primeiros anos do século XX, um jovem italiano, violento e rebelde, fugiu de seu país e ganhou a Suíça. Más línguas afirmam que era para escapar do serviço militar. Em território helvético, o moço turbulento continuou fazendo das suas. Rebelde e arruaceiro, viveu de expedientes e chegou até a ser preso por vadiagem. Voltou à Itália em 1904. Quis o destino que, dezoito anos e muitas peripécias mais tarde, nosso impetuoso anarco-sociossindicalista ― Benito Mussolini era seu nome ― se visse alçado à função de chefe do governo. Sabem todos o que veio depois.
A tentativa de tomada do quartel cubano de Moncada, levada a cabo em 1953 por uma turma de jovens iluminados, todos no vigor de seus 30 anos, foi um desastre total. Prisão, tortura, degredo dos rebeldes remanescentes foi o resultado. Naquele momento, ninguém imaginou que o chefe do grupo, um certo Fidel Castro, havia de se tornar senhor absoluto do país 6 anos mais tarde. Os capítulos seguintes são conhecidos.
Faz pouco mais de um mês, o Brasil foi palco de um fenômeno desconcertante. Dirigentes boquiabertos assistiram a passeatas espontâneas formadas por gente comum. Não eram revolucionários nem putschistas. Não pretendiam derrubar o regime, muito menos tomar o poder. Não eram movidos por ideologia. Não carregavam armas. À exceção de grupelhos insignificantes de energúmenos imbecis, protestaram pacificamente.
Agora sossegaram. Mas que ninguém se engane: os acontecimentos de junho foram um divisor de águas. Daqui a um século, baixada a poeira, a História dará a 2013 a mesma importância que dá hoje a 1822 ou 1889. A sagacidade caseira do inefável Conselheiro Acácio ensina que as consequências, naturalmente, vêm sempre depois.
O brasileiro é um povo de sorte. No espaço de pouco mais de 10 anos, teve duas ocasiões de dar um salto à frente, na boa direção. A primeira foi quando Lula da Silva chegou ao posto máximo da República. Dono de apoio quase unânime do povo e de seus representantes, não lhe teria sido difícil impor as reformas indispensáveis para curar a esquizofrenia do País. Pareceu a todos que, finalmente, o Brasil deixaria de ter um pé na modernidade e outro ancorado na Idade Média.
Estava na hora de banir traços antediluvianos tais como o paternalismo, o nepotismo, o cartorialismo, o rigor reservado ao vulgo enquanto privilegiados são tratados com leniência. Queríamos todos ver desaparecer a desigualdade entre os do andar de cima e os do andar de baixo. Queríamos ver o fim de anacronismos que não combinam com o mundo civilizado.
Desgraçadamente, nenhuma reforma radical foi empreendida que acelerasse nosso processo civilizatório. Os donos do poder agiram como o cirurgião que anestesia o paciente mas esquece de operá-lo. Ninaram o povo com doces sonhos de grandeza, mas não se deram ao trabalho de eliminar os tumores que minam a sociedade. Entre mercurocromo e curativos, descuraram-se de servir ao povo. Usaram a arraia-miúda como massa de manobra e, insolentes, dela se serviram. Os protestos são a prova patente da ineficiência e do fracasso da atual maneira de governar.
Mas temos sorte. Diferentemente de Alemanha, Itália e Cuba, temos uma segunda chance. Nossa «revolução» não tem cabeças nem porta-bandeiras. Não prenuncia episódios violentos nem sangrentos. As demandas do povo brasileiro, a anos-luz da luta de classes, não são ideológicas, nem sectárias, nem elitistas, nem sindicais.
Medidas pontuais podem gerar alguma curta trégua, mas não resolverão o problema. O brasileiro, farto de que lhe zombem das fuças, quer ser tratado com dignidade. Plebiscitos e referendos não condizem com a situação atual. O povo já disse o que quer. Do governo, não se espera que faça mais perguntas, mas que dê as respostas que esperamos todos. E logo.
O governo que se dizia «popular», no fundo, não o era. Popular é o movimento que a todos surpreendeu, essa energia espontânea e sem lideranças. Estamos vivendo o começo do fim do Brasil medieval.