Cela va de soi

José Horta Manzano

Ninguém gosta de pagar imposto. Não conheci, até hoje, quem sentisse prazer em entregar ao erário parte do que ganha. No entanto ‒ que fazer? ‒, é assim que toda sociedade funciona. Num casal, num condomínio, numa associação, num clube, as regras são semelhantes. O custeio das despesas comuns é rateado entre os membros. Se não fosse assim no cenário nacional, quem construiria estradas? Quem financiaria a polícia? Quem garantiria a rede de Educação e o sistema de Saúde Pública?

Faz tempo que sociedades civilizadas estabeleceram um sistema pelo qual cada cidadão contribui conforme suas possibilidades. Imposto não costuma ser um montante fixo, igual para todos. O pagamento de quantia fixa seria irrisório para quem é abonado e representaria peso enorme para quem tem pouco. Daí a criação de alíquotas e porcentagens.

Nas sociedades organizadas, ficou combinado que ‒ salvo raríssimas e justificadas exceções ‒ todos os ganhos de um indivíduo são adicionados para determinar a alíquota. Mais que isso: o imposto será cobrado sobre a integralidade do ganho. Em países onde a justiça fiscal é mais apurada, até vantagens in natura entram no cálculo dos ganhos. Por exemplo, o uso de um veículo posto à disposição do funcionário para uso pessoal é convertido em um montante e adicionado ao salário na hora de calcular o imposto devido.

Li, estes dias, que o funcionalismo público brasileiro goza de isenção fiscal sobre dez por cento do que recebe. Quanto maior for a importância do cargo ‒ juiz, procurador, ministro, conselheiro de tribunal de contas ‒, maior será a parcela dos provimentos isenta de tributação, podendo atingir trinta por cento do total.

«Penduricalhos» apelidados de auxílio-moradia, auxílio-transporte & congêneres escapam ao fisco, uma aberração. Está aí o fruto de raciocínio duplamente tortuoso. Pra começo de conversa, se alguém precisa receber ‘auxílio-moradia’ é justamente o assalariado que sobrevive com salário mínimo, não o alto funcionário cujos vencimentos são amplamente suficientes para bancar aluguel. Pra continuação de conversa, é escandaloso que o alto funcionário, além de ser aquinhoado com o ‘auxílio’, ainda escape ao pagamento de imposto.

Tem razão quem disse um dia que «o Brasil não é um país pobre, é um país injusto». Soltar frase de efeito como essa é fácil. Dar contribuição pessoal para corrigir distorções é outra coisa. A pérola é atribuída a um ex-presidente da República que, pelo que se sabe, não passou da palavra ao ato: não fez sua parte para mitigar a injustiça social que ele mesmo reconheceu. Não abriu mão dos mimos a que tem direito além da polpuda aposentadoria: dois veículos mais cinco funcionários ‒ sobre os quais, naturalmente, não paga imposto. Cela va de soi.(*)

(*) Cela va de soi é expressão francesa usada quando se quer dizer que alguma coisa é tão natural, tão evidente que não precisa nem ser mencionada.

Penduricalhos

José Horta Manzano

Eram muito usadas, cinquenta anos atrás, pulseiras de berloques. Quem não tinha uma, cobiçava. Moça mais abonada levava pulseira de ouro. Se menos afortunada, contentava-se com material menos dispendioso, prata ou metal barato.

A moda trazia um lado bastante prático para família e amigos: quando era hora de dar presente à dona de uma dessas pulseiras, era só comprar um berloque ‒ era certeza que a figurinha seria apreciada. Havia berloques de todas as formas: figura humana, bichinho, carrinho, casinha, florzinha, anjinho, barquinho, arvorezinha. E por aí afora.

A palavra berloque nos chegou pelo francês breloque, que significa objeto geralmente pequeno e de pouco valor. A origem do termo é controversa, perde-se na poeira do passado. Penduricalho é tradução perfeita. Indica algo de valor relativamente baixo que se pendura a um conjunto mais valioso e preexistente.

Ainda se vendem pulseiras de berloques, mas a moda dá sinais de exaustão. Há, no entanto, um outro campo de atividade onde continua firme e forte o costume de enganchar penduricalhos e aditivos. Falo da função pública.

Na iniciativa privada, o funcionário costuma ter um salário e mais nada. Caso tenha de meter a mão no bolso por conta da firma, receberá reembolso das despensas, o que é natural e compreensível. Terá direito a certos benefícios, como o 13° salário, que a lei estende a todos os assalariados. E pronto, vai terminando por aí.

Já na função pública, o espírito é outro. O salário propriamente dito chega, em certos casos, a representar menos da metade dos vencimentos totais. O resto vem de adicionais diversos. Como numa pulseira de berloques, vêm-se acrescentar ao ordenado de base inúmeros penduricalhos: auxílio-moradia, salário-família, auxílio-saúde, auxílio-alimentação, auxílio-transporte, auxílio-creche, auxílio-livro, licença-prêmio, adicional por tempo de serviço, gratificações, abonos. Como na pulseira, sempre há espaço pra mais um.

Esse hábito que permanece vivo entre nós ‒ e que nos parece natural ‒ desvela a mentalidade paternalista em que continuamos imersos. «Tá aqui, meu filho, teu dinheirinho. Se precisares de mais, vem falar comigo». A voz do coronel continua a ressoar. «Teu salário é baixo, mas, se precisar, eu ajudo.»

A receita pra se desvencilhar do subdesenvolvimento passa pela revisão total dos princípios de remuneração do trabalho. O salário de qualquer função, seja ela pública ou privada, deve permitir vida digna ao funcionário. Deve dar-lhe condições de se alimentar, se alojar, se vestir, sustentar a família, se transportar, cuidar da saúde. Se os vencimentos de base não são suficientes para cobrir as necessidades do funcionário, é porque o salário está baixo demais. Há que aumentá-lo. Acrescentar penduricalhos é como alimentar vício: sempre há espaço pra mais, entra-se na roda-viva e não tem como parar.

Infelizmente, os maiores beneficiários de berloques aéticos são justamente os que fazem as leis. Não é amanhã que legislarão em desfavor de si mesmos.