Jiang Zemin

José Horta Manzano

Jiang Zemin faleceu dois dias atrás aos 96 anos. O homem político assumiu altas funções no governo de Pequim em 1989 e permaneceu na liderança da China por 15 anos. Jiang assumiu as rédeas em seguida ao massacre da Praça da Paz Celestial. Coube-lhe administrar o soerguimento do país da condição de pária ao status de potência.

Engenheiro de formação, aderiu a Partido Comunista quando ainda era estudante. Que se saiba, foi o único líder chinês capaz de se comunicar em inglês. Falava russo e, dizem, também outras línguas.

Na quinta-feira 25 de março de 1999, Jiang Zemin, então presidente da China, estava na Suíça em visita oficial. A recepção havia sido preparada em detalhe e tudo corria bem. Cordões de isolamento, crianças agitando bandeirinhas, percurso em limusine (dessas que começam aqui e terminam na esquina), autoridades sorridentes, flores por toda parte.

Em Berna, assim que a comitiva parou na praça do Palácio Federal à porta do edifício que abriga o governo e o parlamento suíço (que corresponde à brasiliense Praça dos Três Poderes), a coisa subitamente desandou.

Vaias, gritos, apitos se fizeram ouvir. Do alto do prédios próximos desenrolaram-se bandeiras do Tibete, país ocupado e anexado por Pequim nos anos 1950. Cartazes com os dizeres «Free Tibet» apareceram por toda parte. As autoridades suíças, que não esperavam por essa, não sabiam se riam ou choravam.

O presidente da China, homem orgulhoso e colérico, teve um ataque de fúria. Rispidamente, perguntou à presidente da Confederação Suíça se ela não tinha capacidade de controlar seu próprio povo. E emendou, enfezado: «Vocês acabam de perder um bom amigo!».

Assim mesmo, o resto do programa foi cumprido. Mas o mandachuva chinês continuava muito chateado. Como é praxe, veio a troca de presentes. O governo suíço ofereceu ao chinês uma caixinha de música de grande valor, uma preciosidade, toda esculpida e pintada à mão, uma maravilha mecânica. E o visitante, depois de examinar o presente, ousou: «Ela parece funcionar melhor que a segurança deste país».

O visitante, pouco afeito à liberdade de opinião de que gozam os cidadãos europeus, não conseguia entender que “perigosos manifestantes” pudessem ter sido deixados à vontade. Em seu país, esse tipo de acontecimento é inconcebível. Antes de eventos importantes, tomam-se as devidas providências para dedetizar o terreno, esconder a miséria e tirar de circulação potenciais manifestantes.

A visita continuou num clima azedo. Passaram-se 23 anos e nenhum dirigente máximo chinês tornou a visitar a Suíça em caráter oficial.

Palavras têm peso

José Horta Manzano

Apesar do descontrole que reina nas redes sociais, terreno em que cada um se sente autorizado a dizer qualquer besteira a qualquer momento, palavras têm peso.

Apesar do descontrole que reina na mente de Bolsonaro, e que o faz sentir-se livre de dizer tudo o que lhe passa pela cabeça a todo momento, palavras ainda têm peso.

Apesar do descontrole que reina no miolo de muitos políticos, e que lhes permite atacar, insultar e tentar “cancelar” qualquer um a todo momento, palavras continuam tendo peso.

Bolsonaro, que vem sendo eficientemente blindado por correligionários por ele mesmo instalados em postos-chave da República, tem escapado a toda sanção. E vai continuar escapando até o dia em que cair do coqueiro. Como se sabe, tudo o que sobe acaba caindo um dia; e, quanto maior o coqueiro, maior o tombo.

Estes dias, um deputado federal do campo bolsonarista me fez lembrar o Zé Grandão Bobo, personagem de HQ da minha infância. Era um urso, sempre desenhado armado de porrete. Era grandalhão e espalhafatoso mas inofensivo.

O deputado foi condenado a portar tornozeleira eletrônica. Num ato de grande coragem, convocou a mídia e passou 24 horas refugiado na Câmara para escapar ao vexame. Pois o rapaz tem as características do antigo personagem: é grandalhão, é bobo e não passa de um zé qualquer.

Se está nessa sinuca é porque não se deu conta de que as palavras têm peso. Insultou, em mais de uma ocasião, magistrados do STF, uma temeridade para quem goza de foro especial e sabe que, se for julgado um dia, seus juízes serão… os magistrados do STF.

Parece coisa de débil mental. Como resultado evidente, o deputado não contou com a indulgência dos juízes. Vai ter de usar a algema eletrônica, queira ou não queira. Mostrou fazer jus a minha observação: é zé, é grandão e é bobo.

O mundo inteiro descobriu ontem cenas de horror provenientes da Ucrânia. Em peso, a mídia mostrou as atrocidades cometidas pelo exército russo na pequena cidade de Butcha, abandonada pelos invasores coalhada de cadáveres de civis executados a sangue-frio.

Chocados com o que viram, alguns dirigentes não pesaram as próprias palavras e falaram em genocídio. Zelenski, o presidente da Ucrânia, foi o primeiro a usar esse qualificativo para o que se passou naquela cidadezinha da periferia de Kiev. Sendo ele o presidente do país agredido, dá pra relevar o deslize.

Fica mais difícil dar o mesmo desconto aos primeiros-ministros Pedro Sánchez (Espanha) e Mateusz Morawiecki (Polônia), que utilizaram o mesmo termo de genocídio. Estão enganados.


Genocídio é palavra relativamente recente, criada nos anos 40 e oficializada por convenção da ONU de 1948. A definição é oficial e rigorosa: é a exterminação sistemática de um grupo humano por motivos de raça, língua, nacionalidade ou religião. Corresponde, portanto, a limpeza étnica – um ato extremado levado a cabo por motivos étnico-religiosos ou por loucura.


Aconteceu na Bósnia-Herzegovina nos anos 90, quando batalhões sérvios cuidaram de eliminar sistematicamente populações inteiras de muçulmanos.

Fica fora de esquadro falar em genocídio de russos contra ucranianos. Os dois povos compartilham a história e a religião; falam línguas muito próximas; têm entrelaçamento familiar: grande parte dos ucranianos têm parentes russos e vice-versa. Difícil mesmo é encontrar russos ou ucranianos “de raça pura”.

Pode até ser que, lá no fundo da cabeça de Putin, esteja a ideia de “cancelar” o povo ucraniano, talvez até de partir para a eliminação física. No entanto, enquanto isso não for comprovado, não convém usar o termo genocídio. Que se diga crime de guerra, expressão que não será contestada por ninguém.

Baseada no que aconteceu em Butcha, a acusação de genocídio tem pouca chance de ser recebida pelo Tribunal Penal Internacional.

Atrocidade, brutalidade, crueldade, barbaridade, massacre, selvajaria, bestialidade, desumanidade são termos de bom tamanho. Exprimem julgamento de valor e não entram em colisão com nenhuma definição oficial.

Life is cheap

Mãos ao alto 1José Horta Manzano

Pelo fim dos anos 70, numa época em que eu trabalhava para uma firma americana estabelecida em São Paulo, recebemos um visitante dos EEUU. Lá pelas tantas, em meio a um bate-papo despretensioso, não me lembro mais por que razão, ele se saiu com esta: life is cheap in this country ― a vida é barata neste País.

Levei um bom tempo tentando decifrar a mensagem do forasteiro. Certamente ele não se referia ao preço dos gêneros alimentícios, nem ao salário dos funcionários ― que, naquela época como hoje, andava um bocado defasado se comparado com os países mais adiantados.

Com o passar dos anos, confrontando fatos brasileiros com acontecimentos internacionais, fui pouco a pouco me dando conta do alcance das palavras do visitante. Acredito que hoje consigo decodificar o significado delas.

Faz umas duas semanas, os jornais deram, nas páginas internas, a notícia de que o dono de um restaurante havia assassinado um cliente. O motivo? Uma discussão provocada por uma reclamação sobre uma diferença de 7 reais na conta da refeição. Sete reais! Uma vida ceifada por três dólares! Para reavivar memórias curtas, aqui está a informação publicada pela Folha de São Paulo.

Estes dias, repeteco fúnebre. Desta feita, foi a vez de o dono de um restaurante ser presenteado com bilhete de ida simples para o necrotério em consequência de um litígio sobre uma conta de 8 reais. Oito reais! Quem esteve passeando na Polinésia semana passada pode se atualizar relendo a informação dada pelo Correio Braziliense.

Poderia ter acontecido com o distinto leitor, com a elegante leitora, com qualquer um de nós. Ou não?

A notícia de que um jovem desequilibrado trucidou 20 pessoas numa escola americana, faz alguns dias, chocou e comoveu o mundo. Baldes de tinta foram gastos em tentativas de explicação do tresloucado gesto. Jornais da Guatemala, da Somália e da Mongólia repercutiram a pavorosa informação.

Que eu tenha visto, salvo escassas notas internas de nossa mídia, poucos se interessaram pelos homicídios tupiniquins. Um filósofo de botequim poderia até chegar à conclusão de que massacres só chamam a atenção quando as vítimas são numerosas. Ou ricas e famosas.

Vamos, minha gente, matutemos um instante. Cometer o irreparável contra um semelhante já era, por si, uma barbárie condenada pelos neandertais, cinquenta mil anos atrás. Fazê-lo hoje, em pleno século XXI, por um punhado de reais ultrapassa o entendimento. É surrealista.

Mãos ao alto 2Desgraçadamente, como sabemos todos, selvagerias como essas acontecem diariamente em nosso País. As duas que mencionei só tiveram direito a menção na imprensa por terem sido perpetradas em recintos públicos de grandes cidades. Bateladas de acontecimentos semelhantes passam em branco. Sabe Deus o que se comete quotidianamente nos grotões de Santa Sebastiana do Fundão ou de Jururu d’Oeste.

Onde está o erro? Por que é que a constatação do visitante de 35 anos atrás permanece tão atual? De que serve adotar linguagem politicamente correta, patrocinar manifestações esportivas prestigiosas, trombetear crescimento econômico, enquanto o valor da vida humana continua tão insignificante?