A palestra do ministro

Observador, Portugal

José Horta Manzano

Segunda-feira passada, doutor Queiroga, ministro da Saúde do triste governo Bolsonaro, deu um pulo a Lisboa para dar uma palestra. Discorreu sobre “As ações do Brasil no enfrentamento da covid-19” – tema escolhido por ele mesmo. Detalhe sintomático: ao final de 45 minutos de falatório, ninguém se animou a fazer perguntas. Fico deveras admirado com a cara de pau de Sua Excelência de se prestar a essa encenação oca.

O Brasil começou o combate à epidemia de maneira desastrada, com atraso em relação a países comparáveis. Todos se lembram de quando o capitão, que tinha rejeitado insistentes propostas da Pfizer, implorou à Índia que lhe mandasse meia dúzia de vacinas, só pra aparecer no telejornal antes do arqui-inimigo Doria. Chegou a mandar um avião buscar as preciosas ampolas. Voltaram desenxabidos e sem vacina.

Desde que a pandemia pegou feio, a área crucial da Saúde foi confiada a nada menos que 4 (quatro) ministros: Mandetta, Teich, Pazuello (de triste memória) e Queiroga. Os dois últimos, que realmente pegaram o período mais crítico da covid, tiveram comportamento negacionista e trabalharam contra tudo o que a ciência determina. Pazuello foi o desastre que todos viram. Queiroga já afirmou, por exemplo, ser contrário à máscara de proteção e ao distanciamento social.

Expresso, Portugal

Portugal também foi mal no início. Logo no começo, ano e meio atrás, figurou entre os países que mais sofriam, com hospitais e cemitérios lotados. Só que os portugueses tiveram a sorte de contar com um governo que trabalhou contra a disseminação da doença e a favor da saúde da população. Foi bem diferente de nós, que tivemos a infelicidade de ter um governo trabalhando a favor do alastramento da epidemia e contra a saúde do povo.

As boas medidas tomadas pelo governo luso, acompanhadas do espírito cívico de um povo que confia em suas autoridades, fizeram a diferença. Portugal recuperou o terreno perdido e tornou-se campeão mundial de vacinação. Neste momento, quase 87% da população já cumpriu integralmente o esquema vacinal. As autoridades sanitárias já estão preparando a dose de reforço (3ª dose). Mortes em decorrência da covid tornaram-se raras. Para efeito de comparação: o Brasil já vacinou 51% de sua população.

Carregando nas costas um passivo que ultrapassa 600 mil mortos, faço de novo a pergunta: o que é que Sua Excelência foi dizer aos portugueses? Será que foi pedir desculpas? Ou, humilde, tentar aprender como é que se enfrenta uma pandemia?

Jornal de Notícias, Portugal

Fica a incômoda impressão de que a palestra era apenas o pretexto para uma agradável etapa lisboeta, com direito a uma visita ao Castelo de São Jorge, seguida por um Bacalhau à Brás regado a vinho do Dão. De arrebitar-se-lhe as orelhas, ó pá!

Doutora Dilma fez isso uma vez, lembram-se? Voltando não me lembro de onde, mandou o avião fazer uma parada clandestina em Lisboa, onde toda a comitiva apeou para devorar uma bacalhoada. Na saída do restaurante estrelado, todos tiveram direito a sair carregando uma ou duas garrafas de vinho “p’ra viagem”. Tudo no cartão corporativo.

Direita? Esquerda? Quá! Tudo igual. Na hora da malandragem, todos comem à mesma mesa. E quem paga a conta somos nós, evidentemente.

Lição de distributivismo

Sede da OMS, Genebra (Suíça)

José Horta Manzano

Vamos imaginar uma situação. É um bocado irreal, mas serve para ilustrar o que quero dizer. Digamos que o distinto leitor, ao caminhar no centro da cidade, topa com um grupo de pessoas maltrapilhas, adultos e crianças. Dois homens, que parecem liderar o grupo, estendem a mão. Faz sol, o dia está bonito, você se levantou feliz e de bem com o mundo. Por isso, se dispõe a ajudar. Vasculha a carteira e tira de lá uma nota de 5 reais (ou 10, ou 20, ou 50 – dependendo do nível de generosidade do leitor).

Você estende a nota em direção aos dois, movimenta levemente o braço de um lado para o outro e diz: “Isto é para os dois; não tenho trocado, mas fica metade pra cada um”. Neste ponto, em vez de agradecer, um dos homens retruca: “Ei, moço (ou moça, se for o caso), metade pra cada um não está certo! O companheiro aqui tem dois filhos e eu tenho três. Mereço mais.”

Quem achou que a situação é absurda acertou. Ela é. Pra início de conversa, nos dias atuais, seria imprudente parar na rua diante de um grupo de cidadãos desconhecidos e, ainda por cima, remexer na carteira (ou na bolsa). Porém, há mais importante que isso: as regras básicas da civilidade ensinam que não cabe ao suplicante dar instruções ao socorrista sobre a repartição do auxílio.

Pois esse princípio elementar acaba de ser violado por um ministro de Bolsonaro. Foi na semana passada. Durante coletiva de imprensa organizada pela OMS (Organização Mundial da Saúde), doutor Queiroga, ministro da Saúde do Brasil, lançou um apelo. Falando de vacina anticovid, implorou a todos os países que tivessem doses sobrando que compartilhassem lotes com o Brasil.

Até aí, tudo bem. Pedir, todo o mundo pode. O enrosco vem agora. Petulante, o doutor aproveitou os holofotes para dar instruções aos hipotéticos doadores. Em verdadeira lição sobre distributivismo, acrescentou que “o acesso ao imunizante deve ser proporcional à gravidade da emergência sanitária”. Com isso, quis dizer que o Brasil merece receber mais que os demais, visto que nossa situação é mais embolada.

Tenho dois reparos. Primeiro, como já disse antes, não cabe ao suplicante dar instruções ao socorrista sobre a repartição do auxílio. Esse tipo de arrogância pega mal pra caramba.

Segundo, não se pode esquecer que o governo Bolsonaro – ao qual o ministro serve – não tem perdido ocasião, desde que a pandemia se instalou, para desancar a OMS, difundir notícias falsas sobre ela, acusá-la de ser partidária e de estar a serviço da China. O capitão imitou o comportamento de Donald Trump, seu ídolo, nesse desvario. Só que, agora que Trump se foi, Bolsonaro ficou no mato sem cachorro tendo de implorar à pérfida OMS umas sobras de vacina. Um vexame.

Não tivessem nossos dirigentes sido tão estúpidos e pretensiosos, o planeta inteiro estaria socorrendo o Brasil espontaneamente, como um punhado de países mais civilizados estão fazendo com a Índia. Não precisaria nem pedir, e muito menos ensinar aos socorristas como distribuir as doações.

Quem não gosta de samba

José Horta Manzano

No quesito harmonia, o Bando da Lua foi pioneiro entre os conjuntos vocais brasileiros. Constituído já na primeira metade dos anos 1930, foi na virada para a década seguinte que, na trilha do triunfo internacional de Carmen Miranda, subiu à notoriedade. É que, convidados a acompanhar a ‘Pequena Notável’ na nova carreira, os rapazes permaneceram anos nos EUA, onde trabalharam em espetáculos e em quase dez filmes ao lado da estrela.

Entre outros sucessos, gravaram em 1940 Samba da minha terra, composição de um então pouco conhecido Dorival Caymmi, jovem de 26 anos. Nem Caymmi nem o Bando da Lua poderiam imaginar que, 80 anos mais tarde, gravado e regravado por uma coleção de artistas, o samba ainda estaria no ouvido de todos.

Quem não gosta de samba
Bom sujeito não é
É ruim da cabeça
Ou doente do pé

Quem é que não conhece?

O estribilho vale como metáfora permanente. Me lembrei dele hoje de manhã. É que, ao abrir o jornal, me dou conta de que, nas altas esferas da República, o desfile de insanidades continua.

O doutor que nos governa acaba de contratar seu quarto ministro da Saúde. É o homem que, no papel, deve cuidar da saúde dos brasileiros e conduzir o país a bom porto nesta pandemia. No papel, disse eu. Vamos ver se, na prática, a teoria é a mesma. É permitido ficar com um pé atrás.

A esta altura do campeonato, em que a forte perturbação que acomete a mente do presidente é conhecida de todos, o que é que levaria essa gente fina a aceitar um posto no governo do capitão?

  • A atração do vil metal
    tipo ‘agora vou abrir conta na Suíça’?
  • A vaidade irresistível
    tipo ‘vejam até onde cheguei’?
  • Um irrefreável masoquismo
    tipo ‘adoro ser humilhado em público’?
  • A necessidade de fugir da justiça
    tipo ‘devo, não nego, mas se me cobrarem, tenho foro privilegiado’?
  • Convicção sincera de que o presidente está com a razão
    tipo ‘ele é meu ídolo, portanto está sempre certo’?
  • A ingenuidade absoluta
    tipo ‘dãããã’?

Alguma razão haverá. O mistério parece insondável. No entanto, a solução é às vezes tão evidente, que ninguém vê. A resposta, de tão simples, parece estar na cara. Não precisa buscar nos escritos de Freud. Basta reler a metáfora de Caymmi e adaptá-la ao nosso tempo. Assim.

Quem aceita convite de Bolsonaro
Bom sujeito não é
É ruim da cabeça
Ou doente do pé.

Troca-troca

José Horta Manzano

Esta manchete de agora há pouco mostra o estado de descontrole ao qual chegamos. A tibieza do governo da República leva alguns cidadãos mais ousados a mercadejar: “Pago pra me deixar abrir a loja”. É o cúmulo.

Desorientados, os brasileiros são bem capazes de sair nadando atrás do canto da sereia. Muita gente fina ainda vai aprovar o gesto desse comerciante mais preocupado com o próprio lucro do que com a saúde dos clientes. Alguém pode até se deixar impressionar: “Veja que generosidade! Oferece respiradores, artigo que está em falta nos hospitais”.

Respiradores não se tiram do chapéu. É altamente improvável que esse camarada tenha estocado esses aparelhos no porão de casa. Portanto, está fazendo terrorismo barato, brincando com a ansiedade da população.

Tem mais. Ainda que ele tivesse um carregamento de respiradores, a proposta de toma lá dá cá seria indecente. Se esse lote de aparelhos realmente existir, o comerciante merece sofrer confisco da mercadoria e processo por tentar se aproveitar da ingenuidade alheia em proveito próprio.

O preço da imprudência

José Horta Manzano

Velho ditado herdado dos lusos ensina que o segredo é a alma do negócio. Para mim, continua válido. No entanto, nestes tempos bizarros, parece que menos e menos gente leva essa evidência a sério.

Todo o mundo faz besteira de vez em quando, que ninguém é santo. Quando éramos adolescentes e fazíamos algo reprovável, a reação primeira era guardar segredo. Alguns, não aguentando a tensão e o peso de reter a informação, confiavam-se ao melhor amigo, àquele que oferecia certa garantia de não espalhar a notícia. Já outros, mais prudentes ainda, preferiam confiar o escorregão ao diário.

diario-1Aos mais jovens, explico que diário era um caderno pessoal, geralmente de capa dura, muitas vezes trancado com um cadeadozinho, onde o proprietário deitava por escrito as peripécias de cada dia. Alegrias, tristezas, esperanças e confissões se misturavam. Dado que faz anos que não ouço falar nesse tipo de confessionário, imagino que tenha desaparecido junto com a máquina de escrever e o óleo de fígado de bacalhau.

A popularização de ‘redes sociais’ tornou menos nítidos os limites entre o pessoal e o coletivo. Adolescentes ‒ e adultos também ‒ parecem não se dar conta de que, ao confessar «façanhas» a um círculo que imaginam fechado e confiável, estão divulgando informações que lhes podem ser prejudiciais.

Chamada do Estadão, São Paulo

Chamada do Estadão, São Paulo

Dia sim, outro também, a gente acaba ficando a par da besteira alheia. Tem aquela servidora ‒ Coordenadora do Programa de Saúde Bucal do Ministério da Saúde! ‒ que pediu licença médica para tratamento de saúde e se mandou para Madri, numa escapada de lazer. Imprudente, fez circular na internet a prova da transgressão. Com foto e tudo. Não deu outra: a história foi parar no Estadão e a moça perdeu o emprego.

Tem também aquela funcionária da Receita argentina que, alegando doença traumatológica, tirou licença. Na verdade, veio curtir o sol e «tomar uns tragos» nas praias de Florianópolis. Também ela fez questão de difundir a prova documental do delito. Tudo foi parar no Clarín, jornal argentino de grande circulação.

Chamada do Clarín, Buenos Aires

Chamada do Clarín, Buenos Aires

Fico aqui a me perguntar o que leva essa gente a relatar suas infrações ao grande público. Será inconsciência? Vaidade exacerbada? Burrice mesmo? Ou, talvez, uma combinação de todas essas fraquezas?

Freud deve poder explicar. Enquanto a explicação não vem, astros e atrizes destes novos tempos pagam seu efêmero momento de estrelato com a perda do emprego. E assim vai o mundo. Imperfeições e desvios, que antes eram guardados debaixo de chave, vão-se tornando motivo de orgulho. Vá entender, distinto leitor!

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Só para finalizar
E o que acontece com médico que dá atestado a paciente em perfeita saúde? Fica por isso mesmo?

Vai um pentaciclorofenol aí?

José Horta Manzano

Você sabia?

Este blogueiro não é ecologista de carteirinha. Acho perfeitamente legítima toda preocupação em manter o frágil equilíbrio entre os componentes da natureza. Do jeito que a coisa vai, a continuarmos a satisfazer necessidades presentes como se não houvesse amanhã, corremos à desgraça.

No entanto, não enxergo viabilidade de a ecologia ser transmutada em força política suficiente para constituir partido próprio. Por sinal, em países onde é forte a preocupação com o meio ambiente, o Partido Verde (ou Ecológico), ao escorar-se nalguma corrente política mais poderosa, enriquece-a. Embora não seja o único caminho, é comum que ecologistas se associem a socialistas.

Com informações da Abrasco

Com informações da Abrasco

Por minha parte, acho imprescindível que a ecologia constitua capítulo importante no programa de todo partido. Exceção será concedida aos ditos «partidos de aluguel», aqueles que não têm programa e que só contribuem para reforçar nossa etiqueta de república de opereta.

A Abrasco ‒ Associação Brasileira de Saúde Coletiva lançou seu dossiê 2015, verdadeiro alarme sobre o impacto dos agrotóxicos na saúde. No Brasil, país de economia eminentemente agrícola, é assunto relevante. O aprofundado estudo é apresentado didaticamente e descarregável aqui. Os interessados não se decepcionarão.

Alguns números são assustadores. Cerca de 70% dos alimentos consumidos no Brasil estão contaminados por agrotóxicos. Um terço deles são produtos proibidos no país, mas utilizados assim mesmo. Uma saideira: cada brasileiro consome 7½ litros de pesticida por ano. Não é uma barbaridade?

Envelhecendo

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Estou desolada. Diante do espelho, constato a celeridade com que o envelhecimento toma conta de mim em todos os sentidos. O que me incomoda não é tanto a decadência física mas principalmente aquilo que chamo de ‘perda de esperança’. Sinto que sobrevivo não por escolha mas por um simples compromisso religioso de cumprir tabela. Como se colocar ativamente um ponto final naquilo que não faz mais sentido pessoal fosse uma transgressão indesculpável perante a divindade. Contraditório, não é mesmo?

Computador 2Explico melhor essa sensação de obsolescência. Consultando o dicionário, é possível ver que, dentro de um contexto econômico, obsolescência significa “diminuição da vida útil e do valor de um bem devido não a desgaste causado pelo uso mas ao progresso técnico ou ao surgimento de produtos novos”, como informa o Houaiss. É precisamente o que sinto. Perdi todo meu valor de mercado no mundo profissional e grande parte dele na família e no meu círculo de amizades.

Submergi um tanto a contragosto no tsunami do desenvolvimento de novas tecnologias e minha recusa em utilizar as redes sociais para me comunicar foi o que bastou para decretar minha exclusão da vida prática. Não consigo lidar decentemente com tantos gadgets eletrônicos. É como se minha habilidade para mexer com essas maquininhas fosse comparável à de um hipopótamo tentando aprender passos de dança e minha inteligência estivesse próxima à de um ouriço. Novos aparelhos cada vez menores e teclados cada vez mais curtos e estreitos me parecem pensados para o uso de crianças ou para os jovens que aprenderam a digitar em seus celulares utilizando só a ponta dos dedos, só um dedo de cada vez e só uma das mãos. O mouse dos notebooks faz com que eu passe os dias praguejando contra minha canhotice e consequente falta de destreza.

by Salvatore Malorgio

by Salvatore Malorgio

O tempo, que antes me era tão precioso, perdeu agora todo o seu significado. Para mim, tanto faz se hoje é segunda-feira ou quinta, se o mês é maio ou agosto, se o ano é 1997 ou 2015. Os dias passam burocraticamente, sem deixar rastros na minha lembrança. Em que ano mesmo aconteceu a morte do meu pai? E o daquela amiga querida? Não importa. Tudo o que sobrou foi a memória dolorida do espanto, a inconformidade com a perda, a revolta contra o destino e, mais tarde, a pura e simples apatia.

Quando acordo, compilo mentalmente as tarefas que terei de executar ao longo do dia e depois as vou cumprindo mecanicamente. E, se penso no dia de amanhã, tudo o que me ocorre fazer é tentar lembrar que coisas vão ter de ser feitas nas próximas 24 horas. Tenho de ir ao banco pagar uma conta? Preciso passar na farmácia para comprar aquele remédio que está acabando? Não posso esquecer de telefonar para…

by Lena Karpinsky

by Lena Karpinsky

Olho-me ao espelho e observo condoída a desesperança instalada em meus olhos. Examino horrorizada as mudanças em meu corpo. Cadê as carnes que até uns cinco anos atrás enchiam confortavelmente estas roupas? Já dá para notar o acabamento em plissê na parte interna de meus braços e coxas e os músculos de minha barriga se espraiando num belo godê. O que foi feito do brilho dos meus cabelos e daquela luzinha que insistia em aparecer no fundo dos meus olhos? Por onde anda a curiosidade que sempre foi meu motor na vida? Pareço ridícula, tenho a figura de um espantalho que engoliu um melão e carrega nas costas, encurvado para a frente, um feixe de algodão. Estou literalmente minguando.

A vida de aposentada ajuda a acrescentar requintes de crueldade a esse quadro por si só dantesco. Quando vou ao supermercado, pego os ítens que me davam prazer consumir, fico assustada com os preços e acabo descartando-os quando chego ao caixa. Quando me alimento, já não vejo a comida com olhos de prazer ou de promessa de sabor e saúde, mas só com olhos de quantidade. Será que essa comida vai dar para chegar até o fim do mês? Se eu não comer isto aqui, vai estragar em dois dias. Isto é pouco ou muito para matar minha fome? Por falar nisso, qual é o tamanho real da minha fome? Consulto meu estômago e concluo sempre que dá para postergar por mais algumas horas a decisão de comer. Só volto ao assunto quando me sobe pelas entranhas aquela onda de enjoo e desconforto por tantos cigarros fumados inconscientemente.

by Edvard Munch

by Edvard Munch

Cinema, teatro, literatura e outras atividades culturais? Não, não posso mais pagar por esses afagos à minha alma. Além disso, só de pensar em me vestir, sair de casa, enfrentar o trânsito caótico desta cidade e pegar fila, minha disposição se esvai em segundos. Almoço com amigos? Não dá, enfrento sempre sérias restrições financeiras para encontrar o local certo, isso sem falar do meu vegetarianismo e da minha dificuldade de mastigar coisas muito duras. Uma saída à noite para uma conversa acompanhada por um drinque? Não posso, sou diabética.

Meu peito também já não vibra com praticamente nenhuma emoção. Talvez me tenha sobrado apenas a indignação derivada da leitura dos escândalos políticos ou dos tenebrosos casos policiais de violência. As emoções ditas positivas me ocorrem, sim, de quando em vez, mas parecem vir sempre filtradas. São tímidas, acanhadas, sempre em tom pastel. Às vezes experimento uma sensação de leveza ou de bem estar, principalmente quando uma brisa bate de leve em meu rosto ou quando me sento ao sol e fecho os olhos. Outras vezes me enterneço vendo minhas cachorras desfrutando de sua doce intimidade, chamando uma à outra para novas brincadeiras. Mas é só, nenhum turbilhão emocional nem num sentido nem em outro.

Meu cérebro é o último bastião. Continua teimosamente produzindo pensamentos, analisa, investiga, questiona, tira conclusões, revisa e coloca tudo em suspenso até um novo pensamento abrir espaço à força dentro dele. Tenho opiniões, sem dúvida, mas na maior parte das vezes sem serventia alguma. Estou cansada de apontar ranzinzamente o dedo contra as mazelas do mundo contemporâneo. Decididamente não tenho mais espaço nesse mundo que se transformou em um festival de selves e de selfies.

by Abby Schmearer

by Sylvia Baldeva

 

Sei que o que me falta neste momento é tolerância para acolher o novo, jogo de cintura para aprender coisas novas, alegria para remover os obstáculos e vontade de recomeçar. Não importa mais o que penso, como penso e quando penso. É só um velho hábito, uma boca torta pelo uso tão frequente desse cachimbo.

Na Antroposofia se diz que a energia vital entra pelos pés todas as manhãs e sai pela cabeça ao final do dia. Deve ser por isso que, ao longo da vida de uma pessoa, os orgãos dos sentidos vão desinvestindo aos poucos na realidade externa e o mundo interior vai ocupando lentamente os espaços vazios. É isso, a única realidade que me diz respeito é a extracorpórea. Sou um fantasma vagando desinteressado e sem direção por entre coisas e gentes.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

O pão e o brioche

José Horta Manzano

Revolution 1«Ils n’ont pas de pain? Qu’ils mangent donc des brioches!» Não têm pão? Que comam brioches!

A frase maldosa, que provavelmente nunca foi pronunciada, é atribuída a Marie-Antoinette, esposa do rei de França Luís XVI.

A rainha, de origem austríaca, era odiada pelo povo francês, que a chamava, com desdém, “a estrangeira”. Tanto ela quanto o marido foram precipitados à guilhotina, na esteira da Revolução Francesa.

O fato é que, naqueles tempos de monarquia absolutista, os do andar de cima viviam numa bolha, desconectados do povo. A população servia para fornecer combatentes para repetidas guerras. Fora isso, cada um que se virasse como pudesse.

Guardadas as devidas proporções, os altos círculos políticos do Brasil atual lembram a França pré-revolucionária do século XVIII. Basta atualizar alguns conceitos. Quer ver? Troque-se monarquia absolutista por desvario político. E substitua-se o termo ‘combatentes’ por ‘eleitores’. Pronto. Vamos reescrever a frase.

Manif 2Nestes tempos de desvario político, os do andar de cima vivem numa bolha, desconectados do povo. A população serve para pagar impostos e para votar nos candidatos “certos”. Fora disso, cada um que se vire como puder.

A frase de Marie-Antoinette também tem de ser atualizada. Fica assim: “Eles não têm escola, nem segurança, nem saúde? Que se contentem com a bolsa família!”

A fúria que se levantava contra a rainha francesa dois séculos atrás corresponde hoje à antipatia que cresce no povo brasileiro contra a presidente da República.

Guilhotina passou de moda, mas o futuro de nossa Marie-Antoinette tupiniquim não se apresenta sereno.

Os 39 ministérios

José Horta Manzano

Dilma ministerio 2Estive dando uma espiada na lista dos 39 integrantes do obeso ministério de dona Dilma. Encontrei lá algumas curiosidades.

Temos dois ministérios encarregados de zelar pela agricultura: o Ministério da Agricultura e o Ministério do Desenvolvimento Agrário. Falta, no entanto, um Ministério da Pecuária – uma das maiores fontes de renda do País. Original, não é?

O Ministério da Educação, o Ministério da Cultura e o Ministério da Saúde coexistem. Nos tempos em que nosso país era menos desvairado, uma pasta cuidava sozinha dos três assuntos.

Há um curioso Ministério de Assuntos Estratégicos. Sua denominação soa incômoda e até ofensiva para com os outros ministérios. É como se os outros, não sendo estratégicos, fossem de secundária importância. Quais seriam esses «assuntos estratégicos» que não são da conta de outras pastas? Relações bolivarianas? Contabilidade paralela? Conchavos com “base aliada”?

Dois ministérios parecem disputar a mesma área: o das Comunicações e o da Comunicação Social. A denominação deixa claro que um deles é voltado para o social. E o outro que faz?

Temos o Ministério das Cidades, mas não o Ministério do Campo. Fica aqui a sugestão para o quadragésimo. Mais de cem anos atrás, Eça de Queirós já distinguia as cidades e as serras.

Sempre imaginei que Justiça fosse conceito abrangente. Aos olhos dos teóricos do Planalto, não é. Nossa justiça é magrinha. Diversas áreas foram amputadas do Ministério da Justiça para constituir ministérios separados: Ministério da Igualdade Racial, Ministério de Direitos Humanos, Ministério de Políticas para as Mulheres. Privada de cuidar de direitos humanos, o que é que sobra na pauta da Justiça? Será o direito dos animais?

Dilma ministerio 1Temos um peculiar Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Fome não se combate com ministério, mas com escola e formação profissional. E essas são atribuições de outros ministérios. Esse da fome, portanto, há de ser o que distribui a bolsa família.

O Ministério dos Transportes sofre pesada concorrência do Ministério da Aviação Civil. A coexistência dos dois deixa a impressão de que avião civil não é meio de transporte. Fica aqui registrada a sugestão de dois novos ministérios: o da Viação Civil (para cuidar dos ônibus) e o do Desenvolvimento Ferroviário (para promover implantação de ferrovias).

Fico a me perguntar para que serve o Ministério da Integração Nacional. Se o Brasil está-se desintegrando, não será um ministério a mais que vai estancar a dissolução do País. Política boa e bem-intencionada não precisa de ministério exclusivo. Quem garante – ou devia garantir – a integração do País é o chefe do Executivo. No caso, nossa presidente.

by Ademir Vigilato da Paixão, desenhista paranaense

by Ademir Vigilato da Paixão, desenhista paranaense

Dá pena saber que há um Ministro dos Portos. Faria mais sentido mandá-lo para Cuba, para gerir o ultramoderno Puerto de Mariel, presente do povo brasileiro aos empreiteiros amigos. Nosso portos estão sucateados. A verba destinada à manutenção do ministério seria mais bem empregada na recuperação de nossos terminais.

Para encerrar – e para não cansar demais o distinto leitor – informo que, velando pelo comércio e pela indústria, temos dois ministérios. Por um lado, o do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Por outro, o da Micro e Pequena Empresa. Assim, indústria, microempresa, pequena empresa e comércio exterior estão cobertos. E grandes empresas de comércio interno como é que ficam? Soltas no organigrama?

«C‘est du grand n‘importe quoi» – é uma salada de asneiras, como dizem por aqui.

Os avaliadores

José Horta Manzano

O Estadão noticiou que a correção das provas de redação da última edição do Enem ― Exame Nacional do Ensino Médio ― pôs em evidência a incompetência de alguns avaliadores. Eram gente que já tinha sido aprovada em primeira instância.

«Alguns avaliadores» é eufemismo meu. Foram 845(!) indivíduos de um total de 7121. Parece pouco? Pois são 12% dos contratados. Ainda parece pouco? Pois vale dizer que um em cada oito corretores é incompetente.

Estudante 2Segundo a reportagem, os contratados são submetidos a reavaliação permanente, razão pela qual tem sido possível separar o joio do trigo e, assim, apontar e eliminar os incapazes.

Como diz o outro, o buraco é bem mais profundo. A detecção de revisores ineptos não deveria ser confiada a processo permanente de reavaliação. A correta avaliação é incumbência dos selecionadores ― é lá que se situa a falha. Não é aceitável que, em oito corretores admitidos, um seja incapaz. Isso prova que a peneira está furada.

Para o concursando mal avaliado, as consequências podem ser graves. Maus corretores tanto podem reprovar bons candidatos, quanto podem deixar passar ― como já aconteceu ― gente que insere na redação receita de macarrão instantâneo ou hino de clube de futebol.

A retribuição de 3,61 reais por redação não permite ao corretor dedicar mais que uns poucos minutos a cada texto. Barbaridades tendem a passar despercebidas ― é inevitável.

ExameUma amiga minha, professora de uma faculdade cujo nome prefiro não citar, contava-me outro dia que já foi convidada a ser avaliadora da prova de redação do exame vestibular. Dona de grande honestidade intelectual, a moça preferiu declinar da oferta por não ser especialista no ramo. Ficou sabendo depois que a paga proposta aos corretores era de 1 real (unzinho só!) por prova.

Muitos aceitaram. Entre eles, houve que ficasse sem comer e ser dormir a fim de sapecar seu jamegão no maior número possível de textos. O distinto leitor fará, por si mesmo, ideia da qualidade do trabalho de avaliação. Assim como o demagógico «Mais Médicos» não resolveu o problema da Saúde Pública, nem um hipotético «Mais Escolas» ou, sabe-se lá, um «Mais Avaliadores» resolveriam, sozinhos, o problema da Instrução Nacional.

Só uma ação conjunta, planejada, bem arquitetada, bem executada, abrangente, lenta, gradual, segura e definitiva poderá tirar o Brasil do atraso cultural em que se encontra há 500 anos. Depende de cada um de nós e… dos que vierem depois.

Na corda bamba

José Horta Manzano

Saiu a notícia. Temos agora a prova de que dona Dilma realmente ouviu o clamor popular. Vem aí a reforma ministerial, o grande trunfo que ela guardava na manga!

Equilíbrio na corda bamba

Equilíbrio na corda bamba

É, mas vem tímida essa reforma. Do obeso corpo de 39 ministros que a cerca, a presidente anunciou que um ― um só! ― será substituído. Trata-se da titular da pasta de Relações Institucionais, dona Ideli.

Cada cabeça, uma sentença. No lugar da presidente, eu aproveitaria a atual onda de reclamos para fazer uma reforma ministerial cirúrgica e radical. Despacharia todos e recomeçaria do zero. Mostraria ao povo que não só ouvi os protestos, mas que os escutei. Mas a presidente é ela, não eu. Melhor assim.

Ao tomar decisões sempre acanhadas, dona Dilma age como se estivesse recuando o tempo todo. Não emite um bom sinal. Nem ao povo, nem a ninguém. A mandatária fortona e inflexível vai aos poucos desvelando sua fragilidade. A meu ver, a presidente incorre em quatro erros básicos.

O primeiro é que esse tipo de anúncio não se deve fazer com antecedência. Essas coisas têm de ser zás-trás, catapum, nada de aviso prévio! Demite-se o inquilino antigo, apresenta-se imediatamente o novo locatário, e vira-se a página. Do jeito que está sendo feito, o efeito de surpresa está irremediavelmente diluído.

Equilíbrio na corda bamba

Equilíbrio na corda bamba

O segundo erro é a presidente «dar uma de marrudinha», principalmente no difícil momento que atravessa. Fez questão de proclamar que não dispensará a ministra enquanto os aliados a estiverem pressionando. Quis dizer: «Faço o que quero, quando quero, como quero. Ninguém manda em mim». Só faltou fazer biquinho.

O terceiro é que a troca de ministros, de tão tímida, não terá o menor impacto no povo insatisfeito. Se a maioria conhece a função de um ministro da Educação ou do titular da Saúde, poucos sabem para que serve a ministra de Relações Institucionais. O nome é pomposo, mas o efeito que essa exoneração terá sobre a opinião pública será próximo de zero

O quarto erro é que dona Dilma dá mostras de continuar em cima do muro, equilibrando-se numa corda bamba. Dá uma no cravo, outra na ferradura. Hoje tenta agradar uma ala do partido A. Amanhã, uma facção do partido B. No dia seguinte, um grupo de congressistas reclamões. O risco é de desagradar a maioria dos cortesãos, cujo apetite por sinecuras é pantagruélico. E, nessa roda-viva, os eleitores e seus rogos vão sendo deixados para trás. Que se contentem com quimeras, como o bizarro plebiscito.

É pena que a presidente não consiga se liberar das amarras que a prendem às intrigas palacianas, a correligionários, a messias, a gurus e a congressistas cooptados e mal-acostumados. É de lastimar que continue dando a impressão de governar unicamente para os do andar de cima.

Equilíbrio na corda bamba

Equilíbrio na corda bamba

Os modernos meios de comunicação mudaram, a população que nasceu com internet está chegando à idade adulta. A presidente dá sinais de estar confusa, perdida, atirando para todos os lados, na ânsia de conciliar o inconciliável.

Astuto, o presidente anterior tem feito o que pode para manter-se longe dos holofotes. Ele, que bobo não é, não gostaria de ver seu nome associado ao nebuloso momento atual.

Mas deixe estar. A cada dia que passa, nossa terra está mais próxima de se tornar um país normal. Com ou sem Dilma, com ou sem o Lula, com ou sem Renan, Sarney, Collor, Maluf, Demóstenes, Dirceu & companhia.