A solidão de Bolsonaro

José Horta Manzano

Rodeado de áulicos e todo tipo de interesseiros que só sabem aplaudir, o capitão não se dá conta da realidade. Ele se esquece que, no duro mesmo, o que conta é o voto popular. Não adianta subornar militares nem comprar o Congresso pra formar uma coalizão de aparência sólida. Ao fim e ao cabo, quem manda são os eleitores. Se não derem apoio a Bolsonaro nas urnas, assistiremos ao fim da comédia.

Na medida que continuar se enfraquecendo nas pesquisas, o presidente vai assistir à debandada dos que só lá estão por interesse. Ninguém tem vontade de associar o próprio nome ao de um perdedor.

Não sei se o capitão está a par de que, no exterior, seus melhores amigos – mais espertos que ele – estão trilhando outras veredas. Enquanto ele continua a dar murro em ponta de faca com seu negacionismo vacinal, dois de seus raros apoios estrangeiros já viraram a casaca.

Nas vésperas do Natal, o governo de Israel anunciou que passaria a propor uma quarta dose de vacina aos maiores de 60 anos, assim como ao pessoal médico e paramédico, que são os mais expostos ao contágio.

Aliás (não sei se o distinto leitor tem a mesma impressão), me parece que a profusão de bandeiras israelenses que os bolsonaristas arvoravam nas manifestações andam meio sumidas, não? Talvez aquilo explique isto, ou seja, o não-negacionismo explícito do governo israelense entra em colisão com o negacionismo primitivo de nossos aprendizes de extrema-direita.

Portanto, a amizade tipo unha e carne que parecia ter se cristalizado entre Brasília e Tel-Aviv virou fumaça. De fato, não dá pra conciliar o intenso programa vacinal israelense com a indignação de um Bolsonaro que chegou a dizer “Não entendo essa gana por vacina”. Ah, tem tanta coisa que ele não entende…

Outro amigo de infância que se distanciou do capitão foi Donald Trump. Esse, então, deu uma cambalhota. Faz uns dias, perto da virada do ano, no momento em que a onda de ômicron começava a se alastrar pelos EUA, o ex-presidente bilionário ressurgiu como defensor da vacinação, um inesperado arauto na luta contra a desinformação sanitária (!).

Algumas semanas atrás, num comício no Alabama – um dos estados com índice de vacinação mais baixo –, Trump foi claro: “Recomendo a vocês que se vacinem. Eu me vacinei. É bom. Vacinem-se!”. Algumas vaias se alevantaram, e o astuto orador mudou de assunto. Mas não desdisse o que havia dito.

Mais adiante, em 19 de dezembro, o antigo presidente reincidiu. Chegou a desestabilizar apoiadores e analistas ao defender a vacinação em diversas ocasiões, de modo aberto e inequívoco. Em Dallas (Texas), diante de uma multidão de simpatizantes, voltou a bater na mesma tecla. Aproveitou para se vangloriar de que as vacinas tinham sido desenvolvidas durante sua gestão. Asseverou que a vacinação vem salvando dezenas de milhões de vidas no mundo, e que é uma terapêutica fantástica. Levou vaias de novo.

Incansável, retomou o fio numa entrevista na tevê, dias mais tarde, quando dialogava com Candace Owens, apresentadora e porta-bandeira dos antivax. Bastou a moça insinuar que as vacinas não têm nenhum interesse, para Trump cortar-lhe a palavra, brusco: “É uma das grandes conquistas da humanidade. A vacina funciona.” E concluiu o raciocínio dizendo que “as pessoas não morrem [de covid] quando estão vacinadas”. Mais claro, impossível.

Os grandes apoios internacionais de Bolsonaro se dissolvem a olhos vistos. Minguando nessa velocidade, tanto interna quanto externamente, o que é que sobrará do capitão em outubro?

O estado e o cacete

José Horta Manzano

Os insultos que o capitão dirige aos que contrariam seus caprichos não surtem efeito. No começo, faziam as manchetes; hoje ninguém liga mais.

“Teu estado é o cacete!” – vomitou ele, elegantemente, quando informado de que o governador de São Paulo planejava reforçar o controle de estrangeiros que desembarcam em seu estado.

Ao pronunciar a requintada frase, o nobre líder quis reafirmar que continua se opondo firmemente a oferecer proteção ao povo brasileiro contra novas cepas de covid provenientes do exterior. Que todos enfrentem o vírus, pô! Peito aberto, sem medo e sem vacina! Todo o mundo tem de morrer mesmo!

Ainda bem que ele é, que eu saiba, o único dirigente do mundo a pensar assim. Se não, a humanidade estaria sendo dizimada.

No Brasil, ainda temos a sorte de viver numa federação, tipo de organização do Estado que dá aos governadores autonomia para decidir nos respectivos estados; é isso que nos tem salvado. Em outras partes do mundo, quem manda é o governo central, sem possibilidade de discussão. Imagine o Bolsonaro presidindo um país desses! Morticínio garantido.

Cresce a lista de países que apertam o cerco em volta dos que recusam a se vacinar. Aqui estão alguns exemplos:

Turquia
Desde agosto, prova de vacinação é exigida dos profissionais de alguns setores de atividade, entre os quais, professores.

Ucrânia
Desde outubro, a vacinação é obrigatória para funcionários públicos, incluindo professores. Além disso, os não-vacinados não têm acesso a restaurantes, locais esportivos e eventos em geral.

Polônia
A partir de março próximo, professores, funcionários do setor de segurança e agentes policiais serão obrigados a apresentar certificado de vacinação.

Letônia
Desde 12 de novembro, parlamentares não-vacinados estão impedidos de participar de debates e de votar. Além disso, não receberão salário enquanto não se vacinarem.

Itália
Desde outubro, o passaporte covid é exigido de todos que trabalham: funcionários, empregados, operários, professores, policiais, militares. Ninguém escapa.

Dinamarca
Lei votada em novembro autoriza empregadores a não aceitar a presença de funcionários não-vacinados.

Costa Rica
Desde setembro, a vacinação é obrigatória para todos os funcionários públicos.

Croácia
Desde 15 de novembro, tanto funcionários públicos quanto cidadãos que precisam de serviços públicos têm de mostrar o passaporte covid digital.

Áustria
A partir de fevereiro 2022, a vacinação anticovid será obrigatória para todos os adultos. Quem não obedecer será multado em 600 euros (3800 reais). A multa será renovada a cada três meses. Fazendo as continhas, uma família de 4 pessoas que recusar terminantemente a vacina vai pagar, em um ano, a impressionante soma de 9.600 euros (mais de 60 mil reais). Pra bater pé firme na recusa, só sendo abastado.

Alemanha
A Alemanha está em plena mudança de governo. Mas a obrigatoriedade está em estudo e deve ser anunciada brevemente.

Grécia
A partir de 16 de janeiro, os idosos (60 anos ou mais) que tiverem recusado a vacina estarão sujeitos a multa de 100 euros (630 reais) por mês.

Então, quem dá mais?

Cantem todos comigo: “Teu estado é o cacete!”

Nota 1 – Banco Mundial
Nossa sorte, além do guarda-chuva representado pelos governadores, é que ninguém dá ouvidos ao capitão. Segundo levantamento do Banco Mundial, o Brasil é o país latino-americano com menor rejeição à vacina. Uff!

Nota 2
Cacete – Acepções

Já tivemos presidente cacete.

Já tivemos presidente do cacete.

Já tivemos presidente que foi uma cacetada.

Um grande jogador de rugby francês tem um sugestivo sobrenome: Picamoles. (Lembrando que, em francês, o “s” final não é pronunciado.)

Disclaimer: Toda alusão a qualquer pessoa viva ou falecida terá sido coincidência fortuita e não-intencional.

Antivax e terra plana

Antivax (contrário à vacinação)
by Rick McKee, desenhista americano

José Horta Manzano

Para reforçar o que escrevi dias atrás no post A grande derrota de Bolsonaro, a Folha publicou ontem alguns números de um estudo sobre a aceitação das vacinas. A pesquisa é fruto de parceria entre o Banco Mundial e o Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento).

Praticamente todos os países da América Latina foram investigados. Entre essas 24 nações, o Brasil é aquele em que a vacina contra a covid-19 tem a mais ampla aceitação. Apenas 3% da população é antivax (ou vacino-hesitante, ou contrário à vacinação – é tudo a mesma coisa). Nos 24 países, a média dos que são contra a vacina é de 8%.

O estudo não diz a razão da hesitação. Medo de virar jacaré? Medo de ser menina e virar menino (ou vice-versa)? Medo de pegar aids? Medo de “morte, invalidez, anomalia” – como preveniu o capitão? A meu ver, é medo de agulha mesmo. Um inconfessável e irrefreável medo de levar picada. Talvez seja algum resto de fobias herdadas, como medo de picada de pernilongo, de aranha, de escorpião.

O importante é constatar que a pregação do presidente não serviu pra nada, rigorosamente pra nada. Com ou sem pregação, sempre haveria esses gatos pingados que recusariam a vacinação.

O resultado do estudo nos ensina que, na hora do vamos ver, cada um cuida de si. Vão pro lixo ideologias, posições no espectro político e convicções íntimas. Os devotos, que juram que se atirariam num precipício se o capitão mandasse, mostram que a devoção não é tão forte assim.

A cada dia que passa, o “mito” vai deixando claro que é isso mesmo: ele não passa de mito, uma “narrativa” que pouco a pouco se desnuda. Seu poder de aglutinar o povo é balela. O homem tem mais é poder de espantar e botar todos pra correr, inclusive os que um dia porventura tenham depositado confiança nele.

Fica de novo confirmada a grande derrota de Bolsonaro. Não conseguiu convencer nem os próprios terraplanistas.

Pátria amada, pátria amada,
logo logo estarás libertada!
O estropício, enxotado!
Nosso pendão, recuperado!

Negacionismo improdutivo

José Horta Manzano

A fraqueza do Bolsonaro salta aos olhos. Faltando menos de seis meses para encerrar o prazo de se afiliar a um partido – condição indispensável para concorrer à eleição –, ele ainda não conseguiu encontrar nenhum que o acolha de olhos fechados e braços abertos. Nenhuma agremiação quer saber do capitão, com receio de que seu pé frio e sua imagem degradada contaminem o partido e causem dano aos demais candidatos. Tirando a turma do sim-senhor, ninguém quer ver seu nome associado ao do presidente. Se isso não é presidente fraco, o que será?

As origens de seu negacionismo são obscuras. Talvez nem Freud explique. Mas as consequências são sempre previsíveis. Funciona assim: dotado de raciocínio particularmente torto, o Bolsonaro se posiciona contra tudo o que o bom senso indica como bom para a população e, por consequência, para o Brasil. No sentido inverso, funciona também: ele será contrário a tudo o que for bom para o Brasil e, por consequência, para a população.

Basta surgir um fato novo, e a gente já sabe o que vai acontecer. Basta analisar: se for bom para a população, o capitão fatalmente será contra. E vice-versa. O exemplo maior foi o da vacina contra a covid-19.

Bolsonaro foi contra desde antes de ela ser lançada no mercado. Para ele, era questão de princípio: ser contra tudo o que possa melhorar as condições de vida e de saúde do povo que o elegeu. Ele não arreda pé dessa premissa.

O capitão não foi o único no planeta a ver a chegada da vacina com certa desconfiança. Será que não foi desenvolvida rápido demais? Todos viram que ela ficou pronta em tempo recorde. Será que funciona? Muitos duvidaram que funcionasse. No início, os questionamentos eram numerosos. Havia mais perguntas que respostas.

Só que as respostas foram chegando. Não se pode lutar contra os fatos. Com milhões de cidadãos vacinados em dezenas de países, e com a epidemia a ponto de ser controlada, não há mais como negar. Um a um, dirigentes desconfiados passaram a encarar a realidade. A vacina veio rápido, funcionava e era indispensável para frear o alastramento da epidemia.

O único que se recusou a aceitar os fatos foi nosso genial doutor Bolsonaro. Negou e continua negando. Não perde ocasião para repetir, com o orgulho dos ignorantes, que não está vacinado e que não tenciona vacinar-se.

Nestes meados de novembro, dirigentes de um bom punhado de países europeus (França, Áustria, Suíça, Alemanha, entre outros) procuram a melhor maneira de convencer sua população de que é necessário tomar vacina. Até Vladimir Putin, de costume tão reservado, foi à tevê implorar a seu povo que tomasse vacina.

Os governos estão propagandeando a imunização faz um ano. No entanto, uma quarta parte dos “vacináveis”, em média, se recusa a espichar o braço. E olhe que não foi por falta de incentivo. Desde que as vacinas foram lançadas, todos os governos têm feito campanhas intensas de convencimento da população. Talvez seja medo da agulha, mas nenhum “antivax” confessa.

Por seu lado, apesar de contar com o dirigente mais antivax do planeta – um bizarro capitão que não perde ocasião para desdenhar a ‘gotinha que salva’ –, o Brasil tornou-se um dos campeões mundiais da vacinação. Em vez das ruidosas passeatas de cidadãos refratários à imunização que se veem na Europa, temos mais é gente louca pra receber a segunda dose, a terceira, e quantas mais vierem.

Não é estranho o povo castigado pelo governo mais negacionista do mundo tornar-se campeão dos adeptos da vacina? No meu entender, é prova eloquente da fragilidade do Bolsonaro e do fracasso de sua imbecil teoria negacionista.

Xô, estropício terraplanista! Nem teu povo presta mais atenção às insanidades que proferes!

A história se repete

José Horta Manzano

O general João Baptista de Oliveira Figueiredo presidiu o Brasil durante exatos 6 anos, de 1979 a 1985. Foi o último presidente do período militar. Conhecido por seu falar franco, era um tipo sem papas na língua.

Apesar disso, que fique bem claro, não chegava nem perto da vulgaridade nem do linguajar chulo do capitão que ocupa hoje o mesmo cargo. Comparado a Bolsonaro, Figueiredo era um fidalgo. Não privei da intimidade do presidente, mas tenho certeza de que, na presença de dona Dulce, sua mulher, ele não soltava os palavrões que Bolsonaro solta diante de qualquer um, para um Brasil enojado ouvir.

Naquele começo da década de 1980, o regime já começava a amansar. A censura estava afrouxada. Os exilados retornavam. Não havia mais presos políticos. O sol começava a despontar no horizonte. Pois foi justamente nesse período cheio de promessas que o general sofreu um infarto.

Os brasileiros, habituados a tramas e golpes urdidos nos círculos do poder, ficaram ressabiados. Com um Figueiredo impossibilitado de presidir, como é que ficaria? Quem tomaria seu lugar? E a abertura democrática – continuaria ou não?

Bem ou mal, o presidente se recuperou do ataque. Mas não completamente. Naquela época, a medicina no Brasil estava defasada com relação a países mais adiantados. Ricos e poderosos, quando gravemente enfermos, procuravam ajuda médica no exterior.

Em 1983, dado que os problemas cardíacos do general continuavam incomodando, ele decidiu tratar-se nos EUA. Foi internado numa clínica de Cleveland, onde lhe implantaram duas pontes (nome que muitos aportuguesam para “bypass”, bem mais chique), uma de safena e outra de mamária. Depois da intervenção, com seu linguajar pouco aveludado, Figueiredo chegou a comentar que se sentia “como um peru de Natal, todo costurado”.

De lá pra cá, o Brasil avançou muito nas ciências médicas. Hoje em dia, é raro alguém procurar tratamento no exterior, seja para uma simples vacina, seja para cirurgias complexas. Em geral, os bons hospitais nacionais estão capacitados para atender a todos os casos.

Bem, nem todos os cidadãos seguem as mesmas regras. Há os que estão (ou imaginam estar) por cima da carne seca, como se diz. Quarenta anos depois dos problemas coronários de Figueiredo, a atual primeira-dama deu o ar de sua graça nesse palco iluminado.

Como todos ficaram sabendo, Madame Bolsonaro decidiu estender o braço para ser vacinada contra a covid justamente durante uma breve estada em Nova York. Por que razão fez isso? Por que repudiou a vacina daqui? É difícil saber.

Podia até ter guardado silêncio, que ninguém teria jamais descoberto. Mas o marido, linguarudo, dedurou numa entrevista. O que ele pretendia reafirmar é que ele, pessoalmente, não tinha tomado vacina, não estava tomando e não tinha a menor intenção de tomar. O nome da primeira-dama entrou na conversa assim como Pilatos entrou no Padre-Nosso: era pra ser uma citação dita “en passant”, mas foi o que marcou a fala.

O resumo da novela ficou feio, até para os padrões bolsonáricos. O presidente confessou, sem se dar conta, que não manda nem em casa. Não tem voz ativa. Embora continue remando contra a corrente e batendo o pé na sua estúpida convicção antivax, a mulher se vacinou. Os filhos também estenderam o braço para a picada anticovid. Isso prova que seus conselhos não são seguidos nem pela família, que dirá pelo resto da nação.

Destruição de vacinas

José Horta Manzano

Na noite de segunda para terça desta semana, um vacinódromo situado perto de Toulouse (França) foi vandalizado. Foi ataque de tipo clássico, feito por desconhecidos no escurinho da noite. Resultou em vidros partidos, móveis destroçados, prateleiras reviradas, computadores quebrados e, o pior de tudo, 500 doses de vacina anticovid destruídas. Não foram roubadas: foram inutilizadas e deixadas no lugar.

Não é o primeiro ataque a centros de vacinação no país. No começo do mês, um escritório regional da Ordem dos Enfermeiros já havia sido vítima de vandalismo. Em julho, dois vacinódromos instalados em tendas de lona já haviam sido atacados, tendo um deles sido parcialmente incendiado.

Esses ataques são o braço violento dos protestos de rua que estão se tornando habituais no país: todos os sábados, há passeatas animadas e ruidosas nas principais cidades. Participam os “antivax”, aqueles que, por alguma razão, se recusam a receber a vacina.

O problema deles é que, não sendo vacinados, ficam excluídos de boa parte das interações sociais. Não têm direito ao pass sanitaire – a carteira vacinal”. Não tendo o “pass”, não podem entrar em bar, nem restaurante, nem cinema, nem museu, nem piscina pública. Em determinados empregos, como na área de saúde, não têm mais o direito de trabalhar. Daí o mau humor.

Vamos refletir. Caso o distinto leitor – que Deus o livre – tivesse de ser hospitalizado. Gostaria de ser cuidado por uma equipe de gente não vacinada? Médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e pessoal de limpeza? Todos expirando dentro do seu quarto os micróbios trazidos de fora?

Até certo ponto, aceito que alguns façam a escolha pessoal de não se vacinar contra a covid. Não entendo por que fazem isso, mas aceito que o façam por convicção pessoal. Levantar faixas de protesto e marchar nas avenidas aos sábados é uma coisa – pode até causar incompreensão, mas não agride nem machuca ninguém. Já vandalizar vacinódromo é coisa bem diferente e inadmissível. É a potencialização do egoísmo, da intolerância e da truculência. Faz lembrar a destruição de livros por parte daqueles que não apreciam determinada literatura. Dá frio na espinha.

A liberdade que o antivax reclama (de não se vacinar) é exatamente igual à do cidadão que deseja receber a vacina. Portanto, assim como o adepto da vacinação não obriga o antivax a estender o braço, o antivax não tem o direito de impedir a vacinação dos outros.

Além do quê, seja por que motivo for, destruir propriedade alheia é crime.

Observação
Acho divertido que os franceses tenham dado ao certificado vacinal o nome de “pass sanitaire”. É assim mesmo que escrevem: “pass”, com dois ss e sem o e final.

A forma “passe” existe em francês, como elemento de composição de inúmeras palavras: passe-partout (=chave mestra), passe-purée (=espremedor de batata), passe-temps (=passatempo), passe-passe (=passe de mágica). Mas “passe” sempre tem um e no final.

Sem e, é novidade. Devem ter feito isso pra parecer mais moderno, pra ficar mais próximo de um hipotético sanitary pass.

Imunização coletiva

José Horta Manzano

Ano e meio depois do estouro da pandemia de covid, começam a aparecer estudos de larga escala, baseados na observação da evolução de grande número de casos num longo período. Um deles acaba de ser publicado na Suíça.

No Brasil, a busca pela vacinação tem ocultado aquela parte da população que se recusa a estender o braço. Por certo há, em nosso país também, um certo número de ‘antivax’ obstinados – o maior deles sendo justamente o presidente da República. Mas a massa dos que correm atrás da vacina ainda tem gritado mais alto.

Nos países europeus em que a campanha de vacinação está mais adiantada, os ‘antivax’ já começam a sobressair. Há os que, apesar de um bilhão de humanos já terem sido vacinados, ainda declaram ter receio de ser ‘cobaias’. Há os que, emboram tomem alegremente vacina antimalárica quando viajam a um país africano, não querem saber da anticovídica. Há ainda os que simplesmente têm medo de injeção.

E há os piores, aqueles que são burros e egoístas ao mesmo tempo, e que esperam ser protegidos pelo resto da população. São como o capitão, que não perde ocasião de repetir que “será o último a ser vacinado”. Botam fé no conceito da imunização coletiva, ou “imunidade de rebanho”, como preferem. Em sua fantasia, imaginam que, assim que a maior parte dos habitantes estiver imunizada, os não vacinados vão acabar sendo “contaminados” pela vacina alheia, sem nem mesmo precisar estender o braço.

Estão iludidos. Não é assim que funciona. O estudo suíço comprova que as pessoas não vacinadas têm risco 80% maior de contrair a covid. Como exemplo, na região do país onde ele foi levado a cabo, nas 2 últimas semanas de julho foram declarados 1030 casos novos de covid. Dessas 1030 pessoas, só 9 haviam sido vacinadas – as 1021 restantes não tinham recebido nenhum imunizante. Em outros termos, de cada 100 novos infectados, 99 não tinham sido vacinados. Isso mostra também que os benefícios da vacinação da maioria não “contaminam” nem se propagam aos demais.

Constata-se que essas vacinas anticovid, embora recentes, têm eficácia excepcional. Mas fazer novena não basta: precisa estender o braço e receber a picada. As palavras do chefe da Brigada Científica Suíça Anticovid são categóricas:

“Se os que resistem a se vacinar estão contando com a imunização coletiva pra escapar, estão enganados. Mais cedo ou mais tarde, todos eles apanharão a covid.”

Passaporte vacinal

José Horta Manzano

Até dois dias atrás, vacinação era miragem distante, coisa de país rico. Ontem, o Brasil foi o 52° país a dar início à vacinação, transformando a miragem em realidade. Estivéssemos num contexto menos pedregoso, seria um momento de alegria e de alívio no estilo “agora, vai!”. Infelizmente, o país atravessa tempos estranhos, agressivos, emperrados, emburrecidos. Estamos em fase de demolição, não de construção. É bom tomar cuidado, que é sempre possível despencar um fragmento de parede lá de cima.

Até que o último brasileiro seja imunizado vai levar entre um e dois anos, mas o importante é que, finalmente, a roda começou a girar. Percalços, haverá muitos. É bom não esquecer que temos no Planalto um clã inteiro de Bolsonaros. Desgraça pouca é bobagem, como diz o outro. Um Bolsonaro incomoda muito a gente, dois Bolsonaros incomodam muito mais. E assim por diante.

Na Europa, a vacinação começou faz mais de mês. Pesquisas detectam que, à medida que o programa avança, baixa o número de antivax – aqueles que recusam a imunização. Trata-se de efeito manada virtuoso. Ao constatarem que o amigo, a vizinha, o colega ou a vovó se vacinaram e não sucumbiram, vão-se animando e deixando pra lá conselhos perniciosos como os de nosso sábio presidente. No fundo, fica claro que a aversão à vacina era apenas a face visível de um inconfessado medo de injeção, coisa de criança.

Na Europa, já se discute a criação de um passaporte vacinal, um documento a comprovar que o titular foi imunizado contra a covid. Determinados países exigem que todo visitante prove ter sido imunizado contra a febre amarela, exigência que não choca ninguém, pois não? Imagine agora o quadro. Um país como Israel, que dentro em breve terá vacinado toda a população, não vai querer que estrangeiros infectados reintroduzam o vírus no país. É permitido crer que vão logo passar a exigir que visitantes provem ter sido vacinados.

Mesmo no interior de um país, a questão vai surgir e impactar a circulação das gentes. Passados os primeiros tempos, parte da população terá sido imunizada, enquanto outra parte continuará desprotegida e exposta ao vírus. Companhias aéreas, empresas de transporte, teatros, restaurantes, faculdades não desejam que seus veículos ou seus estabelecimentos voltem a ser focos de infecção. Assim, vão pressionar para a criação de algum tipo de documento que garanta que o titular está imunizado. Estes serão admitidos, enquanto os demais darão com o nariz na porta.

Há que ter em mente uma verdade científica. Quanto mais tempo um vírus circula, mais risco há de ele sofrer mutações. Um dia, uma delas pode bem revelar-se mais contagiosa que as anteriores, como aconteceu na Inglaterra. Pode também surgir uma mutação que provoque quadro ainda mais grave de infecção – atingindo, inclusive, populações mais jovens. São cenários que a Saúde Pública de todo país ajuizado quer absolutamente evitar.

Eis por que, na sociedade pós-covid, nova segregação periga juntar-se às existentes: a discriminação contra os não-vacinados.

Soberana

José Horta Manzano

Pobre Brasil, obrigado a viver sob o mando de um grupelho de incompetentes. Se a situação já é dramática ao natural, o molho de pimenta da epidemia só fez piorar. O prato ficou intragável. Hospitais transbordando, presidente apinhando praias, doença se alastrando – tudo sem solução no imediato.

Ao despreparo do presidente e de seus pajens, somam-se baciadas de má-fé. Antes da pandemia, até que dava pra ‘passar boiada’ sem que o povão se desse conta. Hoje ficou impossível. Com a intenção de criar factóides e distrair a plateia, Bolsonaro profere enormidades. Mas não tem jeito: no dia seguinte, a covid e seus desdobramentos voltam ao centro do noticiário.

Num dos raros momentos de verdade que a política nacional nos tem oferecido, um intimidado aprendiz que ostenta o título de ministro da Saúde deu a dica: “– Um manda, o outro obedece”. Com isso, revelou que seu papel é de boneco de ventríloquo, aquele que só mexe a boca pra ampliar a fala de seu mestre. O país entendeu que essa é a mecânica vigente entre o chefe e todos os ministros e assessores. Todos ecoam o pensamento do capo. Portanto, a trapalhada que hipoteca a saúde e a vida de 210 milhões de brasileiros é obra da mente solitária e maligna de Sua Excelência, o presidente da República.

Se hoje faltam vacinas, seringas, ampolas, supercongeladores e centros de vacinação, não se ponha da conta da Anvisa ou do Ministério da Saúde. O responsável tem nome e endereço: é doutor Jair Bolsonaro, o presidente por acidente.

Ele tem instilado no povo o receio de receber vacina e virar jacaré ou outro bicho. Ou bicha. Parece que essas enormidades têm feito crescer o campo dos antivax, aqueles que são contra a vacinação. Gente que recusa imunização não é novidade: esse grupo existe desde que a vacina contra a varíola apareceu, faz dois séculos.

No entanto, ao fim e ao cabo, o instinto de conservação costuma falar mais alto. A lógica é elementar. O cidadão hesitante vai pôr na balança as vantagens e desvantagens da imunização e vai chegar à conclusão de que o risco de não se vacinar e apanhar uma forma grave de covid é bem maior do que o risco de se vacinar e desenvolver uma forma grave de reação à vacina. Dos males, o menor.

À medida que o programa avança, com milhões e milhões de cidadãos imunizados, a resistência dos antivax diminui. É irônico pensar que grande parte desse povo que é «do contra» não faria mais parte deste mundo se não houvesse vacina; já teriam morrido de varíola, tuberculose ou outras doenças infecciosas que a vacinação praticamente varreu do planeta.

Nessa história de vacina, a incompetência estrutural de nossos governantes, aliada à natural preguiça dos que são cercados por mordomia, nos pôs em situação bicuda. Doutor Bolsonaro, sacerdote-mor da nação, vetou a Coronavac por ser de origem chinesa (e principalmente por ser produzida num estado governado por um desafeto). Vetou essa, mas não encomendou nenhuma outra. Imaginava que os fabricantes nos bateriam à porta implorando por uma encomenda.

Não lhe passou pela cabeça que o mundo inteiro está correndo atrás de vacina. Laboratórios estão sobrecarregados e não dão conta. São, em teoria, 7,5 bilhões de humanos a imunizar. A população brasileira não chega a 3 porcento desse total. Como costuma acontecer quando o assunto é encontrar o lugar do Brasil no mundo, a turma do Planalto errou. As encomendas tinham de ter sido passadas seis meses atrás. Agora, a fila é longa. As compras que forem feitas agora têm pouca chance de ser entregues no primeiro semestre.

Mas tem nova vacina despontando. Chama-se Soberana e está em adiantada fase de desenvolvimento. Deve estar disponível já neste primeiro semestre de 2021. Poderia ajudar a sanar os erros cometidos por nossos imbecis de plantão. Ainda não há fila, o que é boa notícia. Só tem um pequeno defeito, que periga desagradar a doutor Bolsonaro: está sendo desenvolvida em Cuba. Mas será que, sempre preocupado em primeiro lugar com a saúde do próprio povo, ele não faria uma exceção e passaria por cima da ideologia pelo menos desta vez?