Avaliação

by Lezio Júnior, desenhista paulista

José Horta Manzano

Em numerosos momentos da vida, a gente é obrigado a provar que está apto para ser admitido em determinado círculo ou confraria. Em meu caso pessoal, a lembrança mais antiga que me ocorre é a da primeira comunhão. Antes de subir ao altar para abrir a boca e receber a hóstia, era preciso seguir um cursinho preparatório, que a gente chamava de Catecismo. Sem isso, nada de festa, nada de mesa de doces, nada de foto de fotógrafo e, principalmente, nada de hóstia.

Depois dessa, em muitas outras ocasiões tive, como qualquer cidadão, de demonstrar que estava preparado para a empreitada. Quem quer entrar na faculdade tem de ser aprovado num exame, seja qual for o nome que lhe atribuírem: Enem, vestibular ou outro. No mundo todo é assim. Curso superior não recebe qualquer um. O postulante tem de ser aprovado, seja pelo currículo escolar, seja por um exame de entrada.

Para assumir um emprego, o ritual é o mesmo. Currículo, entrevista, avaliação. Quer o processo se desenrole à antiga, com currículo batido à máquina em papel almaço e entrevistador cara a cara, quer decorra em modo covid, com troca de emails e entrevista por skype, o negócio é o mesmo: todo candidato entra num funil que só vai deixar passar os melhores.

E assim por diante. Candidatos a uma imigração, a um visto consular, a uma naturalização, a uma bolsa de estudos, a uma promoção passam necessariamente por uma seleção em que serão avaliados. Na hora de tirar carteira de motorista, por exemplo, ninguém escapa de passar pelo exame.

Já disse isso em outras ocasiões, mas quero repetir aqui. Digamos que o distinto leitor queira se candidatar a um emprego, seja ele de doutor ou de operário. Nenhum empregador o acolherá assim, de mão beijada, sem verificar sua aptidão para o cargo. Esse ritual não espanta ninguém. Todos nós o encaramos com naturalidade.

A cada quatro anos, é hora de escolher o presidente da República. A lei especifica certas condições para se candidatar. Idade, nacionalidade, filiação partidária estão entre elas. Mas não há nada que lembre, nem de perto nem de longe, um exame básico de avaliação, nem que fosse pra verificar se o indivíduo bate bem da bola.

Assim, quem pretende dirigir um Renault Kwid tem de passar obrigatoriamente por um exame de avaliação que ateste sua aptidão pra não sair por aí dando trombada e ameaçando a vida dos outros. No entanto, aquele que pretende dirigir o Brasil pode se candidatar sem problema, sem exame, sem avaliação. Se eleito (por um povo que não teve como avaliar sua aptidão), estará livre pra sair por aí dando trombada em Deus e o mundo e ameaçando a vida da população.

Esses problemas, que parecem piada, ocorreram na era Bolsonaro. O capitão saiu dando trombada e entrou em colisão com a China, a França, a Alemanha, a Noruega, a Argentina, o Chile, os países árabes. Com seu negacionismo destrambelhado, ainda ameaçou a vida da população brasileira. Aliás, não só ameaçou: executou a ameaça.

Até ontem, a instauração de um exame de avaliação de candidatos à Presidência da República podia parecer ideia de maluco, um atentado contra os costumes da República, uma exigência estapafúrdia e inútil. Agora, depois do furacão bolsonárico, tornou-se necessidade tangível.

Suas Excelências têm a obrigação urgente de completar a legislação. O futuro da nação não pode continuar desprotegido, refém do próximo populista desequilibrado que aparecer na esquina.

Uma prova de aptidão tem de ser exigida de todos os que se candidatarem a dirigir os 212 milhões de brasileiros. Pelo menos uma avaliação de saúde mental levada a cabo por um colégio de doutores qualificados.

Se tivéssemos tido um dispositivo desse tipo, o país não estaria sendo destruído por um destrambelhado. O Brasil não aguenta outro Bolsonaro.

Bom sujeito não é?

José Horta Manzano

Acaba de ser nomeado o novo ministro da Educação, o quarto nome em ano e meio de governo Bolsonaro. Em vez de discorrer sobre sua experiência como educador, a mídia ressalta que o nomeado é prelado numa organização religiosa de tipo evangélico. O que isso tem a ver com a Instrução Pública, ninguém explicou.

Não se deve condenar sem julgar, mas o ministro já dá a partida com uma penalidade: quem foi escolhido por doutor Bolsonaro – e aceitou! – atrelou sua imagem a uma engrenagem de risco.

by Suélen Becker, desenhista carioca

Só fica no posto se se mantiver calado, inativo, apagado, sem fazer sombra ao chefe – uma mancha no currículo. Será demitido ao menor sinal de pensamento independente ou de popularidade superior à do chefe – se assim for, levará pra casa vergonha dupla: ter sido ministro de Bolsonaro e ter sido despedido.

Não há escapatória.

Vergonha internacional

José Horta Manzano

Chamada do jornal francês Le Parisien

Os sorrisos forçados são apenas fachada. Por dentro, devem sentir engulho.

O vexame do quase futuro ministro levantou uma onda que já chegou à Europa. A edição de 30 de junho do jornal francês Le Parisien dedicou um artigo ao assunto.

«Brésil: le CV ‘gonflé’ du nouveau ministre de l’Education fait polémique»

«Brasil: o currículo ‘inchado’ do novo ministro da Educação cria polêmica»

Não me lembro de ter visto, na mídia brasileira, artigo sobre ministro estrangeiro que tivesse ‘inchado’ o currículo. É assunto interno que, em princípio, não interessa a ninguém no Brasil. Inversamente, o vexame de nosso ‘doutor’ chega até Paris. Por quê?

Faz parte do custo Bolsonaro, um componente que atravanca a imagem do Brasil. Do exterior, enxergam nosso país com crescente desconfiança.

Como já escrevi antes, essa deterioração não atinge diretamente o brasileiro, ou seja, não é do cidadão que se desconfia. A prevenção é contra os dirigentes.

Assim mesmo, se a administração de doutor Bolsonaro contribui para que se fechem portas no exterior, quem paga o pato, no final, é o cidadão brasileiro.

Foro privilegiado

José Horta Manzano

«Foro privilegiado para parlamentares é perversão da Justiça» ‒ bradou esta semana Luís Roberto Barroso, ministro do STF.

«Foro privilegiado é incompatível com o princípio republicano» ‒ acrescentou Edson Fachin, outro ministro do STF.

«Há assanhamento juvenil em discussão sobre foro» ‒ rebateu Gilmar Mendes, também ministro do STF, avezado a pronunciamentos polêmicos, daqueles que, à primeira vista, deixam a impressão de que o ministro anda na contramão da vida real. É menos leviano do que pode parecer.

TribunalDeixemos de lado a fogueira de vaidades que, no fundo, importa pouco. Entra ministro, sai ministro, e o foro dito ‘privilegiado’ permanece intocável e intocado. Desta vez, três dos onze juízes supremos se debruçaram sobre o assunto na mesma semana. Representam perto de 30% do colegiado, proporção longe de ser desprezível. Percebe-se que a questão é de atualidade.

Dá pra entender a irritação dos togados. Enquanto o tribunal maior dava a última palavra em assuntos ligados à vida privada de cidadãos ‒ homicídios, heranças, divórcios ou mesmo querelas menores ‒, poucos brasileiros se davam conta da existência do Supremo. Os mais de 40 mil processos que dão entrada no tribunal a cada ano, bem ou mal são digeridos. É compreensível que onze juízes, por mais eficientes que sejam, não podem dar conta pessoalmente dessa enxurrada. Um batalhão de juristas e de peritos anônimos está por detrás das decisões finais.

Quando o mensalão, um megaprocesso envolvendo gente graúda, entrou em julgamento naquela corte, incomodou muita gente. As sessões, transmitidas por tevê ao vivo, foram seguidas como se fossem capítulos de novela. Nem todos os membros do colegiado hão de ter apreciado tal exposição midiática. Quem se expõe ao público está sujeito a chuvas e tempestades. Antigamente, o brasileiro médio mal conhecia a composição do colegiado. Desde o mensalão, qualquer um passou a conhecer o semblante de cada juiz. Os componentes do tribunal têm hoje nome e sobrenome.

stf-3A Operação Lava a Jato só veio acrescentar pressão ao antes modorrento STF. Dezenas ‒ talvez centenas ‒ de indiciados gozam do foro dito ‘privilegiado’. Fica cada dia mais evidente que o tribunal maior não é lugar apropriado para julgar esse tipo de processo. Ao STF, instância suprema, só se deve recorrer em casos extremos, quando ainda subsiste alguma esperança de reverter o que já foi julgado em instâncias inferiores. O que era para ser acontecimento extraordinário está virando corriqueiro.

Se o foro dito ‘privilegiado’ for repensado ‒ e tudo indica que em breve o será ‒ não terá sido tanto por parecer injusto que eleitos estejam escapando à Justiça destinada aos pés-rapados. O anseio de mudança vem de cima, dos próprios integrantes da corte maior. Quando aceitaram o cargo, pensavam em coroar a carreira e o currículo com o mais alto título possível. Se soubessem que teriam de retornar à labuta de juiz de primeira instância, talvez tivessem pensado duas vezes.

Latim de botequim

José Horta Manzano

Caesar 1Este blogueiro é do tempo em que ainda se aprendia latim na escola. Aprendia é modo de dizer.  A língua era ensinada, mas aprender, que é bom, eram outros quinhentos. A matéria era um espantalho para muitos de nós. Um belo dia, seu ensino passou a ser considerado supérfluo, e a língua foi abolida do currículo. É pena. Fácil, não era. Mas tinha lá sua utilidade.

Faz uns dias, o vice-presidente de nossa República enviou carta à mandatária-mor. Embora digam que o figurão tem estatura de estadista, o tom da missiva está longe de demonstrá-lo. A ladainha de reclamações pessoais é constrangedora. Apesar do tom de funcionário chorão, o texto começa justamente com uma frase na língua de Cícero. Não se sabe se dona Dilma entendeu ou se teve de se socorrer junto a assessores. Pouco importa.

A frase latina que senhor Temer deitou no papel é:

Interligne vertical 14Verba volant, scripta manent.
Palavras voam, escritos ficam.

Um pouco alterada, a frase é conhecida de todos os que um dia já arriscaram uma fezinha na Paratodos, o Jogo do Bicho. O mote da contravenção mais difundida, conhecida e tolerada é justamente: “vale o escrito”.

Data venia, tenho de botar reparo na citação do vice-presidente. É verdade que alguns conceitos foram poupados pela passagem dos dois milênios que nos separam do auge do Império Romano. Outros, no entanto, envelheceram. A máxima citada é daquelas que precisam ser adaptadas aos novos tempos. A versão 2.0 deverá ser algo como:

Interligne vertical 14Scripta manent, sed igne delebuntur. Verba volant, sed nube captabuntur.
Os escritos ficam, mas serão destruídos pelo fogo. As palavras voam, mas serão aprisionadas por uma nuvem (=cloud).

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PS: Nas aulas do velho professor Biral, que dava o melhor de si para nos iniciar nos mistérios da língua latina, nem sempre fui o aluno mais atento. Para o caso de o mestre, na nuvem de onde hoje nos espia, torcer o nariz para minha tradução, peço-lhe desculpas antecipadamente.

A tragédia da língua portuguesa

Dad Squarisi (*)

Tornou-se lugar-comum falar na baixa qualidade do ensino. Em testes nacionais, comprova-se, ano após ano, o mau desempenho dos alunos, sem domínio das habilidades de ler, escrever e fazer as quatro operações. Em exames internacionais como o Pisa, os estudantes brasileiros figuram na rabeira dos concorrentes.

ExameO Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2013 chama a atenção para o resultado da língua portuguesa. Mais de 5 milhões de jovens se submeteram à avaliação para concluir o ensino médio, entrar em universidade pública, participar de programas de intercâmbio, obter bolsa de financiamento em instituições privadas. No total, 14.715 escolas compõem o ranking.

Pouco mais de um terço (33,87%) obteve nota abaixo de 500 na redação. Foram reprovadas. Levando-se em consideração o desempenho individual, mais da metade dos alunos de 3.900 colégios tiraram nota vermelha. O fracasso na produção de texto implica soma de incompetências. Entre elas, falta de domínio da norma culta; incapacidade de leitura e compreensão de enunciados, de organizar e interpretar informações, de argumentar, de transitar de uma ideia para outra.

AnalfabetoAvaliar a redação vai além de analisar a habilidade de escrever. A língua funciona como pré-requisito para as demais disciplinas. Antes de resolver um problema de matemática, por exemplo, o estudante precisa entender o enunciado. Ele pode até saber o raciocínio para chegar à resposta, mas é incapaz de perceber o que a questão pede. Limitação similar se observa em geografia, história, biologia. O jovem estuda, mas não aprende.

Ele é vítima de uma a escola que não ensina. Currículos desatualizados, material didático de má qualidade, bibliotecas mortas, laboratórios decorativos aliam-se a professores desmotivados e sem a qualificação necessária. Espaços assim funcionam como castigo para rapazes e moças que vivem em universo tecnológico povoado de atividades desafiadoras.

Professora 1Sentar-se calado, um atrás do outro para ouvir o professor que repete o que está nos livros ou copiar matéria do quadro é cena do século 19, quando estabelecimentos preparavam os empregados exigidos pela revolução industrial. Não condiz com a sociedade do conhecimento, que exige profissionais proativos, empreendedores, aptos a responder a desafios com criatividade.

Como chegar lá? O ponto de partida é o professor. A carreira do magistério deve atrair os melhores talentos. Para tanto, além de formação acadêmica, impõe-se carreira top. Os brasileiros ambiciosos devem saber que vale a pena ser docente. Não só pelo salário, mas também pela progressão profissional e pelo respeito da sociedade.

(*) Dad Squarisi, formada pela UnB, é escritora. Tem especialização em linguística e mestrado em teoria da literatura. Edita o Blog da Dad.

Helvetismos 2

José Horta Manzano

Você sabia?

Prisão suíça
Quase três meses atrás, eu lhes informava que prisioneiros do Centro de Detenção de Genebra haviam prestado queixa por tratamento desumano. A superfície das celas dividida pelo número de ocupantes dava, em alguns casos, 3,84m2 por inquilino, quando as normas internacionais estipulam um espaço mínimo de 4m2 por pessoa.

A denúncia havia sido aceita e, em Primeira Instância, os requerentes tiveram ganho de causa. Mas o Ministério Público entrou com recurso. A causa foi para a Segunda Instância, que aceitou a incumbência de rejulgá-la.

Cadeia

Cadeia

O Tribunal de Justiça, a instância superior, embora reconhecendo que as condições de detenção são, de fato, difíceis, considerou que elas não chegam a violar o espírito da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH). Negou provimento e anulou o julgamento da instância inferior.

Portanto, os suplicantes podem dizer adeus à indenização pela qual ansiavam e vão ter de se conformar em viver com 0,16m2 de espaço a menos.

Por enquanto, pelo menos. Ainda cabe recurso ao Tribunal Fédéral, o STF suíço. Mas é uma medida que engendra custas e custo elevados ― advogados, neste país, cobram honorários de arruinar qualquer cristão. Só costuma apelar para o supremo quem tem razoável dose de certeza de obter ganho de causa.

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Policial suíço
Embora haja pequenas variações de uma região a outra, a formação de um agente policial suíço é estruturada de maneira bastante uniforme. Para poder prestar o exame de admissão à Escola de Polícia, o candidato tem de ser titular de um diploma profissional ― pouco importa de que profissão seja. O certificado que se recebe ao final da escola média, aquela que se termina pelos 18 anos de idade, também pode ser aceito. Cabe à Escola de Polícia julgar caso por caso.

Se for aceito, o candidato poderá prestar o exame de admissão. Parece que não é moleza. Há até cursinhos preparatórios para as provas. Se conseguir vencer essa etapa, o postulante seguirá um curso de um ano em período integral. Durante esse ano, dado que não poderá trabalhar, receberá um salário bruto de 4’000 francos (= 9’500 reais), remuneração correspondente ao grau de aspirante.

Polícia suíça

Polícia suíça

As matérias principais do curso são:

Direito penal e Código de processo penal
Código de processo civil
Defesa pessoal
Policiamento de proximidade
Psicologia
Ética profissional e Direitos Humanos
Lutas marciais, corrida a pé, natação, esportes
Conhecimentos gerais

Terminado o curso, o aspirante ainda tem de ser aprovado no exame final. Se passar, seu salário inicial será de 6’100 francos (= 14’500 reais). De 5 em 5 anos receberá aumento por tempo de serviço. A partir do vigésimo ano, chegará ao topo da carreira e atingirá salário de 9’000 francos (= 21’500 reais). O 13° salário não é obrigatório na Suíça. Algumas empresas o adotaram, outras não. A Polícia, generosa, paga esse benefício a seus membros.

Por aqui, caro leitor, nem sonhe em oferecer «um cafezinho» a um policial para se livrar de uma multa. Não vai funcionar e você pode se estrepar.

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No Brasil, para combater a praga da corrupção policial não há outro meio: o salário tem de ser pra lá de atraente. O maior receio de todo policial tem de ser o de perder o emprego. E ele tem de estar ciente de que um cafezinho ou uma cervejinha podem render-lhe expulsão sumária da corporação.

Com políticos, é um pouco mais complicado.