Surrealismo

José Horta Manzano

No tempo em que anúncio se chamava reclame e jornais eram impressos em preto e branco, o anunciante tinha de espremer a imaginação para tornar a mensagem marcante. Não havia chegado a era de consumo. Os anúncios se limitavam a apregoar objetos úteis, do dia a dia. Boa parte deles promoviam remédios.

A ausência de cor exigia expressividade no desenho. Para ilustrar uma propaganda de fortificante, a imagem mostrava um indivíduo magro, esquelético, descarnado, exageradamente subnutrido.

A ilustração de uma loção para cabelo trazia uma figura feminina com cabelos compridíssimos, chegando à cintura.

O Elixir Doria (marca registrada!), que se apresentava como “o rei dos preparados para estomago figado, intestinos”, deu preferência a uma ilustração surrealista, como se pode ver na imagem acima. Intui-se que o senhor bem-posto do desenho tenha engolido um carneiro (ou um bode) inteiro, começando pelas patas, só faltando a cabeça e os chifres.

O desenho é tão assustador, que fica no ar a pergunta: será que algum paciente se animou a correr à “pharmacia” pedir esse elixir?

O Elixir Doria foi anunciado na segunda metade dos anos 1930. É interessante que, com 80 anos de antecedência, mencionasse o nome de dois políticos de nossos dias: João Doria e Michel Temer.

De fato, Doria aparece já no nome do remédio. E um “não a Temer” está visível entre os chifres do bode (ou carneiro).

Brasileiros poliglotas

José Horta Manzano

Nos anos 1930, a Biblioteca Pública Municipal da cidade de São Paulo funcionava num casarão da rua Sete de Abril, no centro da cidade. Àquela altura, a sede era suficientemente grande para conter o acervo de 110 mil livros, mapas, manuscritos e outros volumes. Os mais de 3 milhões de objetos abrigados hoje não caberiam no velho casarão.

Oitenta anos atrás, a língua inglesa ainda estava longe da posição preeminente que ocupa hoje. Em 1935, na primeira metade do mês de abril, 6.575 obras foram consultadas. A relação de livros, revistas, jornais e mapas, ordenada por língua, é autoexplicativa.

Correio Paulistano, 18 abril 1935

Correio Paulistano, 18 abril 1935

De cada três publicações consultadas, duas eram em português. Não espanta ninguém que nossa língua fosse mais lida que as demais. Assim mesmo, é interessante notar que ⅓ dos visitantes procurava obras escritas em língua estrangeira. É proporção elevada.

Entre as línguas estrangeiras, o francês era, de longe, o mais popular. Mais de metade das obras forasteiras consultadas estava escrita nessa língua. Bem atrás, vinham o espanhol e o italiano, procurados respectivamente por 20% e por 12% dos consulentes. O fato sugere duas explicações que se superpõem.

Por um lado, ainda era importante o número de imigrantes, que buscavam ler em sua língua materna. Por outro, espanhol e italiano são línguas bastante próximas da nossa. Com um pouco de esforço e prática, o estudante aplicado consegue encontrar seu caminho em publicações científicas escritas nessas línguas.

Indio 3Livros em inglês eram bem menos solicitados naquele tempo. Na ordem de procura, só apareciam em quinto lugar. Menos de 9% das publicações estrangeiras consultadas eram escritas nessa língua. De lá pra cá, é impressionante o avanço da popularidade do inglês entre nós. A propagação corresponde à difusão mundial dessa língua, ocorrida principalmente depois da Segunda Guerra.

Como última curiosidade, vale notar que um punhado de leitores daquele longínquo 1935 se debruçou sobre obras em grego, latim e até tupi-guarani. Gostaria muito de comparar com as estatísticas atuais mas não disponho de informações. Se encontrar um dia, volto ao assunto. Mas é bom lembrar que, nestes tempos de internet, ficou mais complicado.