Anônimos

Chamada de O Globo, 17 jun 2022

José Horta Manzano

Desde os tempos bíblicos, uma das diferenças entre o ser humano e o resto dos animais é o fato de os humanos terem nome próprio. Todos os humanos. Até esquimó e índio têm nome.

Dependendo do estágio de civilização, alguns pequenos grupos de indivíduos, por razão de viverem isolados, podem até não ter (ainda) inventado o costume de dar sobrenomes. Mas prenome, isso sim, cada pessoa tem pelo menos um.

Sempre achei inadequado tratar indivíduos desconhecidos por “anônimos”. Como é possível que haja “anônimos” numa multidão, se todos temos nome?

Numa época em que todos buscam se exprimir de modo politicamente correto, me parece desrespeitoso tratar um conjunto de pessoas que aparecem numa foto como se constituíssem uma massa informe, sem identidade e sem individualidade, contratados pra dar volume ao retrato.

Operários, obra de 1933
by Tarsila do Amaral (1886-1973), artista paulista

Ninguém jamais associou mulato à ideia de mula até o dia em que apareceu um desmancha-prazeres pra apontar a etimologia. Ninguém jamais pensou estar sendo indelicado ao chamar um índio de índio, até que ficou combinado que não pode: agora os índios viraram “povos originários”.

A lista de palavras e expressões legítimas que se tornaram impróprias está se alongando a cada dia. Minha observação sobre a impropriedade de tratar de anônimo aquele de quem simplesmente se desconhece o nome entra nessa categoria de inutilidades que só estão aí pra azucrinar.

Mas, cá entre nós, se o termo “anônimos” fosse substituído por “desconhecidos”, até que a chamada do jornal ficava mais sexy, não acha? Veja:


Cenas inéditas da Passeata dos Cem Mil mostram desconhecidos e famosos marchando contra a ditadura militar.


 

Matriz e filial

Chamada Estadão, 28 maio 2022

José Horta Manzano

Não se pode dizer que quem escreveu a chamada do Estadão tenha escrito bobagem. Errado, não está. Mas está esquisito. Dizer que a Igreja Ortodoxa da Ucrânia era “afiliada” a Moscou soa estranho.

Deve-se evocar afiliação quando se fala de clube, de partido, de firma comercial. Uma igreja séria não tem “filiais”. Quando há uma relação hierárquica entre ramos da mesma organização eclesiástica, melhor será dizer que uma é subordinada à outra, ou que está assujeitada, ou ainda que vive sob tutela da principal. Ex:

“Igreja Ortodoxa da Ucrânia, subordinada ao patriarcado de Moscou…”
“Igreja Ortodoxa da Ucrânia, assujeitada ao patriarcado de Moscou…”
“Igreja Ortodoxa da Ucrânia, sob a tutela do patriarcado de Moscou…”

O termo “ruptura”, utilizado na chamada, não está errado. Mas existe uma palavra específica para a dissidência de um ramo com relação ao tronco. É cisma, substantivo masculino. Quem fez um pouquinho de História Geral talvez se lembre do grande Cisma do Oriente (do ano 1054), que dividiu o cristianismo em dois grandes ramos: o catolicismo e a ortodoxia.

A chamada do jornal contém mais uma imprecisão. Não é correto falar em “ruptura com a Rússia”. A ortodoxia ucraniana não é um Estado, portanto a afirmação não faz sentido. A Igreja Ortodoxa Ucraniana não rompe com a Rússia (país), mas com o patriarcado (ortodoxo) de Moscou.

Portanto, a chamada do jornal estará mais bem escrita assim:

Igreja Ortodoxa da Ucrânia, subordinada ao patriarcado de Moscou, anuncia cisma.

ou

Igreja Ortodoxa da Ucrânia, assujeitada [ao patriarcado] de Moscou, anuncia cisma.

Rivais

Chamada do Estadão

José Horta Manzano

Desde que se sedentarizaram e se tornaram cultivadores, os humanos passaram a depender da água de maneira crucial. Sem água, como é sabido, planta não cresce.

Cinco mil anos atrás, nas civilizações da Mesopotâmia, já surgiu a questão da divisão das águas para irrigar as terras de cada um. Cada povo encontrou solução adequada à abundância (ou à raridade) do precioso líquido.

Aliás, a palavra rival é da mesma família que rio, ambos derivados do latim rivus. A parentela se espalha por diversas línguas europeias: o italiano rivo, o francês rivière, o inglês river, o espanhol río. No português arcaico, dois agricultores que compartilhavam as águas de um mesmo rio eram ditos rivais. Nessa acepção, o termo desertou a linguagem comum e só sobrevive em juridiquês.

Portanto, a ideia contida no termo rival é a de dois (ou mais) dividindo a posse de algo ou de alguém. Transposta para o plano humano, temos, por exemplo, a imagem de dois homens que condividem (ou disputam) a posse da mesma mulher. São rivais. Sucumbindo às exigências da linguagem politicamente correta, que se mencione também o caso de duas mulheres que condividem (ou disputam) o mesmo homem. Também são rivais, ora pois.

Na linguagem atual, são rivais duas pessoas que brigam para chegar ao mesmo objetivo. Dois alunos empenhados na conquista do título de melhor da classe são rivais. Dois esportistas que disputam o Balão de Ouro são rivais. E assim por diante.

Terras pertencentes a rivais

O presidente Bolsonaro lançou ao ar a insinuação de que o empenho do contra-almirante Barra Torres (presidente da Anvisa) em iniciar rapidamente a vacinação das crianças só podia ser resultado de “interesses”. Todo o mundo entendeu que os tais interesses da Anvisa só podiam ser escusos, venais, inconfessáveis.

Insinuação por insinuação, digo eu que cada um costuma julgar os outros por si. Mas não sei se aqui seria o caso.

Sentindo-se publicamente injuriado, o militar escreveu belíssima e emocionante carta aberta ao presidente, na qual defendeu a própria honradez e desafiou Bolsonaro a apontar algum indício de irregularidade na gestão da Anvisa. E mandou a injunção: “Se não encontrar nada, que se retrate!”. O texto integral se encontra fácil na rede.

Até o momento em que escrevo, três dias depois da carta, Bolsonaro não se retratou. Nem apontou nenhuma irregularidade na gestão da Anvisa. Está de bico calado e com o rabo enfiado no meio das pernas feito cachorro assustado. Tudo indica que o contra-almirante ganhou a parada: o capitão, maldoso mas leviano, se estrepou. Deu com a cara no chão, como se dizia.

A chamada do jornal diz que Barra Torres passou de aliado a rival do presidente. É tolice. Rivais seriam, em sentido metafórico, se estivessem, cada um por seu lado, disputando um mesmo objetivo – a saúde da população, por exemplo.

Não é nada disso. Quando se diz que duas pessoas são rivais, está sempre subjacente a ideia de compartilhamento. No caso que envolve Bolsonaro e o contra-almirante, não é bem assim. Os dois estão em polos opostos, um de costas para o outro, sem a menor disposição para compartilhar seja o que for.

Melhor será dizer que são oponentes, opositores, adversários, contraditores. Rivais, não são.

Ingressar no trem

Ingressar no trem

José Horta Manzano

Este blogueiro é do tempo em que, no Brasil, ainda se viajava de trem. Que não se assuste o distinto leitor! Não estamos falando do tempo de Matusalém. Já havia sido inventado o motor a explosão, que diacho! Chevrolets, Buicks e Studebakers congestionavam as ruas. Constellations, Caravelles e DC-8s cruzavam os céus. Ônibus interestaduais se aventuravam pelas poucas (e perigosas) estradas de rodagem, nem sempre asfaltadas.

Assim mesmo, talvez pela inércia do costume, ainda se viajava de trem. Não valia a pena apanhar trem para certos percursos, que de ônibus chegava-se muito mais rápido. Mas havia lugares aonde, simplesmente, ônibus não chegava.

Pra ter direito a viajar, o passageiro tinha de comprar um bilhete. Na verdade, o nome completo era “bilhete de passagem”, que o povo acabou encurtando pra passagem. Sem bilhete, ninguém podia viajar – com exceção do maquinista e do pessoal de bordo, incluindo aquele senhor que vinha picotar as passagens.

Faz muito tempo que, em nome do progresso e por força dos lobbies petroleiro e automotivo, o trem foi perdendo status e acabou morrendo de inanição, o coitado.

Bom, pra quem não sabe, há terras em que ele continua sendo o meio de transporte preferencial, quando não único. Na Europa, por exemplo, é assim. Implantam-se novas linhas, de alta velocidade ou não. Acrescenta-se uma terceira via a trechos muito frequentados, que só contavam com duas. Viajar de trem continua na moda.

A reportagem do Estadão diz que novo trem leva turistas pra um passeio em região frutivinícola. Dá também o preço do ingresso. Quando li essa palavra, aplicada a viagem ferroviária, engasguei. Como é que é? Ingresso no trem? Não é assim que se diz. Compra-se ingresso para entrar em cinema, museu, ‘concerto’ de pop star. Para comprar o direito de viajar de trem, não é o termo mais adequado.

Quando vejo algo fora de lugar, gosto de dar uma espiada na fonte. Fui ao site que propõe as excursões. Lá me dei conta de que “ingresso” é liberdade tomada pelo jornal. No original, a palavra utilizada é “ticket”. Ai, meu São Benedito!

Não sei se será por chiquê ou por falta de conhecimento mesmo. Não se vende mais bilhete ferroviário. O chefe do trem não entra mais no vagão gritando “Mostrar as passagens, faz favoooor!” Os dois termos estavam com cheiro de naftalina. A sociedade organizadora preferiu desempoeirar. “Ticket”, que soa estrangeiro, é tããão mais atual, não é mesmo?

Milagre?

José Horta Manzano

Num raro sincericídio cometido nas barbas de apoiadores entusiastas, Jair Bolsonaro confessou ontem que é milagre ter conseguido segurar-se no mandato até agora.

Apesar do apreço que tenho e da reverência que sinto para com o capitão, devo discordar. Peço vênia, Excelência!

Milagre, em nossa língua, é palavra reservada para acontecimentos benéficos, favoráveis e auspiciosos. É sempre usada em sentido positivo.

Tem sido assim desde os milagres bíblicos, em que paralíticos voltavam a caminhar, cegos recobravam a visão e multidões eram alimentadas com meia dúzia de peixes.

Milagre não é a faísca acidental que bota fogo na casa, mas a chuva que apaga o incêndio.

Como tem feito em frequentes ocasiões, Sua Excelência distorce a realidade a seu favor. O fato de ter-se mantido na Presidência até agora não é milagre. A língua oferece um balaio de termos que se adaptam melhor. À escolha:

maldição,
desgraça,
fatalidade,
desventura,
cataclismo,
desventura,
infortúnio,
sinistro,
catástrofe,
adversidade,
desdita,
calamidade,
desastre,
estrago.

A lista não é exaustiva, mas vou parar por aqui pra este post não ficar demais deprimente. Ai de nós!

Colapso se agrava?

José Horta Manzano

De origem latina, a palavra colapso é originariamente de uso científico. Em medicina, dá nome à síndrome de insuficiência cárdio-circulatória aguda. Em engenharia, diz-se que há colapso quando uma estrutura deixa de suportar ao conjunto de forças externas. Em astrofísica também se usa essa palavra para descrever determinados fenômenos.

Muito apropriadamente, a língua de todos os dias tomou o termo emprestado para indicar situações em que aquilo que devia funcionar já não consegue fazê-lo, por algum motivo.

Nestes tempos de pandemia, a grande preocupação das autoridades – falo de autoridades sérias e civilizadas, não necessariamente de nosso presidente – é preservar o sistema nacional de saúde para evitar que entre em colapso. Em sentido figurado, o colapso equivale à estrutura de um edifício que, ao colapsar, provoca o desmoronamento do prédio, sem nada que se possa fazer para evitar.

A chamada do jornal diz que o “colapso hospitalar se agrava”. É uso inadequado. Se o funcionamento de uma UTI (ou, pior ainda, de um hospital inteiro) entrar em colapso, isso quer dizer que a UTI (ou o hospital inteiro) parou de funcionar, que não dá mais conta. Não é o que a chamada quis informar.

Não se deve falar em “colapso que se agrava”. Se a palavra colapso, que soa bem, tiver de ser usada, melhor será dizer:

que a situação se aproxima do colapso,
que o colapso se aproxima,
que há risco de colapsar,
que o colapso já aponta no horizonte,
que há forte ameaça de colapso,
que o colapso é iminente.

Não dá realmente pra dizer que o colapso se agrava. Colapso é fenômeno definitivo: colapsou, babau.

Lockdown

José Horta Manzano

Chamada do Correio Braziliense, 26 fev° 2021.

Lockdown 1
Pelo que se pode observar, a imprensa brasileira já dispensa aspas em torno do termo lockdown. Nem em itálico ele vem escrito. É claro sinal de que o recém-chegado foi adotado e já faz parte da família. É gente de casa. Pode ganhar tapinha nas costas e ser chamado por você.

Lockdown é expressão inglesa. Como primeira acepção, pertence à linguagem carcerária. Prisioneiros mal-comportados perigam ser condenados a passar um tempo de castigo, em cela solitária, trancados a chave. É exatamente a situação que traduzimos por confinamento.

Portanto, o lockdown inglês tem perfeita tradução em nossa língua. Mas o som estrangeiro tem um charme irresistível, que fazer? O primeiro usou, o resto copiou.

Lockdown 2
No entanto, para dar nome à proibição de circular durante a noite e a madrugada, a palavra mais adequada não é nem a importada lockdown, nem a nacional confinamento. Quando a ordem é para ficar trancado durante apenas algumas horas, a melhor expressão será: toque de recolher.

Na origem, o toque de recolher era reservado para uso militar. Só se estendia à população em caso de guerra, revolução ou estado de sítio. Mostrando que a pandemia é verdadeiro período de guerra, a expressão foi desempoeirada e trazida à luz do dia. Está em todas as bocas. Cada língua tem seu modo de definir o mesmo dispositivo. Eis alguns exemplos:

Francês: couvre-feu
Ao pé da letra = cobre-fogo. Faz alusão à prática medieval de apagar o braseiro e cobri-lo com cinzas logo antes de ir pr’a cama. Todos os lares faziam isso à mesma hora, chamada ‘hora de cobrir fogo’. A intenção era evitar incêndios.

Inglês: curfew
É a mesmíssima expressão francesa adaptada à fonética inglesa.

Italiano: coprifuoco
Ao pé da letra: cobre-fogo. A expressão segue o modelo francês.

Espanhol: toque de queda
Ao pé da letra: toque do fico (do verbo ficar), o que é bastante explícito.

Alemão: Ausgangssperre
Em alemão, a ordem é cristalina: proibição de saída.

Sueco: utegångsförbud
Como em alemão, a ordem não se discute: proibição de saída.

Russo: комендантский час
Na língua russa, usa-se a saborosa expressão ‘hora do comandante’. Não conheço a origem, mas as duas palavrinhas dão margem a muitas interpretações.

Preço caro?

José Horta Manzano

Chamada da Folha SP

Barato e caro são atributos da mercadoria, não do preço nem do custo. O preço (=custo) é mero indicador do valor da mercadoria.

A mercadoria pode ter muitas qualidades. Por exemplo, pode ser:

  • barata,
  • cara,
  • bonita,
  • cheirosa,
  • pesada,
  • estragada,
  • duvidosa,
  • valiosa,

que são qualidades que o preço (=custo) não pode ter.

Por seu lado, o preço (=custo) pode ser, por exemplo:

  • elevado,
  • baixo,
  • exorbitante,
  • ínfimo,
  • nas alturas,
  • irrisório,
  • insuportável,
  • dissuasivo,

que são atributos que a mercadoria não pode ter.

Portanto, “custo caro”, “custo barato”, “preço caro” e “preço barato” são expressões a evitar. É a mercadoria que é cara, não o custo. A menção do preço nos permite saber se a mercadoria é cara ou barata. Uma vez que conhecemos o custo, concluímos se a mercadoria é barata, se é cara ou se está em conta.

Na chamada do jornal, entende-se que o voto é que chega a ser mais caro; portanto, seu custo é mais elevado. Consertando:

“Custo de voto em mulheres chega a ser quase 70 vezes mais elevado que em homens”

Negar convite?

José Horta Manzano

Chamada do Valor Econômico

A reação de Donald Trump diante do convite para depor não surpreende, considerando o enorme rabo preso que o homem tem. Com as acusações que lhe pesam nas costas – incitação à violência, achaque às instituições, difusão de notícias falsas, desleixo no trato da pandemia y otras cositas –, é compreensível que ele fuja do depoimento. Já que não passa de “convite”, qualquer um fugia.

Só que o estagiário cometeu um escorrego no enunciado da chamada. Está escrito que Trump «nega convite». Não é uma construção adequada. O verbo negar, embora tenha numerosas nuances, não é sinônimo de recusar.

Negar um convite é afirmação que, neste caso, não tem propósito. Só faria sentido num caso muito especial. Suponhamos que, para o Carnaval americano (Halloween), Trump organizasse o baile das abóboras, uma festa onde só se pudesse entrar com convite. Suponhamos ainda que Biden, louco pra comparecer, pedisse pra ser convidado. Aí sim, Trump podia negar o convite (=negar-se a convidar). É que, neste caso, o emissor do convite é Trump, e ele pode conceder ou negar o convite a Biden.

Não é, evidentemente, o que o estagiário quis dizer na chamada acima. No caso presente, o convidado é o próprio Trump. Esse convite para depor pode ser aceito ou recusado, sem outra opção. Trump recusou. Portanto, a chamada do jornal ficará perfeita assim: “Trump recusa convite para depor em investigação de impeachment”.

FIGHT

José Horta Manzano

Acabo de ler relato que revela que Donald Trump, para incitar sua milícia a marchar sobre o Capitólio de Washington, tuitou a palavra FIGHT (=luta). O artigo diz que o presidente escreveu em letras capitulares. Não é bem assim.

Em tipografia – atividade em via de extinção –, faz-se a diferença entre letras capitulares e letras maiúsculas.

Letras capitulares (ou letras capitais)
Fora de moda há séculos, a letra capitular, como seu nome indica, era a primeira letra de cada capítulo de um livro. Estava de moda na Idade Média, ao tempo em que livros eram copiados à mão, letra por letra, capítulo por capítulo.

A letra capitular, de tamanho bem maior que as demais, era bordada a bico de pena de ganso segundo o estilo de iluminura medieval, com arabescos, douraduras e tudo o mais que a fantasia do escriba criasse.

Letras maiúsculas (ou caixa alta)
Letra maiúscula é artigo bem mais prosaico. Para grafá-la, não precisa ser versado nas artes da iluminura – basta ter seguido com atenção as aulas de dona Dorinha, professora do primeiro ano. Todos conhecem a diferença entre letras maiúsculas e minúsculas – que os tipógrafos chamam de caixa alta e caixa baixa.

Resumindo, Trump não grafou sua LUTA(*) em letras capitulares. Como é que havia de fazer isso numa telinha de celular, com um dedo e sem pena de ganso? O que ele fez foi apenas escrever em letras maiúsculas.

(*) Ao falar de Trump e de Minha Luta, associei imediatamente a Mein Kampf (Meu Combate), livro escrito por Adolf Hitler em 1925, que continha a linha mestra de seu pensamento. Pensamento este que foi posto em prática anos mais tarde e que deu no que deu. Te esconjuro!

Assédio: adequação vocabular

José Horta Manzano

Desde que o movimento #MeToo ganhou o noticiário mundial, a noção de assédio tem estado presente em todas as conversas. A palavra assumiu conotação predominantemente sexual. Quem diz assédio, subentende assédio sexual.

O verbo assediar é antigo, mas seu uso nessa acepção é relativamente recente. Sua presença crescente no vocabulário do dia a dia é sintoma da evolução da sociedade. Atitudes e gestos que, poucas décadas atrás, passavam ignorados deixaram de ser aceitos. É passo importante em direção a um patamar mais civilizado.

Faz uns dias, um deputado estadual paulista teve a péssima ideia de apalpar o seio de uma colega sem seu consentimento – em público, ao sol do meio-dia e sob o olho das câmeras. Talvez o paspalhão imaginasse que tudo ia ficar por isso mesmo. Não ficou. O país inteiro se inteirou da traquinagem primitiva de Sua Excelência que, agora, corre risco de ver seu mandato encurtado.

Ao comentar o fato, todos os órgãos da mídia falaram (ainda falam) em assédio. Apesar da unanimidade, a mim não parece a melhor palavra pra definir o caso. Vamos ver por quê.

O verbo assediar, presente em todas as línguas latinas, descende do verbo latino sedere (=sentar, parar, postar-se, estar parado). Portanto, assediar contém a ideia de ação contínua, de demora, de repetição, de insistência.

Na acepção original, assédio é termo de guerra. Na Idade Média, quando ainda não havia canhões nem aviões, o único jeito de conquistar uma cidade fortificada era assediá-la, isto é, cercá-la com tropas de modo a não deixar ninguém entrar nem sair. E esperar até que os habitantes não aguentassem mais de fome e se rendessem. Podia levar meses ou até anos, mas um dia a cidade caía.

Assim, para que se possa falar em assédio (sexual, moral ou escolar), é preciso estar presente o fator repetição insistente. No caso da deputada paulista, a não ser que o apalermado indivíduo seja um habitué nas artes de apalpá-la, não se deve falar em assédio. Melhor será utilizar: importunar, incomodar, molestar.

Aquela (ou aquele) que passa dias, semanas ou meses sendo atormentado sexual ou moralmente, esse sim, poderá dizer que foi assediado.

De criança que vive atormentada por coleguinhas, costuma dizer-se que sofre bullying. A importada é chique, mas difícil de escrever e de pronunciar; além disso, a importação é desnecessária por haver similar nacional. Assédio é assédio, seja no trabalho, em casa ou na escola. Assédio escolar diz exatamente o que quer dizer.

Para quem quiser ousar caminhos novos, há outra opção. Acosso ou acosso escolar é expressão rara mas autoexplicativa. Aliás, é a palavra que os espanhóis utilizam pra dizer assédio: acoso.

Segundo turno curto?

José Horta Manzano

Chamada Folha de São Paulo

Com referência ao segundo turno de votação, já li em numerosos veículos que será “mais curto”, “extremamente curto”, “o mais curto da história”. Bobagem.

Os eleitores depositaram o voto na urna dia 15 de novembro: esse foi o primeiro turno da eleição. Primeiro e único em quase todos os municípios. Naqueles poucos que se enquadram nas condições fixadas pela lei, os eleitores estão convocados a se dirigirem à urna de novo, dia 29 de novembro, para um segundo turno de votação.

A realização de um segundo turno de votação já entrou nos hábitos. O que nunca se viu antes é um intervalo tão curto entre o primeiro e o segundo.

Bobeia quem diz que o segundo turno “será mais curto”. O que será mais curto é o intervalo entre as votações, abreviado de 4 para 2 semanas.

Derrota concedida

José Horta Manzano

Uma expressão estrangeira mal traduzida é um problema. Se ela for repetida e repetida, dia após dia até a exaustão, torna-se um problemão.

Donald Trump, o irritante personagem que (ainda) preside o Executivo americano, tanto fez, que acabou perdendo uma reeleição que parecia uma barbada.

Nos EUA, faz duzentos anos que o candidato perdedor, por mais grosseiro que seja, apeia do cavalo, deixa de lado seus modos de caubói e cumprimenta o vencedor, desejando-lhe boa sorte.

Mas Trump é mais caubói que os outros. Além de tosco, mostra ser pouco inteligente, ao não se dar conta da imagem que deixará nos livros de história. Recusa-se a cumprimentar o vencedor.

Todos os artigos que li na mídia dizem que ele se recusa a «conceder a derrota». Bobeiam feio.

Em nossa língua, o verbo conceder não tem valor idêntico ao que tem em inglês. Não há lógica em dizer “conceder derrota”. O original «to concede defeat» será traduzido por reconhecer a derrota.

Quem preferir, pode usar também: admitir a derrota ou assumir a derrota. Ou entregar os pontos, metáfora esportiva que diz a mesma coisa.

Morreu por covid?

José Horta Manzano

Esta aqui, recortei da edição online do G1 de ontem. Não sei o que o distinto leitor acha, mas a chamada, a mim, soa estranha.

Chamada do G1, 29 agosto 2020

Sou do tempo em que se morria de alguma coisa. Por exemplo:

Morreu de câncer
Morreu de infarto
Morreu de fome
Morreu de acidente
Morreu de parto
Morreu de desgosto

Pode-se também morrer por alguém ou por algo:

Morreu pela pátria
Morreu por seu ideal

Já o título da chamada – Morreu pela covid-19 – é esquisito. Ademais, o estagiário tascou letra maiúscula no início do nome da doença. Essa reverência deve vir do fato de se tratar de doença nova. A caixa alta me parece desnecessária.

A aids, que no início também era sigla, tornou-se nome comum e perdeu o privilégio: hoje se escreve com minúscula. Acho que a covid deve entrar na mesma categoria, assim como entraram a peste bubônica e a gripe espanhola.

Consertando a chamada:
Brasil passa dos 120 mil mortos de covid-19.

Colocações

Sérgio Rodrigues (*)

No Brasil, adoramos colocar. Houve um tempo em que púnhamos com mais frequência, para não mencionar todas as ocasiões em que botávamos. Por razões que será preciso investigar melhor, hoje preferimos colocar. E como colocamos!

Ano passado, na mesma semana, lemos na Folha que uma cabeçada de Everton Ribeiro “colocou Cássio para trabalhar”, que “a China colocou a culpa dos protestos (de 1989) nos contra-revolucionários” e que Jean Wyllys anunciou medidas contra “a mentira abjeta que colocou nossas vidas em risco”.

São só três ocorrências, entre as incontáveis que nos cercam, em que o arrivista colocar rouba o posto de trabalho de colegas como pôr, botar, meter, pousar, depositar, atribuir, aplicar etc.

Seria absurdo dizer que aquelas frases estão erradas. Contudo, em sua política expansionista, colocar provoca um estrago vocabular equivalente ao do desmatamento de um belo naco da Amazônia.

Não há muito a fazer. É um fato linguístico banal uma notícia como “Homem coloca fogo na própria casa”. Verdade que, a olhos mais cevados na tradição, o fogo, com sua imaterialidade feroz, é um parceiro desajeitado de colocar, verbo a princípio mais técnico.

Acontece que o uso detém a última palavra, as opções coletivas sempre acabam por vencer – cartilhas e ouvidos delicados que se adaptem, ora. A banda toca essa música há séculos. Mesmo assim, é saudável ficar atento a abusos.

 

Coloquei!

Já foi pior. Nossa compulsão colocadora tornou epidêmico, nas últimas décadas do século 20, um vício nascido na linguagem universitária: aquele em que o verbo é (ou era) usado como sinônimo de dizer, sustentar, argumentar: “Entendo a sua colocação, mas gostaria de colocar que…”

Essa praga, se não passou, arrefeceu bastante. No entanto, quando hoje as galinhas optam por colocar ovos e a gente se dá conta de que, se fosse criado neste século, o bairro carioca de Botafogo se chamaria Colocafogo – nesse momento vale a pena parar e pensar.

Vindo do latim “collocare”, isto é, “cum + locare”, pôr em determinado local, colocar é uma palavra nascida no século 15, quando a língua portuguesa se sofisticava. Sinônimo de pôr, botar e meter, estas do século 13 e mais próximas das raízes orais do idioma, representava uma espécie de gentrificação linguística.

Pelo menos a princípio, era um termo mais fino, de maior precisão no onde e no como. O “chute colocado” da linguagem futebolística traduz bem essa ideia. Qual força, então, acabou por fazer de colocar esse irresistível genérico de massa?

A resposta que eu queria deixar como hipótese é: aquela ânsia mal-orientada de formalidade e apuro, quando não de pompa e pedantismo, que é uma marca da cultura brasileira.

Nossa inclinação coletiva pelo termo que parece mais erudito, menos popular, e que portanto imaginamos mais correto e bacana, tem prestado maus serviços à língua. O modismo do verbo possuir empregado indiscriminadamente no lugar de ter é o exemplo clássico.

Há anos temos lido e ouvido, no Brasil, que pessoas possuem resfriados, dúvidas, dores de cabeça, um picolé – como se tais coisas contingentes e fortuitas estivessem inscritas em seu corpo ou lavradas em escritura no cofre de sua casa.

É uma impropriedade vocabular e tanto, diante da qual o mais novidadeiro uso de colocar parece saído de uma página de Machado de Assis. Mas neste momento fica claro que o assunto é amplo demais para ser colocado por inteiro aqui.

(*) Sérgio Rodrigues é escritor e jornalista.

Extremamente medíocre

José Horta Manzano

A todo momento se ouve comentar que tal coisa ou tal pessoa é «extremamente medíocre». Verdade ou não? No entanto, considerando a filiação da palavra medíocre, a expressão não faz sentido.

Em latim, o termo já era usado com a mesma forma (mediòcris), talvez sem a carga pejorativa que lhe atribuímos. Designava simplesmente quem ou aquele que estava no meio, entre os extremos, entre o muito e o pouco, o bom e o mau, o pequeno e o grande.

A origem é medius (=o meio). Do que está no meio, diz-se medíocre. Nas demais línguas que utilizam a mesma raiz, o termo não é pejorativo como em português. Na pior das hipóteses, a carga pejorativa é leve, nunca pesada como em nossa língua.

by Joe Di Chiarro, desenhista americano

Resumindo, se algo está no meio, está longe dos extremos. Chamar a essa posição “extremamente medíocre” tem ares de contrassenso. A palavra medíocre dispensa qualificativos. Algo (ou alguém) é medíocre; não precisa acrescentar nada. Significa que não é bom nem ruim.

Em rigor, a máxima latina ‘virtus in medio’ (= a virtude está no meio) poderia ser traduzida por ‘a virtude é medíocre’. Estou brincando, distinto leitor. É melhor não traduzir assim. Havia de pegar mal à beça…

Pegar mal? Sei não. Com o copioso e persistente exemplo que nos vem atualmente do andar de cima, vamos acabar nos convencendo de que a mediocridade virou virtude.

Curiosidade 1
Tanto em latim quanto nas línguas da Europa ocidental (francês, alemão, italiano, inglês, espanhol, sueco) a palavra é paroxítona, com acento no ó (mediócre/mediôker). Em nossa língua, a tônica pulou uma sílaba pra trás. Sem dúvida, ficou com jeitão mais culto.

Curiosidade 2
Na liturgia católica, a depender do momento do ofício, há três graus de curvatura do tronco na hora de prestar vênia: a pequena reverência, a média e a profunda. Em italiano, a reverência média se diz “inchino mediocre” (=inclinação medíocre). Sem um pingo de sentido pejorativo.

Reputações

José Horta Manzano

A direção do Facebook cassou páginas e perfis criados e mantidos pelo “gabinete do ódio”, milícia digital associada a doutor Bolsonaro. Essa central de difusão de informações enganosas tem por encargo, entre outras tarefas, a “destruição” de reputações. Pus “destruição” entre aspas porque, apesar de ser a palavra usada por dez entre dez jornalistas, não me parece adequada.

Por definição, reputação é conceito neutro; ela tanto pode ser boa quanto ruim. Tanto podemos dizer que “Fulano tem excelente reputação” quanto podemos afirmar que “a reputação de Beltrano é péssima”. Portanto, não faz sentido falar em “destruir” reputações. Boa ou má, reputação sempre haverá. Será melhor utilizar outro verbo. Há muitos à disposição: sujar, manchar, enxovalhar, emporcalhar, deslustrar, enlamear, encardir.

Antigamente, dizia-se denegrir, palavra hoje considerada politicamente incorreta. É paradoxal que “denegrir reputações” seja incorreto, enquanto “embranquecer de medo” é admitido. Fica difícil entender por que um pode e o outro não. Mas esse é assunto pra outro artigo. Vamos voltar ao que nos interessa hoje.

É interessante notar que a palavra reputação vem do latim reputatio, formada a partir do verbo reputare. Este verbo é filhote de putare, cujo sentido originário é ligado à pureza (putus = purus). Putare é a forma latina de nosso podar (=limpar, eliminar galhos inúteis).

Por associação de pensamento, putare evoluiu para o sentido mais abstrato de calcular, fazer as contas, opinar, julgar, considerar. Hoje a família é extensa. Dela fazem parte, entre outros descendentes: computar (computador), contar, deputar (deputado), imputar, amputar, disputar. E, naturalmente, todas as reputações que vêm sendo solapadas pelos gentis assessores presidenciais.

Quarentena

José Horta Manzano

Temos novena para Santo Antônio. Temos dezena (de 10 unidades). Temos trezena para Santa Brígida. Temos quinzena, que corresponde a duas semanas ou, grosso modo, à metade de um mês. Temos vintena, que se usa para exprimir quantidade ao redor de 20 unidades. Temos ainda centena.

As pessoas suspeitas de estarem contaminadas pelo coronavírus devem cumprir 14 dias de confinamento. Todos, sem exceção, dizem que o indivíduo está de quarentena. O ano de 2020 marcará um pico de uso desse termo.

Bem, errado, propriamente, não está. Só que a palavra quarentena, nesse caso, está sendo utilizada por ampla extensão de sentido. Na origem, quarentena é o período de 40 dias, tempo de resguardo estabelecido desde a Antiguidade. No caso de a quarentena durar 14 dias, por que não usar quatorzena (ou catorzena)? O termo exprime exatamente o que tem de exprimir.

O Volp traz quatorzeno (ou catorzeno), um numeral que indica o décimo quarto de uma série. A partir daí, pelo menos foneticamente, a porta está aberta para que se ouse quatorzena (ou catorzena) para o período de resguardo de 14 dias.

Observação
Dizemos: quatro, quarenta, quarentena, quatrocentos, quadrado, quadragésimo, quatriênio, quatrilhão, quarto, quadra, quadrante, quadrar, quadratura, quadriculado, quadríceps, quadrifólio – e muitos outros da mesma família. Como veem, todos começam com qua.

O patinho feio, único a escapar do qua, é o 14. Na hora de dar-lhe nome, damos preferência a catorze, com ca. (Quatorze é forma menos comum.) Curioso, não?

Criar novo

José Horta Manzano

Chamada Estadão, 8 nov 2018

Se não havia regime tributário para montadoras, o decreto presidencial cria um. O ‘novo’ sobra. De fato, vai um doce pra quem conseguir criar regime velho.

Se já havia um regime tributário para montadoras, não há por que criar outro. Se ele foi modificado, será melhor utilizar outro verbo que dê o recado.  Fica assim: «Temer assina decreto que modifica (altera, transforma, mexe com, remodela, muda) regime tributário.»

Pronto, o recado estará dado. Utilizar «criar novo» é uma tentação. Mas é baita redundância.