Assimetria que já não surpreende

José Horta Manzano

Em meio à avalanche diária de informações, certos fatos passam despercebidos não por serem irrelevantes, mas por nos parecerem normais. A naturalização da anormalidade é um fenômeno perigoso, especialmente quando ela envolve a guerra. Um exemplo disso pode ser encontrado no recorte de jornal estampado logo aqui acima:


“Putin faz maior ataque aéreo e acelera nova ofensiva; Kiev alveja base.”


À primeira vista, parece apenas mais uma atualização sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia. Mas, num olhar mais atento, salta aos olhos uma assimetria sutil — e reveladora.

A frase começa com a menção direta ao nome de um líder: “Putin faz maior ataque aéreo”. Não se trata da Rússia, do Exército Russo ou de uma decisão coletiva. É Putin, em pessoa. A manchete atribui a ele, com todas as letras, a responsabilidade direta por uma ação militar de grande escala. Já no segundo trecho, “Kiev alveja base”, a linguagem muda. A capital ucraniana é mencionada de forma impessoal, quase geográfica. O nome de Zelenski, presidente da Ucrânia, sequer aparece.

Por que isso acontece? A resposta talvez seja mais simples — e mais incômoda — do que parece. O mundo já naturalizou a figura de Vladimir Putin como uma espécie de senhor absoluto da guerra, alguém que age conforme a própria vontade, sem freios internos ou externos. A guerra na Ucrânia, nesse imaginário coletivo, não é entre dois Estados, tampouco entre dois projetos políticos. É uma guerra iniciada e sustentada pela vontade de um único homem. E essa percepção está embutida até mesmo nas estruturas linguísticas mais banais, como a escolha de palavras em uma manchete de jornal.

Essa assimetria não é apenas jornalística — ela é política, simbólica e moral. Ao personalizar os ataques russos em Putin, a narrativa constrói uma figura de vilão clássico, quase caricatural. E ao impessoalizar os ataques ucranianos, retira de Zelenski a responsabilidade ativa no conflito, ainda que defensiva. Assim, Putin aparece como o agente solitário da destruição, enquanto Kiev (ou a Ucrânia) surge como vítima reativa, um ente quase sem rosto, que tenta apenas sobreviver.

Não se trata aqui de questionar quem é o agressor e quem é a vítima — para observadores de boa fé, a distinção é clara e óbvia. Trata-se, sim, de observar como, mesmo em detalhes aparentemente neutros, a linguagem revela o quanto já aceitamos certas premissas. A guerra, afinal, não deveria depender da vontade de um homem só.

Sob o risco de ressuscitar os tempos sombrios de Hitler e Stalin, o fato de essa banalização soar hoje natural deveria, no mínimo, nos preocupar.

Patriotas de araque

José Horta Manzano

A fuga da “patriota” Carla Zambelli engrossa o volume de bolsonaristas refugiados no exterior. Já são várias dezenas que escaparam para Argentina, Estados Unidos, Paraguai, Espanha. Um dos bolsonarinhos – até ele! – se “autoexilou” nos EUA.

Vai ficando cada dia mais claro que os membros desse clube são eloquentes no papo, fazem e acontecem da boca pra fora, mas, na hora do vamos ver, abandonam família e companheiros, e “dão no pira”, como se dizia antigamente. Gente fina é outra coisa.

A senhora Zambelli foi julgada e condenada pelo STF a 10 anos de prisão por ter invadido a central informática do Conselho Nacional de Justiça, crime gravíssimo. Quando viu que a coisa estava apertando e já dava pra entrever as grades da prisão, armou um plano caseiro de fuga. Falante como só ela, não conseguiu aguentar até chegar ao que considera seu porto seguro – deu com a língua nos dentes antes.

Deu entrevista por internet contando que estava nos EUA, a caminho da Itália. Declarou:


“Eles vão tentar me prender na Itália, mas eu não temo, por que sou cidadã italiana e lá eu sou intocável. […] Se eu tenho passaporte italiano, eles podem colocar a Interpol atrás de mim, mas não me tiram da Itália. Não há o que possam fazer para me extraditar de um país (de) que eu sou cidadã.”


Lembrei de quando a Operação Lava a Jato estava chegando aos finalmentes, muitos anos atrás. Um após o outro, os cabeças iam tomando o rumo da Papuda. Não tenho nenhuma simpatia por corruptos, mas devo dizer que, no geral, tiveram atitude mais digna que os “patriotas” bolsonaristas fugidos na hora H. Dinheiro, até que tinham suficiente. Mas se entregaram. Que eu me lembre, todos entraram no camburão, menos um.

Foi senhor Henrique Pizzolato, diretor do Banco do Brasil e condenado a quase 13 anos de cadeia por corrupção, peculato e lavagem de dinheiro. Ele se achou mais esperto que os outros. Numa história de filme americano, fez-se passar por um irmão já falecido, usou o passaporte do morto, fugiu para a Argentina e de lá para a Itália. Pizzolato também tinha dupla cidadania, italiana e brasileira, mesmo caso de Zambelli. Como ela, imaginou-se “intocável”. Alegre engano…

Assim que a Justiça brasileira tomou conhecimento do paradeiro de Pizzolato, acionou a polícia italiana e solicitou extradição. O extraditando choramingou, esperneou, bateu o pé, mas não teve jeito. Um belo dia, foi despachado direto de Roma para Brasília, em jatinho da polícia italiana, escoltado e vigiado por policiais. Ao descer, seguiu direto para a Papuda, onde iniciou o cumprimento de sua pena.

Como é possível que tenha sido extraditado? Acontece que a Constituição italiana, diferentemente da nossa, não proíbe a extradição de um nacional. Em raros casos, ela pode ocorrer. Quando um país estrangeiro pede a extradição de um italiano, o caso será estudado pelas cortes daquele país. Se acreditarem que o cidadão teve julgamento justo e se os crimes também forem reconhecidos como tais pelas leis italianas, a extradição pode perfeitamente ser concedida.

Portanto, dona Carla que se cuide. É bom não gargarejar por aí sua pretensa “intocabilidade”. Sua carapaça pode não ser tão resistente como ela imagina. Um dia, vai acabar descobrindo que é de lata barata, e olhe lá, borocochô.

Romaria

José Horta Manzano

No último 21 de maio, o senhor Eduardo Girão, senador pelo estado do Ceará, dirigiu requerimento à Comissão de Constituição e Justiça do Senado pedindo a criação de uma “diligência” para visitar mulheres brasileiras que atualmente se encontram presas em El Paso (Estados Unidos). (Associar a ideia de “diligência” à região de El Paso traz à memória aventuras do Velho Oeste.) Mas isso é pura digressão. Voltemos ao assunto.

A nobre motivação do senador seria daquelas que a gente tira rápido o lencinho e chora junto, não fossem alguns detalhes que turvam suas aparentes boas intenções. Vejamos.

No requerimento, o senador comete uma malandragem capaz de enganar um incauto. Primeiro, chama as mulheres que deseja visitar de “presas políticas”, uma evidente falsidade. Logo em seguida, sem transição, diz que estão “presas em El Paso no Texas”. E diz ser importante “averiguar as condições carcerárias e possíveis violações de Direitos Humanos”.

Parece que a intenção é justamente essa: a de levar um leitor desavisado a crer que estejam presas no Texas por maquiavélica interferência da justiça brasileira quando, na verdade, estão na cadeia por terem entrado em território americano fraudulentamente.

Em nenhum ponto do requerimento, é mencionada a situação de as brasileiras serem imigrantes clandestinas, apanhadas em flagrante pela polícia americana e presas preventivamente à espera de deportação. Primeiro, elas violaram a lei brasileira ao quebrar as tornozeleiras e fugir do país; em seguida, violaram a lei americana ao tentar penetrar sem autorização no território daquele país. Nosso senador omite espertamente a violação da lei americana.

Mais adiante, o requerimento refaz o cenário de um processo que j’a se encerrou. Volta a explicar que, no 8 de janeiro, essas senhoras só entraram nos prédios da Praça dos Três Poderes “para se proteger das bombas que eram ateadas (sic) por helicópteros”. Fica, portanto, esclarecido que só estavam lá a passeio, nada mais. Um domingo no parque, em suma.

A “diligência” requerida pelo senador deve traduzir-se por uma comitiva mais ou menos numerosa de parlamentares – quiçá assessorados pelas digníssimas esposas – que passarão um certo tempo nos EUA. A romaria será custeada com nosso dinheiro, naturalmente. Não há risco de esses romeiros serem encarcerados como clandestinos, dado que não entrarão a pé por El Paso, mas por Nova York ou talvez Miami. Fica a dúvida sobre se consultarão previamente as autoridades prisionais do Texas para saber se há possibilidade de visitar as brasileiras presas. Quem sabe esse detalhe não tem importância para a comitiva.

Cá entre nós, há outros brasileiros encarcerados nos Estados Unidos. Há desde criminosos pesados que cumprem prisão perpétua até infelizes pilhados atravessando o Rio Grande de sapato na mão e trouxa na cabeça. Com certeza há dezenas deles nas prisões de El Paso. Será que esses coitados não vão ter a honra de receber um alozinho dos figurões? Pela lei americana, são tão clandestinos quanto as senhoras que passeavam na praça no 8 de janeiro e hoje curtem uma temporada na prisão de El Paso. Estão todos na cadeia por terem violado as leis americanas de imigração.

A autorização de Damares Alves, presidente da CCJ, ainda não veio. Mas nâo há de tardar.

Com dois TT

José Horta Manzano

De criança, eu achava um charme ter letra dupla no nome. Dois zz, dois mm, dois ff – qualquer letra valia. Só não valia dois ss ou dois rr, que eram letras comuns demais e não dariam graça ao nome. Infelizmente, meu nome não tinha letras duplas. Tive de me conformar e passar a vida inteira sem o que me parecia o “charme do nome”.

Constato hoje que a ideia de charme evoluiu. O povo não parece mais vidrado em letra dupla, como era meu caso. Nestas décadas mais recentes, a moda é acrescentar ao prenome (digo bem acrescentar, nunca eliminar) letras ao acaso, como um jogo em que dadinhos são lançados ao alto e… onde caírem, caíram.

Eu disse “letras ao acaso”, mas tenho de clarear a explicação. Nessa curiosa ideia de lançar dadinhos com letrinhas, não se usa todo o alfabeto. Só umas poucas letras são utilizadas: H e Y principalmente.

Assim, tenho visto Jhonny, Jhonatan, Davyd, Alyce, Olyvia. Apesar de tudo, letras duplas ainda chegam a encantar. Já vi Weslley, Ellyana.

Dessa sopa de letrinhas, tem saído um duo milionário. Quando usado em dupla, o T, uma letra que está mais pra jogo da forca do que pra baú de Ali Babá, pode ser o gatilho para a entrada de dinheiro na vida de uma pessoa.

Gusttavo Lima e Anitta, ídolos comparáveis a Francisco Alves e Linda Batista de nossos tempos, são a demonstração do poder midiático do T. (Quando digo “poder midiático”, não penso na mídia, mas no rei Midas, aquele que transformava em ouro tudo o que tocava.)

Nossos dois personagens, duplamente tezados, passaram do nada à riqueza bilionária em função da duplinha TT, à qual tudo devem. E pensar que, no original, nenhum dos nomes – nem Gustavo nem Anita – aceita o duplo TT. Gustaf (ou Gustav) é nome masculino escandinavo. Oito reis suecos, incluindo o atual, levavam esse nome. E nenhum deles precisou acrescentar um T ao nome. Será porque já nasceram ricos.

Já Anita é diminutivo de Ana, nome feminino velho como a Bíblia. O que Ana costuma ter é duplo NN (Anna), inclusive no Brasil pré-reforma ortográfica de 1943. A rigor, nossa moderna Linda Batista poderia ter escolhido Annita, com dois NN, forma que não chocaria. Na hora do lance, o dadinho deve ter escorregado para o lugar errado.

Hoje fiquei conhecendo mais uma jovem iniciante na carreira, que adotou o duplo TT. Trata-se de bonita moça que responde pelo exótico nome de Anttónia Morais, outra jovem que deve ter acreditado no poder “midiático” da duplinha mágica. Ela parece ter entrado com pé direito no caminho da glória: vestiu joias de R$ 800 mil pra pisar o tapete vermelho de Cannes.

Da próxima vez que eu for criança, vou transformar meu Horta em Hortta. Será caminho certeiro para a riqueza bilionária. Desta vez, já ficou tarde.

Prisão geriátrica

José Horta Manzano

Nos últimos anos, o Brasil tem assistido a um fenômeno curioso: um número crescente de personalidades públicas e figuras poderosas que passam a vida livres e apenas são alcançadas pela Justiça quando já se encontram em idade avançada. Políticos, empresários e outros figurões acabam sendo condenados e presos depois dos 60 anos, quando já estão abrigados sob o manto do Estatuto do Idoso. Essa situação aponta um novo desafio do sistema penitenciário brasileiro: como lidar com uma população carcerária cada vez mais velha.

O envelhecimento traz consigo condições de saúde que exigem cuidados específicos. Hipertensão, diabetes, obesidade, artrose, insuficiência cardíaca, problemas de visão, dificuldade de locomoção, entre outras mazelas, tornam-se mais comuns e demandam acompanhamento médico constante, acessibilidade adequada e medicações regulares.

As prisões brasileiras, no entanto, não estão preparadas para receber detentos com esse perfil e dar-lhes a atenção que necessitam. A infraestrutura deficitária, a escassez de profissionais de saúde e a superlotação agravam ainda mais o quadro. Mas os princípios de isonomia pontuam que cada condenado, idoso ou não, tem de cumprir sua pena.

Diante disso, torna-se legítimo pensar na criação de estabelecimentos penitenciários especializados no acolhimento de idosos. Uma prisão geriátrica, com equipe médica multidisciplinar, espaços adaptados e estrutura voltada às necessidades da terceira idade, poderia atender a essa demanda crescente. Isso frearia a recorrente concessão de prisões domiciliares e a suspensão de penas sob justificativas médicas, que frequentemente geram na população um sentimento de impunidade e de desigualdade perante a lei.

A criação de um certo número de unidades prisionais voltadas para a população idosa poderia, portanto, não apenas garantir o cumprimento da pena com dignidade, como também restaurar a confiança do cidadão comum na Justiça. Afinal, a punição deve ser igual para todos — inclusive para aqueles que só enfrentam a lei quando os cabelos já branquearam.

A nova camisa da Seleção: vermelho, paixão e o fim da seca?

José Horta Manzano

Uma polêmica desnecessária tomou conta das redes com o anúncio da nova camisa reserva da Seleção Brasileira. A cor? Vermelho. A reação? Uma enxurrada de interpretações políticas atribuindo ao tom escarlate significados ideológicos que beiram a comédia. Politizar a cor de um uniforme de futebol é comovente demonstração de estupidez.

A camisa, em si, é um símbolo. E o vermelho, longe de qualquer conotação política, representa exatamente aquilo que tem faltado à Seleção nos últimos tempos: alegria, vivacidade e paixão. Uma cor vibrante, que evoca energia e ardor, atributos essenciais para uma equipe que busca o sucesso.

É preciso lembrar que muitos países, alguns de longa tradição futebolística, usam, no uniforme, cor que não aparece em sua bandeira. O azul da Itália, o laranja da Holanda, o amarelo da Austrália e o azul do Japão são exemplos. A escolha da cor de um uniforme de futebol é uma decisão estética e mercadológica, que busca identidade e impacto visual, não uma declaração política.

O vermelho costuma carregar simbolismos históricos e culturais, mas reduzi-lo a uma única interpretação política é ignorar a riqueza de significados que a cor pode representar. No contexto do futebol, o vermelho grita paixão, força, e a busca incansável pela vitória. É uma cor que exalta a torcida, energiza os jogadores e impõe respeito aos adversários.

Após 24 anos sem conquistar a Copa do Mundo, a Seleção precisa resgatar a alegria e a garra que a consagraram no passado. Quem sabe essa nova camisa, com sua cor vibrante e carregada de energia positiva, anuncie o despertar de que a equipe precisa. Quem sabe o vermelho, tão associado à paixão e à luta, seja o ingrediente que faltava para que a Seleção volte a erguer o caneco.

Mais do que uma simples camisa, é uma esperança renovada, uma busca pelo resgate da identidade e da glória de nosso futebol. Que o vermelho, então, não apenas seja uma cor, mas assinale o retorno triunfal do Brasil ao topo do futebol mundial.

Collor na cadeia, muito bem. E os milhões?

José Horta Manzano

Fernando Collor de Mello, primeiro presidente eleito após a ditadura militar, marcou a história do Brasil de forma trágica ao ser também o primeiro a sofrer um impeachment. Driblou a Justiça por décadas; vê-se agora finalmente na hora do acerto de contas. Condenado em derradeira instância, foi encaminhado para a prisão. É passo importante para um país que tanto clama por responsabilização. Antes tarde do que nunca.

Mas se a prisão de um figurão mostra que, no fundo, ninguém está acima da lei, resta a pergunta que ecoa por ruas e redes: e o dinheiro desviado? Os milhões roubados de cofres públicos e privados, fruto de corrupção, favorecimentos e obscuras transações, serão recuperados? Ou a punição se resume apenas à perda da liberdade, deixando que o apenado saia da cadeia amanhã tão ilicitamente rico quanto entrou? Talvez a informação tenha me escapado, mas não encontrei no noticiário nenhuma menção a confiscação do dinheiro embolsado ilicitamente.

Prender corruptos é necessário, mas tão ou mais importante é assegurar a reparação do dano causado ao erário ou a outrem. O confisco de bens, a devolução de valores desviados e a indenização pelos prejuízos são passos que precisam caminhar junto com a responsabilização penal. Sem isso, a Justiça corre o risco de virar apenas um espetáculo, sem efetivo efeito reparador para a sociedade. Devolução e multa milionária têm de marchar pari passu com a prisão.

O brasileiro comum, que paga impostos diretos e indiretos, que enfrenta fila em hospitais públicos, que vê a educação sucateada, tem todo o direito de querer mais do que o encarceramento de figurões metidos a besta como esse cavalheiro: exige-se o ressarcimento. Não basta punir o corpo; é preciso recuperar e confiscar o patrimônio rapinado. Sem contar a imposição de multa milionária, correspondente ao valor embolsado.

Collor foi para a cadeia, ótimo. Mas que a Justiça vá além. Que também desfaça o que foi construído à custa da corrupção. Só assim poderemos, de fato, torcer o braço à ladroagem que nos circunda e construir uma democracia séria e respeitada.

Sexta-feira da Paixão

José Horta Manzano

As sextas-feiras santas da minha infância eram marcadas pelo som dos sinos das igrejas e pelo perfume das flores frescas que adornavam os altares. Naquela época, a cidade inteira parecia entrar em um estado de contemplação e respeito, enquanto procissões serpenteavam pelas ruas, estreitas e largas, de terra e pavimentadas.

Naquele tempo, todos aprendiam desde pequeninos a diferenciar entre o profano e o sagrado, dois elementos que, como água e óleo, não se podem misturar. Eu me lembro da sensação de reverência que pairava no ar, misturada com a expectativa do sábado de Aleluia, dia em que os maiorzinhos tinham direito a dar com pau num judas de trapo e farrapo, amarrado a um poste. A meninava vibrava e mandava brasa porque tinham todos aprendido que o boneco representava um homem mau que estava ali pagando seus “malfeitos”. E dá-lhe paulada!

Depois vinha o domingo de Páscoa, dia especial em que todos se lançavam um “–Boa Páscoa!”. Eu não entendia bem por que razão os adultos externavam votos de que o dia de festa fosse bom. Pois o dia era, necessariamente, bom! Era domingo, não havia aula e, além de tudo, ganhava-se ovo de chocolate, um acontecimento!

Chocolate, hoje em dia, é mais disponível. Encontra-se em cada esquina e tem preço abordável. Naquele tempo, na venda do Seu Manuel, disponível era só doce de batata doce. E maria-mole.

Nas inchadas metrópoles brasileiras atuais, será que ainda se veem passar procissões?

Trapaça

by Igor Kopelnitsky (1946-2019), desenhista ucraniano-americano

José Horta Manzano

Futebolista de um time do Rio de Janeiro convocou família e amigos para organizarem, juntos, uma fraude. O objetivo era forjar um rápido enriquecimento ilícito para a numerosa parentada. Apostou-se na certeza de recebimento de cartão amarelo pelo futebolista. Tanto o rapaz fez, que conseguiu chamar a atenção do árbitro. E levou o tal cartão, fazendo feliz a família toda, cada um embolsando o prêmio correspondente a sua aposta.

Numa primeira apreciação do caso, o promotor havia concluído que essa fraude é comum no futebol brasileiro e que não valia a pena repreender.

Sem ser especialista em futebol (e muito menos em aposta esportiva), discordo do promotor. Não me parece normal que um crime, por ser cometido frequentemente e por muitos indivíduos, seja menos grave. Não estamos aqui falando de futebol de várzea, mas de jogo profissional.

Com a prática da fraude, os infratores estão:

  • passando a perna em outros cidadãos que apostaram certinho, sem embuste;
  • frustrando a veracidade daquilo que um dia foi “jogo bonito” e que hoje está mais para “me engana que eu gosto”;
  • incentivando colegas futebolistas, principalmente os novatos, a seguir o mesmo caminho e perpetuar a trapaça como modo de enriquecimento pessoal.

Longe do entendimento do mencionado promotor, entendo que cidadãos como o ora indiciado jogador devem ser punidos com rigor, incluindo algumas semanas de cadeia firme. Entre as ferramentas da prevenção, um exemplo de firmeza das instituições vale mais que mil ameaças.

  • Crime em bando organizado.
  • Crime contra a transparência do esporte nacional.
  • Fraude visando a lograr o grande público.

Vejam que, para tipificar o “malfeito”, denominações não faltam.

Família que trapaceia unida permanece unida? Tremai, famílias trapaceiras, tremai!

Imagens que intrigam

José Horta Manzano

Certas imagens me intrigam. Por exemplo, a foto estampada acima, tirada diante do hospital brasiliense que atualmente abriga Jair Bolsonaro.

Quando saiu a notícia de que o antigo presidente estava passando por uma intervenção cirúrgica complicada e de alto risco, muita gente deve ter se recolhido e pedido uma graça a seu santo de devoção. Muitos pediram proteção para o doente. Pode até ser que outros tenham formulado pedido diferente.

É normal e universal que um indivíduo se recolha para conectar-se com suas entidades protetoras. Em princípio, isso se faz em momentos íntimos, num ambiente caseiro e calmo. É nesse ponto que a foto me intriga.

Supõe-se que o retratado seja um apoiador de Bolsonaro em posição de oração. Se eu encontrasse o cidadão, ia fazer-lhe diversas perguntas. São caraminholas que não me saem da cabeça.

  • Por que razão preferiu prostrar-se em local público, à luz do dia, à vista de todos?
  • Qual o motivo de ter desfraldado nossa bandeira nacional, posicionada como se fosse altar?
  • Numa oração em que o fiel pede graças ao Altíssimo, a palma das mãos dever estar voltada para cima, simbolizando a espera das bênçãos que descem a este vale de lágrimas. Já o cidadão da foto voltou a palma das mãos para o hospital onde jaz o antigo presidente, numa postura que pode fazer escorregar as graças. Por que motivo voltou as mãos para o edifício? Acredita que, em vez de descer do céu, as bênçãos sejam emitidas pelo próprio ídolo recém-operado?

Quem entendeu o propósito do peregrino da foto, que me desculpe. Eu não entendi. Quando uma situação me parece fora dos eixos, gosto de tentar esclarecer.

Ocaso dos populistas

José Horta Manzano

Lula anda se comportando feito barata acuada. Corre pra um lado e pra outro, hesita em trocar ministros, tira da cartola um programinha populista aqui, outro ali, tudo de circunstância, sem consistência. Mostra, a cada dia, não ter programa de governo. Na sua cabeça, que parece ter estacionado no tempo de seus mandatos anteriores, imaginou que pudesse se comportar como Midas moderno, resolvendo todos os problemas com um toque. Não está dando certo.

Bolsonaro é outro que anda deslizando, cada vez mais enrolado. Nos bons tempos em que lhe serviam café quente, vencia todas e agredia sem medo todas as autoridades da república. Pairava, inatingível, acima da ralé e da grã-finada. Hoje o vento mudou. Não entra mais em palácio. Seus comparsas estão presos ou à beira de o ser. Desconcertado, agarra-se a qualquer miragem que lhe pareça poder livrá-lo da cadeia com a qual já tem encontro marcado.

Trump está decepcionando os que dele esperavam um poderoso “abre-te sésamo” que projetasse os EUA num futuro brilhante de riqueza e prosperidade. Suas promessas de campanha andam mal das pernas. A expulsão de 11 milhões de trabalhadores clandestinos está se verificando meta inatingível, fora de qualquer cogitação. O conflito ucraniano, que seria resolvido em 24 horas, foi posto de molho. Bombas continuam explodindo na capital ucraniana. O vaivém dos impostos de importação mostrou, depois de perturbar as finanças do planeta, que não tinha vindo pra ficar, que era só uma ameaça. Caiu mal.

Putin continua lá no seu canto, jururu, sem conseguir vencer a guerra que declarou contra um vizinho bem menor e menos poderoso que ele. Ele também há de estar perdendo a confiança em Trump, aquele que prometia acabar com a guerra em um dia.

Milei, dizem, também anda inconformado. Seu sonho teria sido que a Argentina, e não o Canadá, tivesse sido convidada a se tornar o 51° estado americano.

Marine Le Pen é deputada francesa da extrema direita populista. A cada eleição para a presidência da república, seu nome na urna é tão infalível quanto brigadeiro em festa de criança: está sempre lá. E já faz umas duas ou três vezes que passou para o segundo turno. Pois Madame acaba de receber uma pena de prisão e de cinco anos de inelegibilidade. Em vez de prisão, terá de andar com tornozeleira eletrônica, mas a inelegibilidade é pra valer: não poderá disputar a próxima eleição.

Os que mencionei não são os únicos, há muitos outros líderes populistas no mundo. Falei dos que estão mais próximos de nosso universo. A julgar por eles, este ano da graça de 2025 parece assinalar o fim – ou pelo menos uma pausa – na pestilenta vaga de populismo que nos circunda.

Tomara que a pausa dure bastante tempo. Tomara que as próximas presidenciais brasileiras não tragam nenhum candidato populista na urna. Uma eleição sem Lula e sem Bolsonaro será uma bênção.

São Benedito é santo forte. Não sei se seus braços alcançam Le Pen, Milei, Putin e Trump. Mas sei que têm poder em Brasília.

Sem Lula e sem Bolsonaro(s), por favor, meu Santo!

É o fim da minha vida

José Horta Manzano

O distinto leitor e a graciosa leitora hão de se lembrar da birra que Jair Bolsonaro tinha com a Folha de São Paulo. Birra? Que digo! Era ódio mesmo. Aconteceu mais de uma vez ele mandar expulsar jornalista(s) daquele veículo que ousassem estar presentes numa coletiva de imprensa.

Rei morto, rei posto. As coisas mudaram. Hoje, longe do poder, sem a caneta, sem mandato, sem imunidade, acuado pela justiça penal, Jair tem disfarçado a crista. Não digo que tenha perdido a soberba, mas, vez por outra, deixa de lado a pose de imbrochável (hoje recauchutado e amparado pela ciência) e veste a máscara de coitadinho.

Fez isso estes dias, ao aceitar ser entrevistado por uma jornalista (uma mulher!) da Folha. Com palavras humildes, respondeu às perguntas que lhe fez a moça. Como de costume, safou-se de toda culpa na trama em que é acusado. Não fez nada de errado, não cometeu nenhum deslize, não conspirou, não incentivou, não deu luz verde para nada, viajou para a Florida para não ter de passar a faixa, não sabe de nenhum crime, não invadiu palácio nenhum, não quebrou nada. E pergunta onde está a “prova” de um possível golpe.

Foi indagado sobre as consequências de uma eventual prisão, se isso poderia representar o fim de sua carreira política. A resposta veio de bate-pronto:


“É o fim da minha vida. Eu já estou com 70 anos!”


Eu, que já passei dos 70 faz uns bons anos, fiquei comovido. Me pus a imaginar a figura de um ancião confinado num cômodo de alguma vila militar, possivelmente na capital federal. Com armário, micro-ondas, minibar, tevê mural, banheiro exclusivo. Tudo isso e mais o escambau. Pode parecer o fino da hospedagem, mas não deixa de ser prisão, um lugar onde o hóspede fica confinado e não sai quando deseja.

Apesar da comoção, meu pensamento foi mais longe. Voltei cinco anos no tempo. Tornei a sentir o bafo de desespero que emanou do povo brasileiro naqueles dias de pandemia brava. Lembrei de gente carregando cilindros de oxigênio para acudir parentes morrendo de asfixia em hospitais, vítimas da inépcia do general que comandava o Ministério da Saúde (e que hoje é deputado federal!). Lembrei de um odioso Bolsonaro, que teve a ousadia de arremedar, diante de câmeras e microfones, os estertores da respiração ofegante dos moribundos.

Lembrei de muitas outras situações em que Bolsonaro se posicionou frontalmente contra os interesses vitais do povo brasileiro, que acabou contabilizando cifra assombrosa de mais de 700.000 mortos de covid-19.

Talvez, no futuro, a Ciência consiga estabelecer com certeza quantos óbitos devem ser debitados da conta do capitão, pelas ações tomadas e/ou decididas por ele no enfrentamento da pandemia. Hoje, mesmo não possuindo ainda essa fórmula, é lícito intuir que milhares, dezenas de milhares, quiçá centenas de milhares de mortes poderiam ter sido evitadas se o então presidente quisesse realmente, como ele afirma na entrevista, “o bem do meu país”.

Para Bolsonaro, alguns anos numa prisão de primeira classe serão “o fim da vida”. Isso porque ele já está com 70 anos.

Há milhares de brasileiros, ricos e pobres, bolsonaristas e lulistas, jovens e velhos, para os quais não haverá prisão. Nem de primeira nem de última classe. Estão mortos. Para eles, o “fim da vida” já foi. A covid, associada à pusilanimidade pérfida do presidente, não lhes deu tempo de chegar aos 70 anos. Nunca verão os futuros netinhos.

Bolsonaro, de todo modo, um dia sairá da cadeia e voltará ao convívio dos seus. Suas vítimas, ai delas, não voltarão nunca mais.

Liquidificador

José Horta Manzano

Sempre me surpreendeu o comprimento da palavra liquidificador. São seis sílabas: li-qui-di-fi-ca-dor. É muita letra pra designar um aparelho relativamente pequeno. Outras línguas encontraram saídas mais curtas. Nós, não. Preferimos escrever por extenso. Na época em que esse aparelho apareceu, algo como liqüex ou liqüinho talvez soasse um tanto chué pra dar nome a objeto tão revolucionário. Há de ser por isso que preferiram palavra de dobrar a esquina.

Falando nisso, tenho notado que nós, brasileiros, damos preferência a palavras longas em detrimento das mais curtas. Por exemplo, em vez do velho , o somente parece ser mais apreciado hoje em dia. O só está ficando só, abandonado num canto.

Um outro caso é o do antigo verbo pôr que, caído em desuso e quase em via de extinção, foi substituído por co-lo-car. Outro dia li a surpreendente história de uma jovem que, desertada pelo namorado, decidiu “colocar fogo” no apartamento dele. Fiquei imaginando a moça fantasiada de vestal romana subindo as escadarias do templo levando nos braços uma pira com o fogo sagrado para colocá-lo ao pé da estátua de Vulcano, o deus do fogo original. Isso, sim, seria “colocar fogo”. Fora isso, é melhor dizer ‘pôr foto em’, ‘atear fogo a’ ou, melhor ainda, ‘botar fogo em’. Sem falar no familiar ‘tacar fogo em’.

Outra palavra que espichou foi fim, atualmente substituída por final. Ninguém mais deseja um bom fim de semana, mas um excelente “final de semana”. Talvez a palavra mais comprida dê impressão de prolongar o tempo de descanso.

A simpática aeromoça de antigamente deu lugar à não menos simpática comissária de bordo ‒ título menos caseiro e mais pomposo, sem dúvida. E mais comprido também.

E a hora que virou horário então? A hora legal, ditada pela Divisão do Serviço da Hora, do Observatório Nacional, é hoje conhecida como horário: horário de verão, horário de Brasília. Este blogueiro é do tempo em que a palavra horário era reservada para indicar algo que ocorria em tempo ritmado, cadenciado, limitado como em horário de funcionamento, horário de trabalho, horário de saída dos ônibus.

E o problema, que se está transformando em problemática? Vejo aí contaminação vinda de palavras modernas como informática e telemática. Bom, convenhamos: problemática tem um charme e um perfume erudito que problema está longe de ter.

E assim vamos nós, sempre acrescentando penduricalhos, raramente podando, arcados sob o peso crescente. E vamos em frente, que um dia ainda chegamos lá.

Asilo em embaixada

José Horta Manzano

Bolsonaro já deixou entender que, a qualquer momento, com ou sem passaporte, pode pedir asilo numa embaixada em Brasília. Muitos analistas vão nesse sentido e dão crédito ao que diz o capitão. O grande Elio Gaspari já previu que Jair Messias não passará nem um dia atrás das grades porque vai se asilar. Minha visão é menos otimista. Acho importante fazer a diferença entre pedir e obter o tal asilo. Pedir qualquer um pode. Conseguir são outros quinhentos.

Se o distinto leitor acordar um dia disposto a se asilar numa embaixada chique, pode vestir terno de três peças, preparar pequena valise com o necessário para alguns dias e tocar a campainha do imóvel. Em seguida, pode escrever: terá 100% de probabilidade de receber resposta negativa. Não vão nem lhe permitir a entrada.

Bolsonaro imagina-se um ser superior à ralé que o circunda. Acredita que basta se apresentar pelo porteiro eletrônico que um tapete vermelho vai se desenrolar para sua entrada triunfal. Cada um acredita no que quer. Se eu fosse ele, não teria tanta certeza do roteiro.

Todos nos lembramos dos dois dias que ele passou dentro da embaixada da Hungria em fev° 2024. O episódio foi tão escondido que nenhum veículo da imprensa nacional tinha ficado sabendo. Quem revelou o enredo foi o jornal The New York Times, um mês depois – com fotos, que é pra ninguém duvidar.

Quanto a mim, entendi que os acontecimentos tinham sido revelados ao NYT pela própria embaixada a mando do governo húngaro. Valeram-se do jornal mais importante do mundo para deixar claro que o ex-presidente tinha penetrado na embaixada por sua própria conta, que não tinha havido nenhum conluio, que ele havia pedido asilo e que Budapeste havia negado. Bolsonaro já era página virada e a Hungria não tinha interesse em se indispor com o governo brasileiro.

Pois a mesma realidade continua valendo. Desde que o ex-presidente deixou o Planalto, o mundo virou a página Bolsonaro. Bola pra frente. Política se faz com a razão, não com o coração. Os países com embaixada em Brasília pretendem manter boas relações com o Estado brasileiro, sejam quem forem os governantes de turno.

Bolsonaro tornou-se um estorvo, uma batata quente que ninguém quer segurar, um mico do qual cada um quer se livrar. Assim que for julgado e condenado, caso ouse se enfiar em alguma representação estrangeira, ele periga ser incluído na lista dos foragidos da Interpol. Ninguém está disposto a carregar trambolho.

Trisal

José Horta Manzano

A criatividade do brasileiro já foi maior. No século passado, conceitos novos eram quase sempre traduzidos ou adaptados para nossa maneira de falar. O simples mixer deu liquidificador, incômoda palavra de seis sílabas que se enraizou na língua e não se foi. Já hoje, um air fryer se diz air fryer mesmo, cru e com casca. Ninguém se dá mais ao trabalho de traduzir nem de adaptar.

Hot dog, iguaria conhecida no mundo inteiro com o nome original, virou cachorro quente entre nós, numa tradução jocosa e genial. Sandwich, que guardou a grafia original por toda parte, se naturalizou como sanduíche em nossa terra. O mesmo aconteceu com as francesas maillot, embrayage e capot, que se tornaram respectivamente maiô, embreagem e capô.

Apesar da aparente preguiça que atinge os habitantes de uma Pindorama (que, acreditem, já foi morna e úmida e não escaldante como atualmente), por vezes uma centelha ilumina a penumbra e nos brinda com uma palavra nova. E original.

É o caso de trisal, que dá nome a uma curiosa composição conjugal que, na minha opinião, é fadada a ter vida curta. Falo da composição conjugal, não da palavra em si. A palavra pode até ser que continue em uso por décadas, mas não acredito que um trisal aguente décadas.

Trisal há de ser conceito recente, visto que meu dicionário Houaiss, que já soprou 23 velinhas, não abona esse termo. É palavra que tem seu charme, goste-se ou não. Imagino que seja produto nacional – pelo menos, nunca vi termo correspondente em outra língua. Como palavra de difícil tradução, entra para o mesmo balaio que saudade e conceitos de igual jaez.

Estes dias, o trisal, deixou o campo lúdico para sapatear no tablado da injúria. A ofensa pessoal gratuita é um vício feio e inútil que, incentivado pelo imediatismo da internet, foi plenamente adotado, não sei por que razão, pela turma da extrema direita. Parlamentares que, vivendo à custa de obesos salários pagos pelo povo, se autorizam criar, do nada, mensagens insultantes e mandá-las ao ar na esperança de “lacrar” não devem ser mantidos no cargo.

Tanto faz que sejam deste ou daquele partido, que se ajoelhem diante deste ou daquele líder, que professem este ou aquele credo. Tanto faz. De elementos assim, nosso Congresso não precisa. Estão ali ocupando uma poltrona que poderia ser confiada a um cidadão mais sério, de espírito menos adolescente. Lugar de gente assim é no boteco, não no Parlamento. Em casos mais graves, que sejam mandados para a Papuda.

A esta altura, percebo que não dei detalhes do caso. É que imaginei que meus espertos leitores já estivessem a par. Trata-se das estrepolias de um deputado de nome Gayer, apoiador do capitão Bolsonaro, afiliado ao PL. A história começou com a estupidez dita por um Lula que atualmente se debate num atoleiro de maionese. A fala de Luiz Inácio, sem ser uma ofensa pessoal, era de um machismo primitivo, não condizente com os dias atuais. O deputado Gayer aproveitou a deixa para descer alguns andares na graduação da baixaria. Sugeriu que se formasse um trisal entre dois parlamentares homens e a presidente do PT. E deu nome aos bois!

Talvez algum fanático seguidor tenha achado graça. Os componentes do trisal mencionados por Gayer não sorriram. Para azar do deputado ofensor, um dos personagens de sua fantasia é o presidente do Congresso, senador Alcolumbre. Furioso, este último prometeu denunciar o desbocado personagem ao Conselho de Ética com vistas à cassação do mandato de Gayer por quebra de decoro parlamentar.

Torço para que o procedimento chegue a bom porto e que o deputado seja cassado. Será bom como exemplo. Quem sabe, depois disso, os parlamentares pensarão duas vezes antes de discursar no plenário debaixo de uma peruca amarela, como fez outro dia um fiel acólito do capitão.

Inelegibilidade

José Horta Manzano

Estava lendo agora há pouco um relato n’O Globo sobre a possível extensão da inelegibilidade de Bolsonaro se, porventura, vier a ser condenado. Explica o texto que a inelegibilidade passa a contar do fim da execução da pena. Se, por exemplo, o ex-presidente viesse a receber a sentença máxima (43 anos), estaria inelegível por 50 anos.

Se essa é a lei atual, cumpre-se. Leis são feitas para serem cumpridas. Mas também são feitas para serem alteradas. Essa história de inelegibilidade temporária me intriga.

Ao condenar Bolsonaro a oito anos de privação do direito de ser eleito, pressupõe-se a expectativa de que, ao final do período de privação de eleição, o antigo presidente se tenha transformado, que sua personalidade volte despida de toda agressividade, que seu comportamento reapareça livre de intenções golpistas.

Ora, sabemos todos que não será assim. Pau que nasce torto não tem jeito, morre torto. Desde a juventude, quando tentou criar o caos no Exército por meio de explosivos, Jair Messias não mudou um milímetro. Assim como entrou na Presidência, saiu. Como é que alguém pode ter a ilusão de que ele se transformará após 8 anos de provação? Que acompanhamento psicológico foi previsto para ele durante esse período de abstinência de votos? Nenhum.

Logo, o período de inelegibilidade é apenas um castigo, uma punição, sem esperança de remissão dos pecados, ou seja, de regeneração da personalidade. Se assim for, parece-me medida inócua, que só protela a volta do malfeitor, carregado dos mesmos defeitos que lhe eram peculiares.

Por seu lado, se um indivíduo é condenado a não mais ter o direito de candidatar-se a cargo público, a mim parece que a pena deveria ser definitiva. Dado que o cidadão foi condenado por defeitos de sua própria personalidade, não faz sentido dar-lhe um castigo temporário. Ao final, voltará com os mesmos defeitos, se candidatará e, caso seja eleito, espalhará os mesmos problemas.

Em resumo, penso que a condenação à inelegibilidade deveria ser definitiva, sem possibilidade de volta atrás. Ou que, caso se acredite na possibilidade de “cura” do apenado, que se o obrigue a seguir os passos médicos ou psicológicos impostos pelo tribunal.

O teto da igreja

by Gilmar de Oliveira Fraga (1968-), desenhista gaúcho

José Horta Manzano

Parece que, no Brasil, a gente só toma consciência da degradação quando é tarde demais. O incêndio do Museu Nacional, alguns anos atrás, causou comoção na sociedade. Pouca gente sabia que aquele palácio, além de haver abrigado reis e rainhas, encerrava a maior parte da escassa memória nacional. Na fogueira daquela noite, só não se perdeu o que era de pedra, como o meteorito Bendegó, que despencou no céu baiano e lá foi encontrado no século 18. O resto ardeu, virou pó, não volta mais.

Dirão os cínicos: “Quem precisa daquelas velharias, se a IA pode reconstituir tudo, tim-tim por tim-tim?” É, pode-se comparar com o(a) namorado(a) que um dia se vai mas deixa uma foto. Ainda que o retrato seja um holograma em tamanho real, com a boca que se mexe e os braços que se abrem, será sempre uma imagem eletrônica, fria de temperatura e de calor humano. Por minha parte, dispenso a IA e fico com o original.

Aconteceu agora outra desgraça. Desta vez foi na Bahia e a vítima foi a Igreja de São Francisco de Assis, no Pelourinho, templo que também responde pela preciosa alcunha de Igreja de Ouro (ou Igreja do Ouro). Além de ser tombada pelo Iphan, foi eleita uma das Sete Maravilhas de Origem Portuguesa no Mundo, junto com outras 6 construções espetaculares espalhadas no mundo todo. Apesar dessas credenciais, parte da alvenaria do teto desabou semana passada. Deixou um morto e meia dúzia de feridos. A igreja continua de pé mas, como se vê, está literalmente caindo aos pedaços. Convém não protelar o início de uma reforma geral das estruturas.

Ao tomar conhecimento do desastre, Lula da Silva aproveitou o primeiro microfone que lhe ofereceram para se pronunciar sobre o assunto. Lamentou o ocorrido e disse que o problema é a facilidade com que se tombam edifícios sem se preocupar em saber se a cada tombamento corresponde uma dotação destinada à manutenção.

Sua Excelência tem razão. O bom senso recomenda que, a cada nova incumbência que se dá ao poder público para zelar por um edifício, deve corresponder a respectiva dotação financeira. É assim que, num mundo ideal, as coisas funcionam. No Brasil, infelizmente, muitas autoridades vivem num país de fantasia, como Alice do outro lado do espelho. Tomba-se o edifício, auferem-se os louros da vitória da boa causa. Mais tarde, é só quando o palácio queima por falta de sprinklers (chuveiros automáticos) ou o teto desaba por falta de manutenção que o mundo vai perceber que não havia verba. Tarde demais.

Lula da Silva tem razâo, mas faltou ir até o fim do raciocínio. O presidente não é um cidadão como os outros. Ele pode mais do que a maioria de nós. Só reclamar da falta de verba, podemos você e eu, mas ele tem de ir além. O bom discurso teria que apontar o problema e a solução.

Sua Excelência tinha de ter dito algo assim: “Amanhã vou encarregar meu ministro da Cultura de preparar um projeto de lei vinculando todo tombamento – municipal, estadual ou federal – à garantia de uma dotação para a respectiva manutenção. Sem verba, não se fará mais nenhum tombamento.”

Pronto, assim o discurso teria sido mais produtivo do que a simples reclamação estéril do cidadão desiludido. Teria mostrado que o bom presidente não foi eleito somente para se lamentar e chorar em público, mas também – e principalmente – para resolver problemas. Ele sempre pode mais que nós.

Coincidências

José Horta Manzano

Certas coincidências são dramáticas e inquietantes. Três dos acidentes aéreos com aparelhos de pequeno porte que mais assustaram e comoveram o país ultimamente aconteceram com o modelo King Air do fabricante americano Beechcraft.

19 janeiro 2017, Paraty (RJ)
Modelo King Air C90GT desapareceu dos radares sobre o mar de Paraty matando 5 ocupantes, entre eles Teori Zavascki, ministro do STF

5 novembro 2021, Caratinga (MG)
Modelo King Air C90A chocou-se contra um cabo de alta tensão e estatelou-se num terreno rochoso. Nenhum dos viajantes sobreviveu. Entre eles, estava a cantora Marília Mendonça.

7 fevereiro 2025, São Paulo (SP)
Modelo King Air F90, por motivos ainda não esclarecidos, precipitou-se numa avenida movimentada da cidade de São Paulo em horário de pico matando os dois ocupantes. Entre eles, estava o dono do aparelho, o advogado gaúcho Márcio Louzada Carpena.

O homem da continência

John Bolton

José Horta Manzano

Na manhã do dia 29 de novembro de 2018, já eleito mas ainda não empossado, Bolsonaro recebeu em sua casa do Rio de Janeiro um emissário do então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. O visitante era um senhor de cabelo e bigode brancos chamado John Bolton, assessor de Segurança Nacional nomeado por Trump.

Assim que Mr. Bolton apontou no portão do jardim, um entusiasmado capitão, empertigado na soleira da porta de casa, bateu continência ao visitante(!), aquela saudação que um militar deve obrigatoriamente fazer diante de outro militar de grau mais elevado que o seu.

O primeiro a se surpreender com o gesto deve ter sido o próprio americano, desacostumado a ver as regras militares tratadas com leviandade, mas a mídia brasileira tampouco deixou passar em branco. Os comentários foram de espanto com a atitude do novo presidente do Brasil que, assim, deixou clara sua postura de curvar-se diante dos EUA, representados ali pelo emissário. Pegou supermal.

Nem o suco de caixinha e o pão com leite condensado servidos naquele petit-déjeûner em honra ao hóspede tresnoitado foram capazes de atenuar a sombra de mal-estar que pairava no ambiente. Mr. Bolton entregou a Bolsonaro o convite que Donald Trump lhe fazia para visitar os Estados Unidos.

Os anos passaram, Trump perdeu a reeleição, Bolsonaro terminou seu governo calamitoso e também perdeu a reeleição. Agora, depois de quatro anos atravessando o deserto, Donald Trump conseguiu ser de novo eleito para a presidência. Nas 24 horas que se seguiram à tomada de posse, despejou um balde de decretos carregados de ressentimento, raiva, perseguições, intolerância. Desfez medidas que seu antecessor havia implementado. Atirou a torto e a direito.

Um dos projéteis atingiu John Bolton, seu antigo assessor de Segurança Nacional, aquele que havia sido homenageado com a continência de Bolsonaro. O homem aparentemente caiu em desgraça, não se sabe exatamente por que razão.

O que se sabe é o seguinte. Em 2021, o presidente Joe Biden tinha concedido a Mr. Bolton proteção permanente do Serviço Secreto em razão de ameaças de morte proferidas pela Guarda Revolucionária Islâmica do Irã. Pois ao voltar à presidência esta semana, Trump revogou a proteção policial permanente dada a Mr. Bolton. Supõe-se que tenha feito isso por capricho, só para desfazer o que Biden tinha feito. Veja em que mãos está o governo dos EUA!

Bem, Bolsonaro que se cuide. Assim como ele mesmo faz com seu costume de abandonar amigos e correligionários feridos pelo caminho, Trump leva jeito de fazer igual.

Trump aprecia ganhadores, vencedores, os que ele chama de “winners”. Um Bolsonaro no Planalto podia até interessar Trump, mas um Bolsonaro na rua da amargura, cheio de processos e ameaçado de cadeia, periga ser atirado ao mar para alegria de tubarões e camarões.

E o barco segue.

Tu não te manca?

by Laerte Coutinho (1951-), desenhista paulista
via Folha de S. Paulo

José Horta Manzano

Chega a ser irritante a insistência do ex-presidente Bolsonaro em fazer de conta que ainda é o que já deixou de ser. De fato, um indivíduo que foi apeado do poder há dois anos e que é hoje inelegível e indiciado em um balaio de crimes deixou de ser um cidadão comum, como a maioria de seus concidadãos. Ele é hoje uma pessoa suspeita de ter praticado crimes e tem, portanto, contas a prestar à justiça.

Você e eu não vivemos sob “medidas cautelares” impostas pela justiça do país. Não temos de bater o ponto na delegacia; não precisamos pedir licença para visitar quem nos dê na telha; não estamos de passaporte retido pelas autoridades, impedidos de pôr o pé fora do país. Bolsonaro não pode dizer o mesmo. Suas liberdades estão cerceadas. É um indivíduo a um passo da infâmia de tornar-se réu da justiça criminal.

Apesar disso, ele volta e meia dá uma de joão sem braço e manda seus advogados solicitarem ao STF favores aos quais não faz jus. Sua proeza mais recente foi pleitear lhe concedessem autorização especial para reaver o passaporte e partir para uns dias de vilegiatura em Washington (EUA). A-do-ra-ria prestigiar(?) os festejos da tomada de posse de Donald Trump como presidente do país. Se conseguisse tirar uma selfie ao lado do empossado, então, seria a glória, a consagração.

Ó Bolsonaro, tu não te manca não, cara? – é assim que a gente costumava arrematar uma ousadia desse calibre. É impressionante como certos caras se consideram importantes como se fossem figurinha carimbada, enquanto não passam de reles figurinha rasgada. Não ornam mais nem álbum de criança.

Por que, raios, a justiça concederia favores especiais a um sujeito que passou os quatro anos de seu mandato a invectivar as instituições da república, o Judiciário em particular?

Que ele curta o empossamento de seu amigo Donald pela tevê, como todo o mundo, sentado no sofá da sala. Que aproveite, porque, quando estiver em cana, talvez nem direito a televisão lhe concedam.