Allende e Queiroga

José Horta Manzano


A observação de Mário Quintana (1906-1994) nunca perde a atualidade: “A gente pensa uma coisa, escreve outra, o leitor entende outra, e a coisa propriamente dita desconfia que não foi dita”. Neste sábado encontrei dois bons exemplos.


Chamada Estadão, 22 jan° 2022

Primeiro exemplo
Esta chamada está bem enrolada. Fala da neta de Allende (presidente do Chile de 1970 a 1973) e diz que ela “sofreu golpe pela ditadura militar”, o que evidentemente não corresponde à realidade.

Quando o golpe ocorreu no Chile, em 11 de setembro de 1973, a netinha do presidente ainda não tinha completado dois aninhos. Na verdade, quem sofreu o golpe foi o avô, Salvador Allende, que, aliás, morreu no mesmo dia. Suicidou-se? Foi induzido ao suicídio? Foi assassinado? A esperança de saber a verdade se esvai à medida que os personagens vão desaparecendo.

Tem mais. Salvador Allende não sofreu golpe “pela ditadura militar”. A ditadura só se instalou após sua morte. Se, por hipótese, ele tivesse resistido e repelido o ataque, ele teria sofrido golpe, mas a ditadura não teria se instalado.

Consertando:

“Neta de Allende, o presidente deposto por golpe militar, será ministra da Defesa.”

Fica melhor.

Chamada Folha, 22 jan° 2022

Segundo exemplo
Para o leitor medianamente informado, que já ouviu falar de Queiroga e Damares mas que não sabe das circunstâncias das tais visitas (quem visitou quem, quando e por quê), a chamada do jornal soa misteriosa. Fica a ideia de que há relação entre a vacina aplicada na criança e a visita dos senhores ministros.

Precisei refletir pra entender o que o estagiário queria dizer. Suponho que era isto:

“Após as visitas de Queiroga e Damares, Saúde confirma que vacina não deu reação em criança”.

Assim, depois de inverter a frase, fica claro o que o autor queria dizer. Do jeito que estava escrito, parecia que os visitantes podiam até ter causado alguma reação na pobre criança vacinada.

São ministros de Bolsonaro, é verdade, mas prefiro acreditar que uma simples visita rápida deles não tenha o poder de empipocar bracinhos infantis.

Visto da China

José Horta Manzano

O inacreditável papelão cometido por doutor Bolsonaro ao declarar, alto e bom som, que não permitiria a compra da “vacina chinesa do Dória”(*) continua levantando ondas muito fortes.

Leio hoje um artigo postado na edição em linha (BR=online) do portal chinês Global Times. O título já dá uma indicação do estado de espírito: Brazil politicizes vaccines, may hurt ties with Beijing – Brazil politiza vacinas, o que pode prejudicar laços com Pequim”.

Entrevistado pelo jornal, o diretor do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Xangai declarou que o principal motivo que leva Bolsonaro a opor-se à vacina desenvolvida na China é o desejo de esmagar um concorrente potencial. Acrescentou que a recusa de Bolsonaro de aceitar a vacina serve também para alimentar sua malta de devotos.

Chamada Global Times, Pequim

Essa leitura não bate exatamente com a que fazemos nós no Brasil, vejam como são as coisas. A gente põe esse ruído todo na conta da falta de educação do presidente e de sua compulsão de abastecer a turba fanatizada. Não nos passa pela ideia que ele tenha, lá no fundo do bestunto, intenção de eliminar a concorrência chinesa. Primeiro, porque ele não nos parece capaz de um raciocínio tão complexo; segundo, porque não vemos de que modo uma grande indústria farmacêutica estrangeira poderia concorrer com o Brasil – afinal, tirando pérolas como Butantã e Fiocruz, todos os laboratórios que consideramos ‘nossos’ são estrangeiros.

Veja o perigo que umas palavras irrefletidas podem representar. Na sequência das desastradas palavras presidenciais, a China já está imaginando que o governo brasileiro teme a concorrência do gigante asiático e, pior ainda, que estamos tentando prejudicar o desenvolvimento do perigoso rival. Quanto mal-entendido! A cabecinha de doutor Bolsonaro é que não é suficientemente desenvolvida pra elaborar raciocínio arrematado como esse.

Mário Quintana disse: “A gente pensa uma coisa, escreve outra, o leitor entende outra, e a coisa propriamente dita desconfia que não foi dita”.

Parafraseando o poeta, podemos imaginar que: “O doutor pensa uma imbecilidade, escreve outra, os chineses entendem outra, e a imbecilidade propriamente dita desconfia que não foi dita”.

(*) Essas são as palavras elegantes de que o doutor se serve para se referir à vacina anticovid, desenvolvida pelo respeitado laboratório chinês Sinovac em colaboração com o Instituto Butantã de São Paulo.