Fim de ano, Lula e extrema direita

Hidra de Lerna
monstro de múltiplas cabeças da mitologia grega

José Horta Manzano

Artigo publicado no Correio Braziliense de 30 dezembro 2023

As pesquisas de opinião revelam um Lula da Silva que vai se segurando apesar de um tropeção aqui ou ali. Ao final de um ano de mandato, sua popularidade não parece ter sofrido desgaste significativo. Entre outras razões, estão duas especificidades.

Por um lado, o turbilhão de fatos políticos nacionais gira com tanta velocidade que as ocorrências não têm tempo de se fixarem na retina. Cada notícia empurra e apaga a anterior, só permitindo que dramas chocantes permaneçam no ar por algum tempo a mais. Por outro lado, Luiz Inácio já deu amplas provas de ser do gênero “político teflon”, aquele em quem manchas e desdouros não grudam, desaparecendo logo.

Até aqui, falamos do Brasil insular, um país cujos habitantes acreditam que, circundados por fronteiras herméticas, vivem isolados do mundo. Na vida real, não é assim. As aves que aqui gorjeiam, trinam por lá também. Frases que Lula costuma tirar do bolso do colete ao dar palpite sobre graves assuntos internacionais podem passar despercebidas ao público brasileiro, mas fazem as manchetes no exterior. E acabam nos prejudicando a todos.

A acolhida fidalga e despropositada que Luiz Inácio, ao tomar posse, ofereceu ao ditador da Venezuela pregou um susto nas chancelarias estrangeiras. Os conceitos fora de esquadro que ele declamou sobre a guerra na Ucrânia e o conflito na Palestina fizeram murchar sorrisos em velhos admiradores estrangeiros. O anúncio, feito durante a recente COP de Dubai, do ingresso do Brasil na Opep+ mostrou que a extravagância de Lula é irrefreável, podendo confinar com a incongruência.

Ao final deste primeiro ano de governo Lula 3, numerosos líderes estrangeiros que muito esperavam dele tornaram-se desconfiados e precavidos. O troco já começou a chegar. Veja-se a maneira nada sutil com que Emmanuel Macron torpedeou o acordo UE-Mercosul. Vai longe o tempo em que o francês se deixava filmar exclamando “Lula, mon ami!”. A fraterna amizade parece não ter resistido aos percalços do primeiro ano de mando lulista.

Talvez por estar ressabiado, Lula abdicou de se expor em duas recentes ocasiões. Primeiro, ao declinar de saudar o ucraniano Zelenski no aeroporto de Brasília, quando este fez escala técnica a caminho de Buenos Aires para a posse de Milei. Segundo, ao recusar-se a viajar até a ilha caribenha em que os presidentes da Venezuela e da Guiana bambeavam entre guerra e paz.

Visto do exterior, Luiz Inácio termina o ano menor do que começou. É pena, mas é constatação inescapável: o Brasil entra em novo período de refluxo, enquanto o mundo lá fora continua a girar. Esse nosso negacionismo oficial é difícil de explicar.

Dez dias atrás, a Assembleia-Geral da ONU pôs em votação uma resolução condenando a violação de direitos humanos na Ucrânia invadida. A Europa inteira (até a Hungria!) aprovou. Nossos vizinhos Uruguai, Chile e Argentina também. O Brasil se absteve, preferindo fazer companhia ao Iraque, ao Vietnã, à Indonésia, à Etiópia e a outros recalcitrantes. O Itamaraty não se dá conta de que, quando o sofrimento humano está em jogo, seja onde for, a politicagem tem de se curvar e dar passagem à empatia. É doloroso constatar que um governo que se diz progressista cede a ideologias mortas e enterradas, e passa por cima de valores essenciais do humanismo.

Daqui a uma semana, o triste 8 de janeiro de 2023 completará um ano. Alguns veem nessa data o ato final da ópera, com a morte simbólica dos protagonistas. Antes fosse, mas é bom não facilitar. A hidra extremista tem múltiplas cabeças, cada uma representando um público diferente. Libertários, evangélicos, “anticomunistas”, sebastianistas, ultraegoístas, novos-ricos, racistas – cada um deles está associado a uma das cabeças. Embora se desconheçam entre si, esses grupos contribuem, quiçá sem se dar conta, para a perpetuação do extremismo. A existência de tantos ramos disparates explica a resiliência da direita extrema que, em nosso país, é nutrida por um em cada quatro eleitores.

Portanto, olho! Não é hora de baixar a guarda. Se nossa política externa declina, continuemos vigilantes ao que fermenta dentro de nossas fronteiras, que a hidra, embora sonolenta, continua viva.

Feliz ano novo a todos!

Quer enganar quem?

São Jorge
padroeiro da Inglaterra, da Geórgia, de Veneza, de Barcelona

José Horta Manzano

Os cidadãos que aderem a uma comunidade neopentecostal são bem-intencionados. Costumo compará-los aos cristãos de dois milênios atrás, que, correndo risco de vida, seguiam os apóstolos e os profetas da nova fé.

Os primeiros cristãos não eram iluminados. Eram pessoas desgostosas da devassidão nos usos e costumes da época, que procuravam um caminho puro para a salvação da própria alma.

Essa fuga da depravação tem sido o motor de cisões, tanto no seio do cristianismo como em outras religiões. A Reforma – o grande cisma do cristianismo do século 16 – é bom exemplo.

Voltemos a nossos neopentecostais, mais conhecidos como evangélicos. As insistentes acusações de enriquecimento ilícito feitas a alguns bispos e apóstolos menos escrupulosos não devem ser estendidas aos fiéis. A cupidez de um autossagrado bispo não implica forçosamente a culpabilidade do rebanho. Além disso, tenho certeza de que nem todos os chefes são encharcados de avidez ou de cobiça.

Se os evangélicos aderiram em peso a Bolsonaro em 2018, foi justamente porque ele encarnava o herói puro e disposto a combater o bacanal em que se haviam transformado os altos círculos da República. Era um São Jorge descido dos céus, com lança e cavalo, pronto a aniquilar o mal, restaurar o bem e repor o país de volta nos trilhos. Em peso, votaram no capitão.

Pouco inteligente, o atual presidente acreditou (e, ao que parece, continua a acreditar) que uma imersão no Rio Jordão, uma genuflexão diante de um bispo evangélico e uma visita a um e outro templo bastassem para satisfazer a clientela neopentecostal. Incapaz de lidar com os conceitos de aparência e de realidade, o capitão não se dá conta de que seu comportamento não condiz com a simpatia que diz ter pela fé e pelos ideais do eleitorado evangélico.

Passear de jetski e dançar funk cercado de mulheres em trajes menores enquanto infelizes baianos e mineiros eram castigados por mortíferas enchentes foi atitude escandalosa para os brasileiros. Para o contingente de evangélicos que ainda conservavam um restinho de crença no ‘São Jorge’ caipira, foi ultrajante.

A torrente de palavrões que jorra da boca do presidente a qualquer tempo e em qualquer ocasião é ofensiva para ouvidos comuns. Para ouvidos evangélicos, há de ser nefanda, insuportável, abominável.

Não é surpreendente que cada nova pesquisa mostre a erosão da popularidade do capitão no segmento que um dia aderiu em peso a sua candidatura.

Os neopentecostais não são um bloco de parvos que nada escuta e nada enxerga além da palavra do pastor. Longe de serem extraterrestres, são gente normal, que leva vida normal, que age normalmente. Dormem, acordam, comem, trabalham, conversam, se deslocam, viajam, se informam como todos os demais.

Têm uma visão mais rigorosa do que deve ser o comportamento do homem na sociedade – e é aí que a porca torce o rabo. O comportamento do capitão está a anos-luz da fé que ele diz professar. Uma coisa não bate com a outra; e a dissonância é tão flagrante, que não escapa a ninguém.

A conclusão, não é difícil tirar. Três longos anos de Bolsonaro no topo da República nos ensinaram que o personagem é assim, não mudou até hoje, não mudará nunca. Será sempre boca-suja (muito suja!), mentiroso, não-confiável, vingativo, nepotista, ocioso. São defeitos que batem de frente com a fé evangélica. Fiel nenhum quer ter como dirigente máximo um indivíduo com defeitos de tal maneira contrários à sua doutrina.

A consequência é evidente. O capitão não engana mais ninguém. Para os que apostam na subversão, na violência e na anarquia, ele continua sendo o candidato ideal. Já o apoio dos evangélicos, atualmente em erosão, tende a se liquefazer.

Bolsonaro periga chegar à eleição com um balaio de votos ainda mais magro que hoje.

Intolerância religiosa

José Horta Manzano

Num rabicho de Carnaval, à falta de notícia mais importante, a imprensa dá conta da grita que se levantou na Câmara Federal contra os Gaviões da Fiel. Por meio de seus líderes, a bancada evangélica fez saber sua indignação com o tema escolhido por aquela escola para animar o desfile este ano. A letra, com alusões a Jesus e a Satanás, chocou. Não entendi bem o que foi que incomodou, se as referências feitas a Jesus ou as que foram feitas a Satanás. Quem sabe o que arranhou mesmo o pudor de suas excelências foi a convivência dos dois personagens no mesmo ritmo.

Talvez fosse importante recordar aos parlamentares ofendidos que a base da filosofia de toda igreja é exatamente a dualidade entre o bem o mal. Todas as religiões, seitas e outros movimentos espirituais se propõem a propagar a melhor receita para resolver o embate entre esses dois polos. Os Gaviões não inventaram a pólvora. O bem e o mal convivem na vida nossa de cada dia. Ver seus símbolos assim, confrontados, não deveria ser matéria pra chocar ninguém.

O episódio, que ainda pode dar pano pra mangas e gerar até processo, é comprovação eloquente de que vivemos uma época de diluição de valores. A Polícia de Costumes está nas ruas, tesoura em punho, censurando o que entende e principalmente o que não entende. Hoje em dia, dependendo da pinta do galã, um assobio pode ser enquadrado como assédio sexual. Sons de samba-enredo ecoam até no Congresso Nacional – e geram manifestação de iracundos deputados. É um mundo de ponta-cabeça. Não se conhece mais o valor de cada mercadoria. Banana está sendo comprada por preço de caviar.

Que saudades dos tempos em que Carnaval era apenas Carnaval. Que saudades dos tempos em que se dava a cada fato apenas a importância que tem. Ao acusar os foliões de “intolerância religiosa”, a bancada evangélica não se dá conta do papel ridículo. Estão a inverter conceitos. Os intolerantes são justamente os senhores deputados! Os carnavalescos podem ser tratados de levianos, de irreverentes, até de apóstatas, mas não de intolerantes. As acusações estão invertidas.

Saudades dos tempos em que se podia berrar Alá-la-ô sem que ninguém se sentisse incomodado. Saudades dos tempos em que uma marchinha podia explicar à moça casadoira que se havia enganado de endereço, e que seria melhor bater à porta de Santo Antônio. Saudades dos tempos em que irreverência carnavalesca ficava por isso mesmo, e tudo bem. Será que essa página despreocupada foi virada para sempre? Será que o Brasil ingênuo se transformou numa gigantesca seita?