Matriz e filial

Chamada Estadão, 28 maio 2022

José Horta Manzano

Não se pode dizer que quem escreveu a chamada do Estadão tenha escrito bobagem. Errado, não está. Mas está esquisito. Dizer que a Igreja Ortodoxa da Ucrânia era “afiliada” a Moscou soa estranho.

Deve-se evocar afiliação quando se fala de clube, de partido, de firma comercial. Uma igreja séria não tem “filiais”. Quando há uma relação hierárquica entre ramos da mesma organização eclesiástica, melhor será dizer que uma é subordinada à outra, ou que está assujeitada, ou ainda que vive sob tutela da principal. Ex:

“Igreja Ortodoxa da Ucrânia, subordinada ao patriarcado de Moscou…”
“Igreja Ortodoxa da Ucrânia, assujeitada ao patriarcado de Moscou…”
“Igreja Ortodoxa da Ucrânia, sob a tutela do patriarcado de Moscou…”

O termo “ruptura”, utilizado na chamada, não está errado. Mas existe uma palavra específica para a dissidência de um ramo com relação ao tronco. É cisma, substantivo masculino. Quem fez um pouquinho de História Geral talvez se lembre do grande Cisma do Oriente (do ano 1054), que dividiu o cristianismo em dois grandes ramos: o catolicismo e a ortodoxia.

A chamada do jornal contém mais uma imprecisão. Não é correto falar em “ruptura com a Rússia”. A ortodoxia ucraniana não é um Estado, portanto a afirmação não faz sentido. A Igreja Ortodoxa Ucraniana não rompe com a Rússia (país), mas com o patriarcado (ortodoxo) de Moscou.

Portanto, a chamada do jornal estará mais bem escrita assim:

Igreja Ortodoxa da Ucrânia, subordinada ao patriarcado de Moscou, anuncia cisma.

ou

Igreja Ortodoxa da Ucrânia, assujeitada [ao patriarcado] de Moscou, anuncia cisma.

Quer enganar quem?

São Jorge
padroeiro da Inglaterra, da Geórgia, de Veneza, de Barcelona

José Horta Manzano

Os cidadãos que aderem a uma comunidade neopentecostal são bem-intencionados. Costumo compará-los aos cristãos de dois milênios atrás, que, correndo risco de vida, seguiam os apóstolos e os profetas da nova fé.

Os primeiros cristãos não eram iluminados. Eram pessoas desgostosas da devassidão nos usos e costumes da época, que procuravam um caminho puro para a salvação da própria alma.

Essa fuga da depravação tem sido o motor de cisões, tanto no seio do cristianismo como em outras religiões. A Reforma – o grande cisma do cristianismo do século 16 – é bom exemplo.

Voltemos a nossos neopentecostais, mais conhecidos como evangélicos. As insistentes acusações de enriquecimento ilícito feitas a alguns bispos e apóstolos menos escrupulosos não devem ser estendidas aos fiéis. A cupidez de um autossagrado bispo não implica forçosamente a culpabilidade do rebanho. Além disso, tenho certeza de que nem todos os chefes são encharcados de avidez ou de cobiça.

Se os evangélicos aderiram em peso a Bolsonaro em 2018, foi justamente porque ele encarnava o herói puro e disposto a combater o bacanal em que se haviam transformado os altos círculos da República. Era um São Jorge descido dos céus, com lança e cavalo, pronto a aniquilar o mal, restaurar o bem e repor o país de volta nos trilhos. Em peso, votaram no capitão.

Pouco inteligente, o atual presidente acreditou (e, ao que parece, continua a acreditar) que uma imersão no Rio Jordão, uma genuflexão diante de um bispo evangélico e uma visita a um e outro templo bastassem para satisfazer a clientela neopentecostal. Incapaz de lidar com os conceitos de aparência e de realidade, o capitão não se dá conta de que seu comportamento não condiz com a simpatia que diz ter pela fé e pelos ideais do eleitorado evangélico.

Passear de jetski e dançar funk cercado de mulheres em trajes menores enquanto infelizes baianos e mineiros eram castigados por mortíferas enchentes foi atitude escandalosa para os brasileiros. Para o contingente de evangélicos que ainda conservavam um restinho de crença no ‘São Jorge’ caipira, foi ultrajante.

A torrente de palavrões que jorra da boca do presidente a qualquer tempo e em qualquer ocasião é ofensiva para ouvidos comuns. Para ouvidos evangélicos, há de ser nefanda, insuportável, abominável.

Não é surpreendente que cada nova pesquisa mostre a erosão da popularidade do capitão no segmento que um dia aderiu em peso a sua candidatura.

Os neopentecostais não são um bloco de parvos que nada escuta e nada enxerga além da palavra do pastor. Longe de serem extraterrestres, são gente normal, que leva vida normal, que age normalmente. Dormem, acordam, comem, trabalham, conversam, se deslocam, viajam, se informam como todos os demais.

Têm uma visão mais rigorosa do que deve ser o comportamento do homem na sociedade – e é aí que a porca torce o rabo. O comportamento do capitão está a anos-luz da fé que ele diz professar. Uma coisa não bate com a outra; e a dissonância é tão flagrante, que não escapa a ninguém.

A conclusão, não é difícil tirar. Três longos anos de Bolsonaro no topo da República nos ensinaram que o personagem é assim, não mudou até hoje, não mudará nunca. Será sempre boca-suja (muito suja!), mentiroso, não-confiável, vingativo, nepotista, ocioso. São defeitos que batem de frente com a fé evangélica. Fiel nenhum quer ter como dirigente máximo um indivíduo com defeitos de tal maneira contrários à sua doutrina.

A consequência é evidente. O capitão não engana mais ninguém. Para os que apostam na subversão, na violência e na anarquia, ele continua sendo o candidato ideal. Já o apoio dos evangélicos, atualmente em erosão, tende a se liquefazer.

Bolsonaro periga chegar à eleição com um balaio de votos ainda mais magro que hoje.

Elefantes, ursos e leões

by Sibylle Heusser (1974-), artista suíça

José Horta Manzano

Vestígio do Império Romano, a presença de animais no circo ainda perdura em muitos países ao redor do planeta. Dois milênios atrás, a graça do espetáculo era a entrega de cristãos às feras. Desde que a maioria da população adotou o cristianismo, a brincadeira perdeu a graça. O sofrimento hoje é infligido diretamente às feras, sem intermediários. E são os cristãos que se divertem.

No circo, os animais selvagens são obrigados a levar vida reclusa, a morar em cubículos enjaulados, a comer o que lhes dão (se lhes dão) e a desempenhar movimentos que vão contra sua natureza. É uma rotina de sofrimento que não condiz com os princípios deste terceiro milênio de civilização.

Na Europa, uma trintena de países já legislaram para acabar com esse anacronismo. Entre outros, Inglaterra, Holanda, Croácia, Bélgica, Itália, Sérvia e França proíbem ou restringem fortemente a presença de animais selvagens em circos. Nas Américas, diversos países pequenos já baniram esses espetáculos. Entre eles estão: Panamá, Peru, Honduras, Guatemala, Costa Rica, Bolívia e Paraguai.

No Brasil, a meu conhecimento, nada foi feito. Nosso processo civilizatório avança a passo lento. Estamos a meio caminho entre a Antiguidade Romana e a modernidade. Se ainda engatinhamos em matéria de direitos humanos, na questão de direitos dos animais estamos em plena Idade Média. Há de chegar também – quanto mais cedo melhor – o dia em que devolveremos essas feras à floresta, que é o ambiente de onde nunca deviam ter saído.

Mas antes disso temos urgência mais premente. Faz dois anos e meio, armou-se em Brasília um circo de horrores. No picadeiro, agita-se um bando de criaturas ferozes. São todas súditas voluntárias de um capitão-tratador. Exibem dentes pontiagudos, mas ideias truncadas. Vivem enjauladas dentro da própria mente apertada.

Temos de lutar pela liberação dessas pobres criaturas. A porta das jaulas tem de ser aberta para elas escaparem e retornarem à insignificância de onde nunca deviam ter saído. E que levem junto o capitão tratador. Visto o nível de selvageria de todos eles, encontrarão perfeito refúgio na floresta virgem. Se ainda tiver sobrado alguma depois que a boiada passou, naturalmente.

O Gueto

José Horta Manzano

Você sabia?

O que vou dizer em seguida periga não agradar a muita gente. Mas estou aqui pra dizer o que penso. Se quisesse apenas repetir palavras de ordem ditadas por hierarcas, entraria pra um partido político. Ainda prefiro usar a própria cabeça pra tirar minhas conclusões. Aconselho a almas sensíveis parar por aqui. Se continuarem a leitura deste post, será por vontade própria. Que não venham, depois, reclamar.

Não se escandalize o distinto leitor, mas enxergo as religiões cristã e hebraica como ramos de um mesmo e único tronco. O tempo e a história se encarregaram de afastar as duas vertentes, mas pouco importa: as raízes são exatamente as mesmas. Esse é um fato que não se poderá modificar. Antes de se tornar religião de características próprias, o cristianismo foi uma dissidência do judaísmo. Uma prova? Pois os escritos que os cristãos chamam Velho Testamento são os mesmos que os judeus adotam. Outra prova? Jesus nasceu, cresceu e se formou em comunidade judaica ‒ portanto, carregava necessariamente ideias e valores inerentes ao meio em que circulava.

Vicissitudes seculares se encarregaram de apartar os dois ramos a ponto de os fazer parecer antagônicos, inimigos até. Em número de adeptos, a vertente cristã logo superou a dos judeus tradicionais. O sentimento mútuo de hostilidade só fez crescer durante a Idade Média. Os cristãos, amplamente majoritários na Europa, tomaram-se de antipatia pelos hebreus a ponto de os perseguir, agredir e combater. Em múltiplas ocasiões, estes últimos foram obrigados a abandonar a terra natal para refugiar-se em plagas menos adversas.

Grosso modo, entre 1450 e 1650, a República de Veneza viveu seu período de maior esplendor. Trocas comerciais com outros portos do Mediterrâneo trouxeram fortuna à cidade e fizeram que seus habitantes lançassem olhar menos tacanho a forasteiros. Ainda que não se possa dizer que Veneza abrisse os braços a estrangeiros, acolhia-os com menos desconfiança do que outras cidades importantes da época.

Nos anos 1500, judeus perseguidos acorreram de diversos pontos da Europa. Vinham do norte do continente, da orla mediterrânea, da própria Itália. Quando a quantidade de novos habitantes começou a incomodar os antigos, as autoridades decidiram confinar os hebreus num ponto preciso da cidade. Era um quadrilátero bem delimitado, de onde não podiam sair sem autorização. Especialmente à noite, eram obrigados a permanecer dentro do perímetro.

O lugar que lhes foi atribuído tinha acolhido, muitos anos antes, uma dúzia de oficinas de fundição de bronze. Era ali que se fabricavam os canhões para equipar a marinha de guerra da República. Em italiano moderno, o ato de entornar o metal em fusão no molde se diz «il getto». Em dialeto veneziano, a pronúncia e a grafia variam entre «el geto» e «el gheto», pronunciadas respectivamente «el djeto» e «el gueto». Era justamente o nome daquele lugar mal-amado, meio pantanoso, onde ninguém queria morar.

Campo de Gheto Novo, Veneza

Com o passar dos séculos, a importância da República de Veneza declinou. A invasão napoleônica deu o golpe de misericórdia. Os hebreus chegados em 1500 e 1600 acabaram se dispersando pelo resto da cidade. Foi abolida a obrigação de viverem confinados no gueto. Hoje em dia, o turista que decidir visitar o lugar vai encontrar comércios e restaurantes de propriedade de judeus, embora praticamente nenhum deles seja remanescente dos antigos habitantes. São gente que se instalou recentemente.

Aos venezianos, cujo dialeto difundiu pelo mundo poucas palavras ‒ entre as quais arsenal e gôndola ‒ cabe o ingrato privilégio de ter dado nome a um dos grandes símbolos de segregação e de discriminação.

Pagando o pato

José Horta Manzano

O folclore político nacional tem engordado com novos figurantes. O pixuleco e o pato são as imagens mais recentes. A presença do pixuleco, todos entendem: simboliza o corruptor-mor. Já o pato representa o cidadão que acaba pagando a conta da capetagem de seus governantes.

Mas por que ter escolhido um pato? Faz alusão à expressão «pagar o pato». E qual é a origem dessa curiosa frase? Há quem conte alguma tortuosa história de um pato que teria servido como moeda de troca numa hipotética negociação. Parece que o caminho não é esse.

É interessante notar que, na roupagem castelhana «pagar el pato», a expressão é corrente também na Espanha. A explicação que os espanhóis dão sobre a origem dela é mais convincente. Tem a ver com a expulsão dos judeus, determinada em 1492 por Fernando de Aragão e Isabel de Castela.

Pato 1Naquela época, duas opções foram dadas aos israelitas: ou se convertiam ao cristianismo, ou deixavam o país. Muitos se foram, outros preferiram se converter e ficar. Entre os que permaneceram e se converteram, alguns conservaram a antiga fé. Em público, agiam como cristãos, mas na intimidade familiar, mantiveram ritos e práticas da antiga religião.

Volta e meia, uma ou outra família acabava desmascarada por um vizinho ou por um curioso. Nessas horas, antes de os denunciar à Inquisição, o bisbilhoteiro costumava chantagear os infelizes. Para escapar do tribunal, da tortura e da fogueira, os contraventores preferiam pagar o montante que o denunciante lhes exigia.

Pagavam por não ter abandonado o «pacto com Deus», ao qual os judeus aderem desde os tempos bíblicos. A linguagem popular se encarregou de deturpar a expressão. De «pagar o pacto», transformou-se em «pagar o pato».

Pato 2Etimologia
Em muitas línguas europeias, o nome do simpático palmípede deriva de antiquíssima raiz sânscrita que deu em latim=anas/anatem; em italiano=anatra; em alemão=Ente; em catalão=ànec; em lituano=antis.

Nas línguas ibéricas, a influência árabe se impôs. Tanto em espanhol quanto em português, dizemos pato, derivação do persa bat através do árabe clássico baṭṭ e do árabe hispânico páṭṭ.

Mal-entendido episcopal

José Horta Manzano

Hoje aponto mais uma curiosidade na série erros de compreensão. Já falamos do avental inglês, do surrender, do Corinthians, da cidade do Porto. Vamos entrar na igreja.

MitraEntre os antigos gregos, inspetores e superintendentes eram chamados de ἐπίσκοπος (epískopos). O nome não fazia distinção entre sacros e profanos. Todo controlador tinha direito à apelação. O termo é composto de epi (sobre) + skopeo (vigiar, tomar conta). Os romanos sugaram a palavra e a incorporaram a seu léxico sob a forma latinizada epĭscŏpus.

Com o advento do cristianismo, a palavra especializou-se. Passou a designar o chefe de uma comunidade de fiéis, aquele que ocupava posição mais elevada em relação aos demais. Na Igreja Católica, o termo qualifica hoje o prelado que, sucessor dos apóstolos primitivos, oficia sob a autoridade do papa e tem o encargo de zelar pelas paróquias de sua jurisdição.

Em domínios franceses, a erosão natural transformou o primitivo epĭscŏpus no moderno évêque. Em terras hispânicas, o termo evoluiu dentro das leis linguísticas: deu obispo.

Bartolomé Esteban Murillo (1617-1682) Artista espanhol

Bartolomé Esteban Murillo (1617-1682)
Artista espanhol

A última flor do Lácio dá, neste caso, prova de que realmente estava no fim da fila. Há de ter recebido a nova palavra por via castelhana. Em princípio, o obispo espanhol deveria ter permanecido tal e qual em português. Mas não foi assim. Por que será?

Mitra 3Aconteceu uma colisão. Na Europa medieval, com exceção dos eclesiásticos e de um ou outro nobre, o povão era iletrado. Aos lusos, a palavra castelhana obispo soou como se «o bispo» fosse. E assim ficou. O “o” inicial, entendido como artigo, foi eliminado.

A forma original sobrevive em cultismos introduzidos em português tardiamente: episcopal, episcopado. Entre os cristãos dos primeiros tempos, dizia-se episcopisa de mulheres que exerciam certas funções sacerdotais. Modernas seitas neopentecostais, por razões que lhes são próprias, preferem a curiosa variante «bispa».

E quem não gostar que vá reclamar com o bispo.

Crença

Fábio Porchat (*)

Religião 1Atendente
Boa tarde, posso ajudar?

Cliente
Eu tava querendo uma religião.

Atendente
Ah, bem legal. Tá procurando alguma coisa específica?

Cliente
Não, é mais pra distrair mesmo.

Atendente
Bom, se é para distrair, a gente vai ter uma religião católica aqui que pode ser bem interessante.

Cliente
Será? Não sei. Tô achando meio batida.

Atendente
Bom, a mais da moda é o islamismo mesmo.

Cliente
Mas daí é muito empenho, eu queria uma coisa mais pra usar em casa, uma coisa mais levezinha.

Religião 2Atendente
Temos o budismo que é bem em conta e tá saindo muito.

Cliente
É uma, hein?

Atendente
É bem relaxante essa.

Cliente
Essa aqui é qual?

Atendente
Essa é a cientologia.

Cliente
Como é que é essa aí?

Atendente
Ah, o espiritismo. Hoje o espiritismo está na promoção, tá? E se você quiser levar um espiritismo, paga apenas 50% em qualquer umbanda dessas daqui. Candomblé também.

Cliente
Aceita cartão?

Atendente
Todas as bandeiras. A evangélica é que tem muita gente usando. Mas daí custa um pouco mais caro.

Cliente
E o judaísmo, hein?

Atendente
Tem que pedir no estoque e ver se eles autorizam.

Cliente
Tá.

Atendente
Se quiser uma coisa um pouco mais radical temos uma mórmon aqui que pode ser a sua pedida. Até a Testemunha de Jeová também é uma opção…

Cliente
Não sei, acho que eu vou dar mais uma olhada.

Religião 3Atendente
Se você quiser, a gente pode aqui preparar uma mistura pra você com um pouquinho de tudo. Funciona bem também. O brasileiro adora. É um pacotão completo: Você passa a acreditar em Deus, acha que vai pro céu, mas também acende uma velinha, vê espírito, medita, pula sete ondinhas e lê a Bíblia.

Cliente
Ah, gostei dessa.

Atendente
Todo mundo gosta.

Cliente
Mas coloca aí nesse pacote as 70 virgens.

Atendente
Quer que embrulhe?

Interligne 18h

(*) Fábio Porchat é empresário e figura da mídia. Crônica publicada no Estadão.