José Horta Manzano
Para um indivíduo jovem e ágil, é bastante fácil penetrar no compartimento onde se aloja o trem de aterrissagem de um avião. Precisa subir na roda, escalar a haste metálica como quem trepa num coqueiro, e saltar no compartimento. Após a decolagem, com a roda recolhida, ainda há espaço de sobra para uma pessoa.
Dizem que jovem é inconsciente, mas alguns são mais inconscientes que a média. As estatísticas informam que, nos últimos 75 anos, 128 desajuizados decidiram se esgueirar pela pista do aeroporto, subir num compartimento de trem de aterrissagem e tentar assim escapar de uma vida de miséria para recomeçar em algum Eldorado europeu ou norte-americano. Desse contingente de aventureiros, 75% morreram de queda ou congelamento. A taxa de insucesso desse tipo de empreitada é tremendamente elevada.
De vez em quando, ocorre um milagre. Foi o que aconteceu, estes dias, com um homem do qual não se sabe, até o momento, nem nome nem origem. Num avião cargueiro proveniente da África da Sul, funcionários do aeroporto de Amsterdam (Holanda) descobriram um corpo inanimado no poço onde se aloja o trem de aterrissagem. É bom lembrar que Johannesburgo fica a mais de 10h de voo.
A polícia foi acionada. Num primeiro exame, tiveram a impressão de que o homem não estava morto. Acionaram os bombeiros. Confirmado o diagnóstico, o infeliz foi transportado para um hospital em estado de profunda hipotermia. A temperatura do corpo estava bem abaixo dos 37°C regulamentares, mas o indivíduo ainda respirava. Bem lentamente, quase imperceptivelmente, mas respirava. Neste domingo, continua internado, ainda inconsciente. Por incrível que possa parecer, é possível que se recupere. Vai levar tempo e ninguém sabe quais serão as sequelas.
Especialistas ensinam que, além de enfrentar atmosfera rarefeita em voo, os clandestinos têm de lidar com temperaturas de 50°C abaixo de zero. Quase nenhum deles chega ao destino com vida. Mas há (raros) casos em que a descida rápida de temperatura externa provoca perda de consciência e entrada num estado de hibernação. A temperatura corpórea cai e todo o metabolismo entra em letargia – incluindo a respiração. Deve ter sido o que ocorreu com o homem que chegou a Amsterdam.
O caso do clandestino do voo Johannesburgo-Amsterdam (parece nome de filme) há de atrair a atenção de certos milionários que chegam a pagar fortunas para serem congelados após o falecimento, não sem antes deixarem instruções para que os despertem assim que for encontrada cura para a doença que os matou.
Nosso clandestino, imagino, deve ser moço jovem, com uma vida inteira pela frente. Em casos assim, até que pode valer a pena arriscar. É mais difícil entender os que pagam para que o próprio cadáver seja congelado. Em geral, são pessoas idosas – milionárias, sim, mas entradas em anos. Ainda que a cura do mal que as matou fosse encontrada e que elas pudessem ser reanimadas e trazidas de volta à vida, não voltariam jovens. Teriam sempre os mesmos anos e estariam sujeitas às doenças de todos os velhos, exatamente como os demais mortais. Será que vale mesmo a pena?
Vale o risco diante da iminência da morte.
Se ao despertar sobreviver e encontrar a cura para a doença estará no lucro. Inclusive o de vivenciar um tempo futuro cujos valores e progresso nos dias de hoje são inimagináveis, ao contrário dos que viveram, p.ex, nos séculos V ao XIV.
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Fico imaginando meu avô, que morreu em 1915, acordando hoje, um século e tanto depois. Depois de esfregar os olhos, viriam as surpresas.
Pra começar, não ia entender metade da língua atual. Ele, que tinha feito estudos, devia conhecer francês. Inglês, não tenho certeza. Com todos os anglicismos com que convivemos hoje, estaria certamente perdido. Sem falar nas palavras e expressões que faleceram e nas que surgiram. Cáspite!
Ele, que nasceu no império e já era adulto quando expulsaram o imperador; ele, que não conheceu rádio, nem televisão; ele, que nunca viu avião, que nunca falou ao telefone; como é que havia de entender o que é internet? E telefone celular?
Ele, que era de um tempo em que as pessoas se tratavam com civilidade, se cumprimentavam e se vestiam convenientemente, como é que havia de se sentir nesta selva em que vivemos mergulhados?
Ele, que, como bom “pater familias”, vivia rodeado dos numerosos filhos, primos, amigos, parentes e agregados, como é que havia de se sentir quando lhe contassem que todos já morreram há muito tempo. E que ele, se quiser, tem de se contentar em conversar por zap com os bisnetos. Se e quando estiverem dispostos a suportar conversa de ancião.
Não, caro Ricardo França, o choque seria tremendo, insuportável, desumano. É susto capaz de dar um enfarto fatal. E de levar o indivíduo de volta ao túmulo.
PS: Além do que, nosso capitão já confirmou que “todos têm que morrer mesmo, pô”.
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Apoio integralmente sua visão. Recomendo a seu leitor a leitura do livro Todos os Homens são Mortais, de Simone de Beauvoir. Um horror desesperador do começo ao fim. Os que conseguiram chegar ao final da trama passaram a ver a morte como uma benção.
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