O fim da República Corporativa?

José Horta Manzano

No anoitecer da atual legislatura, que se encerra no último dia do ano, a Câmara Federal deu um presente ao País: derrubou o inqualificável Decreto n° 8243(*), aquele que plantava a semente da República Corporativa do Brasil.

À vista da submissão que suas excelências têm demonstrado com relação ao Executivo, era pouca a esperança de que o famigerado ucasse presidencial fosse refugado pelos eleitos. No entanto, aconteceu. Por que será?

Há várias pistas. Uma delas – a mais evidente – é que o dispositivo amputaria um naco do poder do Congresso. Os «conselhos populares» autorizados pelo decreto se contraporiam àqueles que foram eleitos pelo sufrágio universal. Essa concorrência produziria efeito evidente: diminuiria a influência do Congresso e compensaria o peso dos deputados oposicionistas. Ninguém se alegra em ver escapar uma parte de sua autoridade – foi o que aconteceu com suas excelências.

“Marcia su Roma” com Mussolini e seguidores by Giacomo Balla (1871-1958), pintor italiano

“Marcia su Roma” com Mussolini e seguidores
by Giacomo Balla (1871-1958), pintor italiano

Outra possibilidade é o fato de boa fatia da Câmara estar-se despedindo. Falo daqueles que não se reelegeram. É possível que se tenham sentido livres para soltar o canto do cisne e exprimir, nem que fosse uma vez, sua convicção íntima e sincera.

No fundo, cada deputado votou segundo motivação pessoal, por razões que lhe são próprias. Melhor assim. O importante é que o decreto tenha sido rejeitado.

Não sei quem estaria por detrás dessa ideia anacrônica, que nos propunha um mergulho no universo fascista de cem anos atrás. O movimento capitaneado por Mussolini começou com a Marcha Sobre Roma, em 1922. Centralizador, criou uma república na qual corporações faziam as vezes de representantes do populacho. Todos sabem como terminou a aventura.

Desta vez, escapamos. Olho atento! Nunca se sabe o que pode vir por aí.

Interligne 18e

(*) Os distintos leitores que desejarem refrescar a memória e conhecer a integralidade do decreto de 23 mai 2014, ora derrubado, podem clicar aqui . Os nove «conselhos», «fóruns», «comissões» e «mesas de diálogo» estão explicadinhos tim-tim por tim-tim.

Debatendo amenidades à véspera do golpe

Fernão Lara Mesquita (*)

A reunião de Dilma Rousseff com “movimentos sociais” reconhecidamente sustentados por seu governo no Palácio do Planalto – para marcar para morrer a democracia no Brasil pelo mesmo gênero de falcatrua plebiscitária que a matou nos vizinhos “bolivarianos” que o PT aponta como modelos politicos – é o grande ausente não só do último debate como de toda esta eleição.

Coup d'etatComecei a sequência desta nota escrevendo que, em qualquer outro lugar do mundo, este seria o tema dominante da campanha. Mas logo me dei conta de que isso é absurdo. Em nenhum país civilizado seria tema de eleição propor aos eleitores a cassação de seus próprios representantes, justamente aqueles que foram eleitos como fonte exclusiva de legitimidade de qualquer ação política ou legislativa.

Isso contradiz o axioma e a essência do contrato social e, por conseguinte, do regime de democracia representativa. Significa a substituição de 140 milhões de eleitores por um punhado de organizações não governamentais – organizadas pelo governo e financiadas pelo partido que ora ocupa o poder.

Perto disso, toda a vasta crônica da corrupção da Era PT fica pequena. Mesmo assim, o absurdo kafkiano de pedir aos eleitores que se cassem a si mesmos não só é exequível entre nós, como, às vésperas da eleição, pôde transformar-se no Decreto n° 8243, assinado pela candidata da situação sem consultar os interessados.

Nem o Congresso Nacional, cujos poderes estão sendo usurpados, nem – acredite quem quiser que venha a ler este texto no futuro – os candidatos que disputaram a presidência da República esboçaram a menor reação. O assunto sequer chegou a ser mencionado ao longo de toda a campanha eleitoral.

(*) Este é excerto de artigo publicado pelo jornalista Fernão Lara Mesquita em seu blogue. Para ler na íntegra, clique aqui.

Democracia x oligarquia

José Horta Manzano

Initiative 1Já lhes contei, neste espaço, alguns aspectos do que os suíços chamam democracia direta. Na Confederação Helvética ― nome oficial do país ―, qualquer cidadão tem o direito de lançar o que no Brasil se chama PEC (Projeto de Emenda Constitucional). É direito inalienável, para usar expressão da moda. Na prática, a coisa se complica um pouco porque regras rigorosas têm de ser seguidas, sob pena de invalidar o processo.

Dado que um simples cidadão dificilmente disporia dos meios imprescindíveis para levar adiante o empreendimento, o mais das vezes as diligências ficam a cargo de um coletivo de cidadãos ou de um partido político.

A base do sistema é a iniciativa popular. Um grupo de pessoas ― ou um partido ― faz saber às autoridades que deseja que o povo seja consultado sobre a instauração de nova lei ou sobre a modificação de texto existente. A proposição é então analisada por juristas constitucionalistas e, caso não entre em colisão com a Constituição do país, a colheita de assinaturas será autorizada.

A partir desse momento, será concedido ao grupo organizador um certo número de meses para angariar um determinado número de assinaturas. Ao final, uma cerimônia é geralmente organizada. Ocorre em Berna, em frente ao Palácio Federal. Caixas de papelão contendo as folhas com nome, endereço e assinatura dos apoiadores são entregues a quem de direito. Essa papelada vai ser checada minuciosamente por especialistas. Se as exigências tiverem sido cumpridas (quantidade de assinaturas válidas coletadas dentro do prazo determinado), um voto popular terá de ser organizado.

Initiative 2O povo ― na Suíça chamado de «o soberano» ― votará. Se o resultado do voto popular for favorável, o projeto de emenda será oficializado. Entrará para a Constituição, seja como modificação de artigo existente ou como novo artigo. É processo demorado. Entre o registro da ideia junto às autoridades até a promulgação da nova lei, há que contar dois ou três anos.

No Brasil, após a imposição do Decreto n° 8243, o assunto da participação popular esporádica entrou na pauta das reflexões políticas. O modelo injungido aos brasileiros pelo ucasse presidencial está a léguas de distância da visão que se tem, na Suíça, de democracia direta. Na Confederação Helvética, todos os cidadãos são convidados a dar sua opinião através do voto.

Já o decreto de dona Dilma ― considerado anticonstitucional por muitos ― delega decisões importantes a um punhado de grandes eleitores capitaneados por uma pessoa só: o secretário-geral da presidência da República, homem «de confiança» do chefe do Executivo.

Αυτή δεν είναι η άμεση δημοκρατία. Αυτό είναι άμεση ολιγαρχία.
Isso não é democracia direta. É oligarquia direta.

Indigente

Interligne vertical 12Em seu blogue, o jornalista Fernão Lara Mesquita externou sua visão sobre um decreto publicado esta semana no Diário Oficial da União. A nova norma legal, de aspecto anódino mas de conteúdo tenebroso, assesta um golpe de graça na democracia brasileira. Se vingar, o caminho estará aberto e pavimentado para a implantação de um regime de corporações.

Dou-lhes abaixo amplos trechos do artigo do jornalista. Ao pé da página, vai o link para quem quiser ler o texto integral.

Democracia brasileira é enterrada como indigente
(Excertos)

Fernão Lara Mesquita (*)

A democracia brasileira morreu no dia 23 de maio próximo passado e quase ninguém percebeu.

Poderá eventualmente ressuscitar com tratamento de choque e injeções de adrenalina constitucional no coração que parou de bater, mas a decisão de aplicar ou não esse tratamento está, agora, nas mãos do doutor Ricardo Lewandowski e do que mais sobrou dentro do STF depois da saída do ministro Joaquim Barbosa.

Sem nenhuma «participação social» e sem perguntar nada a ninguém na sua solitária decisão, a presidente Dilma assinou naquela data o Decreto n° 8.243, publicado no Diário Oficial de 26 de maio. Institui a «Política Nacional de Participação Social». Determina que, doravante, «todos os órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta estejam obrigados a usar a participação social para a execução das suas políticas». Pedro Pontual, diretor de Participação Social da Secretaria-Geral da Presidência, explica que esse expediente vai «transformar os instrumentos criados para este fim em um método de governo, oficializando suas relações com os novos setores organizados e as redes sociais».

De ministérios a agências reguladoras, portanto, tudo estará de agora em diante submetido a esses «novos setores organizados». A «relação oficial» com eles se dará mediante convocações dirigidas aos nove conselhos que a augusta presidenta houve por bem criar. Suas rotinas de trabalho (não remunerado) e o método de escolha de seus integrantes serão definidos por meras portarias editadas pela Secretaria-Geral da Presidência da República, do ministro Gilberto Carvalho.

Pelo decreto de Sua Augusta Majestade, os nove “conselhos” serão os seguintes:

Interligne vertical 141) conselho de políticas públicas
2) comissão de políticas públicas (sic)
3) conferência nacional (sic)
4) ouvidoria pública federal
5) mesa de diálogo (sic)
6) fórum interconselhos (sic)
7) audiência pública
8) consulta pública
9) ambiente virtual de participação social

O decreto não explica o que será feito do Poder Legislativo eleito por todos nós para cumprir exatamente essa função, nem tampouco do Poder Judiciário e de seus órgãos auxiliares tais como tribunais de contas e agências setoriais. Mantida essa aberração como está, é fácil inferir.

A lógica da coisa, mesmo vazada na linguagem quase sempre incompreensível de dona Dilma e seus auxiliares, é absolutamente transparente e evidente. Se depender deles, ninguém reclamará o corpo: a democracia brasileira será enterrada como indigente.

(*) Fernão Lara Mesquita é jornalista. Edita o site http://vespeiro.com/

Link para o texto integral do jornalista
Link para o texto do Decreto n° 8243