Lula e os novos tempos

José Horta Manzano

Quando vejo a dexteridade de meus sobrinhos-netos ao lidarem com telefone celular e outros teclados ainda mais sofisticados, fico aliviado. Acho ótimo que essas modernidades tenham chegado agora, quando já não preciso mais delas. E desconfio que, mesmo mais jovem, eu não teria sido capaz de escrever mensagens num tecladinho de faz-de-conta, utilizando só a pontinha de dois dedos. Para os que, como eu, fizemos curso de dactylographia em mil novecentos e nada, escrever num celular é desafio. Ainda bem que escapei dessa.

Nos dias atuais, não seria possível aguentar o tranco de uma vida profissional sem utilizar telefones e outros instrumentos que todos usam. Para voltar à ativa, eu teria de me dobrar à evidência: é indispensável me atualizar. Só que eu não quero nem pretendo retormar o batente, portanto estou dispensado de reciclagem.

Mas tem gente que, após uma pausa de anos, decide voltar à ativa sem passar pela fase de reciclagem, porque acha muito chato ter de aprender. E vai em frente e mete as caras, crente que sua esperteza vai vencer todos os obstáculos.

Talvez o distinto leitor já se tenha dado conta de que estou pensando em nosso atual presidente, Lula da Silva.

Afastado dos negócios durante uma dúzia de anos – inclusive porque esteve preso –, Luiz Inácio quis porque quis voltar à Presidência. Dos oito anos que havia passado no cargo, só guardava lembranças felizes, de reis e rainhas, de honras e louvores, de mares de bonança singrados com sucesso. Tendo descido a rampa com 80% de popularidade, pareceu-lhe ter atingido o ponto máximo, lugar de onde não se desce mais até o fim da vida.

A realidade é mais cruel. Não é permitido a nenhum mortal conservar para sempre seu prestígio no patamar mais elevado. Se até os que morreram na glória são, com o passar dos anos, rebaixados, imagine os vivos.

O fato é que o tempo passou, novos ventos sopraram e aquela aura de demiurgo que Lula carregava se dissipou. E ele não percebeu. Ou achou que seu olho vivo daria conta de reinflar o que houvesse murchado.

Descurou a voz da experiência, que ensina o óbvio:


“Tem que reciclar, Lula! Não se opera telefone celular só com diploma de dactylographia! Tudo mudou no mundo. Toma cuidado, que tu não és mais esperto que a esperteza!”


E lá se foi o Lula, com demasiada confiança em si mesmo, achando-se capaz de dar daquelas piruetas que a idade já não lhe permitia. Estivesse, ainda, cercado de profissionais de qualidade superior a aconselhá-lo (e estivesse ele disposto a seguir os conselhos), a coisa ainda teria jeito. Mas Lula é orgulhoso e cabeçudo. Além de sua equipe nem sempre ser lá essas coisas, ele refuga os conselhos bons e acolhe os maus.

A imagem que o governo envia é um cenário todo feito de desencontros, de hesitações, de morde e assopra, de batalhas palacianas, de dois passos à frente e dois atrás. Adivinha-se um Lula com sinais inquietantes de ter perdido a mão. O que antes dava certo já não funciona, e ele não encontra a chave para resolver problemas novos. Tenta soluções antigas, que não dão cabo do enrosco.

Não sei se Luiz Inácio acha que está abafando, como nos velhos tempos, ou se já admitiu, para si mesmo, em seus pensamentos mais recônditos, que os truques e mágicas do passado já não funcionam e que ele perdeu o pé.

De um lado, temos um Bolsonaro inelegível e amedrontado, aflito para escapar da justiça; de outro, temos um Lula passivo, preocupado com picuinhas, distante dos grandes projetos do passado, mais reagindo do que agindo.

Nossa gerontocracia vem a galope, já aponta o nariz na esquina. E não vem sorridente.

Rádio Astral

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Um estranho fenômeno vem acontecendo comigo há já um bom tempo. Acordo todos os dias ao som de uma melodia qualquer e me pego tentando decifrar de onde ela vem: de fora ou de dentro? Isto é, estaria o som flutuando só na minha cabeça ou existiria alguma fonte externa identificável para ele?

Inicialmente, imaginei que as canções que eu “ouvia” teriam vazado durante a madrugada do apartamento de baixo, onde minha vizinha costuma organizar festas e encontros com amigos, sempre regados a muita conversa e cantorias animadas. Podia ser também que essa esquisita parada musical fosse proveniente do radinho de pilha do porteiro do condomínio, às voltas com a necessidade de afastar o tédio e o sono das madrugadas. Abria a janela, olhava para todos os lados procurando identificar de qual direção o som poderia estar vindo, mas sempre em vão. Nunca descobri nenhuma pista segura.

Aos poucos, fui entendendo que teria de procurar na minha mente os gatilhos para esse exótico desfile musical. Teria sido um sonho? Mas, se fosse, por que não havia na minha cabeça nenhuma lembrança, nenhuma imagem, nenhuma sensação, nenhum contexto emocional capaz de explicar satisfatoriamente a emergência da trilha musical? E, mais intrigante ainda, qual seria a mensagem que meu inconsciente estava tentando me mandar?

O que mais me impressionava nesse sentido era a imensa variedade de ritmos, estilos musicais e das épocas que ficaram marcadas por eles. Podia ser uma valsa, um tango ou bolero, uma modinha interiorana, um samba-canção do passado, uma dessas músicas-chiclete dos dias de hoje que não saem mais da sua cabeça por mais que você as rejeite, um ‘hit’ sertanejo ou de sofrência, funk ou reggae, música de Carnaval, Natal ou de festa junina, algo no estilo bossa nova, MPB ou de axé-music. Era como se eu estivesse rebobinando mentalmente a fita que continha a história da minha vida baseada apenas em seu fundo musical.

Ao longo do tempo, outras canções e estilos preferidos vieram se juntar aos do repertório popular brasileiro. Ainda deitada e de olhos fechados, eu tentava rememorar a letra de cada melodia e me emocionava com a capacidade de recuperar as emoções provocadas por antigas canções francesas e antigos sucessos das divas americanas do jazz, soul e blues que marcaram minha adolescência. Logo foram entrando em cena, sem pedir licença, também músicas folclóricas, hinos pátrios que eu era obrigada a cantar na escola e até hinos religiosos, que incluíam as músicas de procissão que minha mãe me forçava a acompanhar em criança.

O maior susto veio quando acordei um dia cantarolando a ária Nessun Dorma, trecho da ópera Turandot de Puccini. Nunca me interessei muito por música clássica e mal podia reconhecer as grandes obras da categoria e seus autores mais famosos. Também não conhecia a letra e não compreendia as expressões italianas. Corri para o computador e busquei freneticamente o libreto para tentar entender a história nele contada e os significados que eu poderia derivar para meu momento de vida atual. Apesar de tê-la considerado muito instigante, não fui capaz de compreender a ligação entre a tirânica princesa chinesa e a princesa adormecida que me habita, ambas ordenando que ninguém durma até que o segredo seja revelado.

Ontem, para meu igual espanto, acordei repetindo, mesmo sem saber por quê, os versos em latim de uma música com forte conteúdo patriótico que cantávamos na escola, durante o curso ginasial: Deus salva América de hostibus/Cuncta bona ei dona in malorum fluctibus/Nos rogantes et clamantes inter carmen discimus/Deus salva América, Amééricaa…

Mais uma vez, ‘dei um Google’ assim que me levantei para saber se minha memória havia sido capaz de preservar fielmente a letra original. Não a encontrei em nenhum site ou blog. Havia apenas referência ao fato de que essa música é considerada uma espécie de hino não-oficial dos Estados Unidos e que havia uma versão em inglês da letra, escrita por Irving Berlin em 1918.

Fiquei atônita. Jamais me ocorreria pensar que nossos professores de canto tivessem nos apresentado a uma canção patriótica estrangeira, sem se preocuparem em nos informar com clareza sobre sua origem. Ainda mais pasma, descobri que havia uma versão em português da mesma música escrita por João de Barro (e cantada por Francisco Alves) em 1945. Mas, me perguntava atordoada, se tivemos de decorar uma letra em latim, ela devia ser forçosamente muito anterior à versão americana – e, portanto, tratava-se de uma composição de autor desconhecido que havia sido apenas encampada pelos Estados Unidos, graças à mania de se considerarem única referência de América (e não o continente como um todo).

Preciso fazer um parêntesis para explicar de que forma a música moldou minha personalidade ao longo da vida. Quando criança, era forçada a ouvir quase que exclusivamente música instrumental, tocada por uma grande orquestra ou por um pianista famoso, que meu pai adorava. Admito que aquilo me entediava bastante. Sempre senti falta das palavras. Acompanhar – e ser capaz de entender – a mensagem contida na letra era minha grande paixão. Foi em nome dela que me interessei pelo aprendizado de línguas estrangeiras. Ao longo de minha adolescência e começo da vida adulta, passava horas a fio ouvindo o mesmo disco e anotando às pressas como podia as palavras que decifrava. Depois, com o auxílio do dicionário, ia juntando uma palavra a outra, até que as frases começassem a fazer sentido.

É inegável que a arte, em todas as suas formas, é a única ferramenta com que podemos contar para refletir em profundidade sobre a condição humana e transcender todas as limitações que ela impõe. A linguagem musical é universal no que tange às emoções que desperta. Não há fronteiras nacionais, credos religiosos ou políticos que possam interromper o fluxo associativo de pensamentos, sentimentos e estados de espírito que emergem diante de cada frase musical. Pensando nisso, resolvi deixar de lado tanto esforço para compreender o conteúdo emocional despertado pela melodia que me acorda a cada dia. Navegar com prazer e deixar-me levar sem o uso da razão pela forma delas passou a bastar-me.

Foi então que me ocorreu um insight. Se podemos simbolizar numa melodia todos os acontecimentos relevantes de cada fase de nossas vidas, qual seria a música-tema universal mais representativa deste dramático ano de 2020? E, mais especificamente, que fundo musical poderíamos atrelar iconicamente aos terríveis eventos pandêmicos, climáticos, econômicos, sociais e políticos brasileiros?

Façam suas apostas. A minha lista das canções concorrentes ao título já está pronta. Acredito piamente que o plano astral está nos convidando – nada gentilmente, diga-se de passagem – a nos despedirmos da vida no planeta Terra tal qual a conhecíamos até aqui, bem como a superarmos a era do ódio às diferenças para podermos adentrar finalmente novos tempos de reconciliação com a natureza ambiental, com a natureza humana e com a natureza espiritual. Quem sabe, relembrando ou compondo novas músicas sejamos capazes de elaborar novas utopias que nos guiem com segurança e harmoniosamente pelo fantástico universo apocalíptico do século 21.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Silêncio é poesia

José Horta Manzano

Logo que começaram a pipocar as mensagens de simpatia de líderes do mundo inteiro abalados com o incêndio de Notre-Dame de Paris, senti uma certa inquietação: que faria doutor Bolsonaro? Será que ia se calar fingindo que era poste? Será que ia mandar mensagem? E, se mandasse, que barbaridade perigava escrever no bilhete?

Aliviado, descubro que o pior não aconteceu. A mensagem do presidente foi sóbria, digna, exatamente como se espera de personagem equilibrado. Não estivesse assinada de próprio punho, eu nem acreditaria que tivesse sido escrita por ele mesmo.

Já Mr. Trump, ai, ai, ai. Que bordoada! O homem se permitiu dar conselho aos bombeiros de Paris, imagine só! Enquanto as chamas consumiam o edifício, sugeriu que fossem despachados aviões-cisterna, daqueles que se usam para combater incêndio florestal. E que despejassem toneladas d’água sobre a catedral.

Condescendentes, os bombeiros de Paris responderam delicadamente que não era uma boa ideia, pois o peso da água perigava destruir o que restava do monumento além de matar pedestres. Muito acertadamente, as normas proíbem o uso de aviões-cisterna em meio urbano. Desta vez, doutor Bolsonaro livrou-se do ridículo.

Em boca fechada não entra mosca, minha gente. Donald Trump calado é um trovador. Se subsiste uma duvidazinha quanto à autoria da mensagem de doutor Bolsonaro, não há que hesitar pra designar o autor do bilhete de Mr. Trump: é ele mesmo.

Quando o carteiro chegou ‒ bis

Texto publicado originalmente em 10 set° 2013

José Horta Manzano

ISAURINHA GARCIA
Lá pelo fim dos anos 70, talvez logo no comecinho dos 80, eu estava em São Paulo. Vi anunciado que a Isaurinha Garcia se apresentava por alguns dias num teatro. Nunca a tinha visto, mas sabia, de ouvir falar, que tinha sido uma moça muito bonita. Na minha família, os mais antigos apreciavam a cantora. Fui já predisposto.

Deu muita pena. Vi, sozinha no palco imenso, uma pequena criatura, maltratada pelo tempo e abalroada pela vida, aparentando bem mais que os cinquenta e poucos anos que tinha. Na plateia, meia dúzia de gatos pingados. Ficava a impressão de que aquela velha senhora não estava ali pela glória, mas para granjear alguns trocados.

Ela mais falou que cantou. Era muito gente, a Isaurinha, gente como a gente, desprovida desses ares de diva inatingível que algumas se dão. Sentou-se numa cadeirinha, num canto do palco, e contou um pouco da sua história, num relato simples como aqueles que se faziam antigamente à mesa da cozinha, na hora do chá da noite. Ou do café com leite, para as crianças.

Isaurinha Garcia

Isaurinha Garcia

CAETANO VELOSO
No ano de 1964, tive um professor de música, excelente profissional, já falecido. Não vou revelar seu nome ― vocês entenderão por quê.

Em 1965, vim para a Europa. Os mais velhos hão de se lembrar, mas aos mais jovens vou contar: mudar-se para a Europa, naquele tempo, equivalia a mudar-se para o planeta Marte. A distância ressentida era bem maior que hoje. Nem se pensava em telefonar, que custava uma fortuna. Não havia internétchi, nem feicibúqui, nem imêiu, nem tevê por satélite. Laços de amizade que não fossem sólidos partiam-se rapidamente.

Durante alguns anos, guardei contacto ― por carta, naturalmente ― com alguns dos amigos e conhecidos que havia deixado no Brasil. Passados dois, três anos, os liames foram-se esgarçando e sobrou somente a família.

Entre as pessoas com quem me correspondi no começo, estava justamente meu professor de música. A cena musical brasileira estava em plena efervescência, com gente do quilate de Elis Regina e Chico Buarque aparecendo. Festivais proliferavam. Foi uma época muito criativa. Meu amigo músico me mandou algumas partituras de artistas novos, que eu desconhecia. Entre eles, havia Roda Viva, composta por Chico Buarque. O impresso veio com uma anotação à mão: «Êste é dos bons!!!», com acento diferencial no êste, como se escrevia à época.

Uma partitura de Tropicália, de Caetano Veloso, veio também. Aquela trazia observação manuscrita menos airosa: «Êste, em minha opinião, é pilantra!!!». Como eu tinha grande admiração pela erudição de meu professor, achei que ele devia ter razão.

Não foi senão uns dez anos mais tarde que, de volta ao Brasil, pude conhecer mais a fundo a obra dos dois jovens artistas, Buarque e Veloso. Tenho de admitir que meu mestre não estava tão errado assim. O Chico era realmente «dos bons», enquanto o outro nunca me entusiasmou.

Quando o carteiro chegou

Quando o carteiro chegou

MENSAGEM (Quando o carteiro chegou)
Sempre achei ― e continuo achando ― que o melhor do Brasil não é seu povo, nem seu clima, nem suas belezas naturais, nem sua língua. O que mais me encanta em Pindorama é a música. Antes da internet, a cada viagem que fazia ao Brasil, eu trazia de volta uma boa quantidade de discos. Primeiro, foram aquelas bolachonas pretas de vinil. Depois, apareceram os cds, bem mais práticos e menos volumosos. Hoje em dia, não precisa mais. Meu rádio recebe o sinal por internet, o que me dá acesso a milhares de estações, da Mongólia à Patagônia.

Um dia, estava sintonizado na Rádio Nacional de Brasília. Faz tempo que não passo por lá de novo, nem sei se sobrevivem. Era emissora chapa-branca, daquelas que costumavam chamar a doutora presidente de presidenta. Tinham excelente programação, quase exclusivamente musical. Uma coisa compensa a outra. Lá pelas tantas, uma música me pareceu familiar. Não coincidia exatamente com o que eu tinha em memória, mas a parecença era indiscutível.

Não precisei pensar muito. Logo identifiquei que aquilo que estavam tocando era uma quase cópia do samba-canção Mensagem, composto pelos cariocas Cícero Nunes e Aldo Cabral e gravado por Isaura Garcia, na flor de seus 23 aninhos, em 1946. Esperei até o fim da cantoria do rádio. Queria saber que música era aquela e quem se apresentava como autor. No fim do bloco, o locutor informou: «Pé do meu samba, de autoria de Caetano Veloso, cantada por Mart’nália». Pra você ver.

Envelope... sem sobrescrito

Envelope… sem sobrescrito

PLÁGIO
Plágio? É difícil dar um veredicto definitivo. Apesar dos mais de 60 anos que separam as duas composições, a linha melódica e a harmonia, pelo menos nos primeiros compassos, é idêntica. É possível até que a velha Mensagem já tenha caído no domínio público deixando, assim, de ser protegida pela legislação sobre direito autoral.

Há atitudes que, embora lícitas, fogem à ética. O senhor Veloso, ao ressuscitar o velho samba-canção, poderia ter revelado a origem de sua inspiração, a parceria póstuma. Teria sido bem mais simpático e não faria mal a ninguém. Ademais, evitaria chocar os ouvidos dos que ainda se lembram «daquela do carteiro». Será que meu bom professor de música tinha razão?

Interligne 18c

Quem quiser comprovar a estonteante semelhança, que faça uma visitinha ao youtube, preste atenção e compare:

Mensagem
(a partir do ponto 0:10)

Pé do meu samba
(a partir do ponto 0:33)

Mensagens em garrafas

Ruy Castro (*)

Tenho reparado que alguns emails enviados por mim só têm sido respondidos dez dias depois. A desculpa é sempre a de que só então haviam sido abertos pelo destinatário. Não duvido. No mundo do WhatsApp, quem se preocupa em abrir emails? O fato de que, até outro dia, eles eram o principal veículo de comunicação entre humanos não quer dizer mais nada. Mandar um email para alguém parece-se hoje com o náufrago que atira ao mar uma garrafa com uma mensagem, rezando para que, um dia, com sorte, a garrafa seja encontrada e a mensagem, lida.

Da mesma forma, deixar uma mensagem gravada na secretária eletrônica de um celular equivale a falar para um anfiteatro vazio, mesmo que se esteja recitando a Odisseia, de Homero. Por algum motivo, as pessoas já não se dão ao trabalho de escutar mensagens em secretárias. Ao ler no visor o número de quem telefonou, preferem ligar de volta e perguntar o que você deseja. O contrário também vale: ninguém mais dá bola para as secretônicas. Há um mês, ganhei um aparelho com uma secretária. Mas, até agora, o número de mensagens deixadas nela ainda não chegou a dez.

Nenhuma tecnologia, por mais moderna, está a salvo. Todas terão o destino daquele que já foi o mais querido e importante elo entre pessoas distantes: a carta de correio. As pessoas ‒ eu, inclusive ‒ deixaram de escrevê-las. É pena: há certas mensagens que só ficam bem em cartas manuscritas, vide as de amor, de despedida e até as sórdidas e anônimas, entregando a sua mulher.

E não vou me referir àquele trissecular e heróico veículo a ser brevemente extinto: o telegrama. Dizem que, mais do que todos, ele ficou inútil. Será? Como conferir aos outros veículos a reconfortante sensação de urgência de um telegrama de parabéns ou de pêsames?

Acho que vou passar a imprimir meus emails, enfiá-los em garrafas e atirá-los ao mar.

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista. Seus artigos são publicados em numerosos veículos.

Quando o carteiro chegou

José Horta Manzano

ISAURINHA GARCIA
Lá pelo fim dos anos 70, talvez logo no comecinho dos 80, eu estava em São Paulo. Vi anunciado que a Isaurinha Garcia se apresentava por alguns dias num teatro. Nunca a tinha visto, mas sabia, de ouvir falar, que tinha sido uma moça muito bonita. Na minha família, os mais antigos apreciavam a cantora. Fui já predisposto.

Deu muita pena. Vi, sozinha no palco imenso, uma pequena criatura, maltratada pelo tempo, aparentando bem mais que os cinquenta e poucos anos que tinha. Na plateia, meia dúzia de gatos pingados. Ficava a impressão de que aquela velha senhora não estava ali pela glória, mas para granjear alguns trocados.

Ela mais falou que cantou. Era muito gente, a Isaurinha, gente como a gente, desprovida desses ares de diva inatingível que algumas se dão. Sentou-se numa cadeirinha, num canto do palco, e contou um pouco da sua história, num relato simples como aqueles que se faziam antigamente à mesa da cozinha, na hora do chá da noite. Ou do café com leite, para as crianças.

Isaurinha Garcia

Isaurinha Garcia

CAETANO VELOSO
Até o fim de 1964, tive um professor de música, excelente profissional. Não vou revelar seu nome ― vocês entenderão por quê.

Em 1965, vim para a Europa. Os mais velhos hão de se lembrar, mas aos mais jovens vou contar: mudar-se para a Europa, naquele tempo, equivalia a mudar-se para o planeta Marte hoje em dia. A distância ressentida era bem maior que hoje. Nem se pensava em telefonar, que custava uma fortuna. Não havia internétchi, nem feicibúqui, nem imêiu, nem tevê por satélite. Laços de amizade que não fossem sólidos partiam-se rapidamente.

Durante alguns anos, guardei contacto ― por carta, naturalmente ― com alguns dos amigos e conhecidos que havia deixado no Brasil. Passados dois, três anos, os liames foram-se esgarçando e sobrou somente a família.

Entre as pessoas com quem me correspondi no começo, estava justamente meu professor de música. A cena musical brasileira estava em plena efervescência, com gente do quilate de Elis Regina e Chico Buarque aparecendo. Festivais proliferavam. Foi uma época muito criativa. Meu amigo músico me mandou algumas partituras de artistas novos, que eu desconhecia. Entre eles, havia Roda Viva, composta por Chico Buarque. O impresso veio com uma anotação à mão: «Êste é dos bons!!!», com acento diferencial no êste, como se escrevia à época.

Uma partitura de Tropicália, de Caetano Veloso, veio também. Aquela trazia observação manuscrita menos airosa: «Êste, em minha opinião, é pilantra!!!». Como eu tinha grande admiração pela erudição de meu professor, achei que ele devia ter razão.

Não foi senão uns dez anos mais tarde que, de volta ao Brasil, pude conhecer mais a fundo a obra dos dois jovens artistas, Buarque e Veloso. Tenho de admitir que meu mestre não estava tão errado assim. O Chico era realmente «dos bons», enquanto o outro nunca me entusiasmou.

Quando o carteiro chegou

Quando o carteiro chegou

MENSAGEM (Quando o carteiro chegou)
Sempre achei ― e continuo achando ― que o melhor do Brasil não é seu povo, nem seu clima, nem suas belezas naturais, nem sua língua. O que mais me encanta em Pindorama é a música. Antes da internet, a cada viagem que fazia ao Brasil, eu trazia de volta uma boa quantidade de discos. Primeiro, foram aquelas bolachonas pretas de vinil. Depois, apareceram os cds, bem mais práticos e menos volumosos. Hoje em dia, não precisa mais. Meu rádio recebe o sinal por internet, o que me dá acesso a milhares de estações, desde a Mongólia até a Patagônia.

Outro dia estava sintonizado na Rádio Nacional de Brasília. É uma emissora chapa-branca, daquelas que chamam a presidente de presidenta. Mas tem uma excelente programação, quase exclusivamente musical. Uma coisa compensa a outra. Lá pelas tantas, uma música me pareceu familiar. Não coincidia exatamente com o que eu tinha em memória, mas a parecença era indiscutível.

Não precisei pensar muito. Logo identifiquei que aquilo que estavam tocando era uma quase cópia do samba-canção Mensagem, composto pelos cariocas Cícero Nunes e Aldo Cabral e gravado por Isaura Garcia, na flor de seus 23 aninhos, em 1946. Esperei até o fim da cantoria do rádio. Queria ficar sabendo que música era aquela e quem se apresentava como autor. No fim do bloco, o locutor informou: «Pé do meu samba, de autoria de Caetano Veloso, cantada por Mart’nália». Pra você ver.

Envelope... sem sobrescrito

Envelope… sem sobrescrito

PLÁGIO
Plágio? É difícil dar um veredicto definitivo. Apesar dos mais de 60 anos que separam as duas composições, a linha melódica e a harmonia, pelo menos nos primeiros compassos, é idêntica. É possível até que a velha Mensagem já tenha caído no domínio público deixando, assim, de ser protegida pela legislação sobre direito autoral.

Há atitudes que, embora lícitas, fogem à ética. O senhor Veloso, ao ressuscitar o velho samba-canção, poderia ter revelado a origem de sua inspiração, a parceria póstuma. Teria sido bem mais simpático e não faria mal a ninguém. Ademais, evitaria chocar os ouvidos dos que ainda se lembram «daquela do carteiro». Será que meu bom professor de música tinha razão?

Interligne 18c

Quem quiser comprovar a estonteante semelhança, que faça uma visitinha ao youtube, preste atenção e compare:

Mensagem
(a partir do ponto 0:10)

Pé do meu samba
(a partir do ponto 0:33)