Obrigado, doutor Bolsonaro!

José Horta Manzano

O ataque sofrido por doutor Bolsonaro fez uma vítima principal e uma secundária. A principal, de evidência, é o próprio candidato. Sofreu na carne as consequências da lâmina fria. Efeito colateral, no entanto, desabou pesado sobre Lula da Silva.

A estratégia de vitimização de nosso guia é tão antiga que ninguém sabe dizer ao certo quem teve a ideia. É possível que os pais da criança sejam os perversos marqueteiros, cujas criações tóxicas são ora conhecidas de todos. Pode ser também que o demiurgo tenha vestido espontaneamente essa fantasia, que, afinal, combina tão bem com seu conhecido sentimento de inferioridade e de revolta.

Seja como for, a roupagem de vítima imaginária empalideceu na comparação com uma vítima real. A inevitável compaixão despertada pelo atentado contra o candidato Bolsonaro fez sumir Lula da Silva do noticiário. Pela primeira vez em meses, ninguém deu atenção ao enésimo recurso impetrado pelo encarcerado de Curitiba. Recurso contra o que mesmo?

Tenho pena do candidato ferido. Não deve ser agradável estar nessa situação, condenado a um leito de hospital, com todas as dores e os inconvenientes que isso implica. No entanto, há que assinalar que o sacrifício dele nos valeu alguns dias sem Lula da Silva nas manchetes. Obrigado, doutor Bolsonaro!

Importante
Já disse e repito: não sou bolsonarista. O candidato ora hospitalizado não é meu favorito, portanto, não tenho intenção de lhe dar meu voto. Só o faria se, num eventual segundo turno, fosse a última barreira contra a ameaça de volta do lulopetismo, uma barbaridade.

Amigo é coisa para se guardar a sete chaves

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Amigo é aquele que…

Nem se dê ao trabalho de completar a frase, identificando as qualidades que você espera encontrar numa pessoa para fazer dela um amigo. Amigos não são escolhidos pela razão, não atendem a pré-requisitos. Eleitos pela alma, podem ser encontrados em diferentes formatos, tamanhos, cores e estilos. Não são fabricados em série, só podem ser confeccionados artesanalmente, cozidos em fogo brando e moldados de forma customizada. E, a cada vez que ganhamos um, novas surpresas e encantamentos nos esperam ao abrirmos a caixa.

Todos vêm com uma advertência clara já na própria embalagem: Atenção, este produto não contém promessa de concordância eterna e incondicional. Necessário explorar todas as características incorporadas de fábrica antes de julgar sua adequação. Não serão aceitos pedidos de devolução ou substituição por quebra caso fique comprovado que eventuais disfunções se deveram a mau uso.

Amizade não é resultado desejado. É um longo processo bilateral de ajuste, de um paciente aparar de arestas e de um corajoso desejo de contornar todos os obstáculos do caminho. Além da disposição de recomeçar sempre, é claro. A parte mais difícil de uma relação fraterna como essa é, sem sombra de dúvida, a que diz respeito à revisão e atualização das imagens um do outro. Muitas vezes nos prendemos nostalgicamente à configuração que a relação tinha em seu início, impedindo que ela floresça e frutifique como e quando quiser. Amizade é semente frágil que necessita de terreno anímico apropriado para prosperar e de muito sol de propósitos em comum para desabrochar em todo o esplendor de sua beleza.

Há uma canção de Jacques Brel que ilustra com perfeição o que quero dizer. Despedindo-se de um amigo que acabou de morrer, ele diz a certa altura: “On n´était pas du même bord mais on cherchait le même port”. De fato, para mim nunca foi preciso estar na mesma margem, o que sempre me importou foi o prazer de navegar e torcer para que os ventos nos empurrassem para o mesmo porto de destino.

Aviso aos navegantes: meu conceito pessoal de amizade é radicalmente diferente do comumente encontrado nas redes sociais hoje em dia. Não é uma categoria abrangente dentro da qual podem ser alocadas todas as pessoas que cruzaram meu caminho em algum momento. Talvez por falta de palavra melhor para designar uma relação que é mais do que simples coleguismo de escola ou de trabalho, concordamos em apresentar a pessoa como “amiga”. Pode ser um bom recurso para transmitir a ideia de que ela é de confiança, mas sempre faltará a essa descrição um elemento fundamental: o da intimidade testada e aprovada pelo tempo.

Também não é um conceito guarda-chuva que incorpore os assim chamados “seguidores”, seja lá o que isso quer dizer. Seguidor, para mim, é alguém que se submete à direção imposta por terceiros por não ter capacidade de se aventurar na criação das próprias trilhas. Para que uma amizade provoque prazer em ser degustada, é preciso que ela contenha um toque de rebeldia, de independência, de altivez, de autodeterminação.

Pensando bem, o único critério racional que considero essencial para qualificar uma pessoa como amiga é que ela seja portadora de irrestrita integridade. Que, na presença dela, eu possa também me mostrar por inteiro, sem temer nem a perda de afeto quando dos descaminhos, nem o tédio dos períodos de calmaria. Aprendi com a vida que uma verdadeira associação só pode ser conseguida por seres inteiros e separados que retêm sua separação mesmo em meio à união. Amizade é celebração contínua do dom da liberdade de espírito e dele se derivam todas as demais qualidades de caráter das duas partes.

Você pode estar se perguntando: por que essa defesa de tese tão apaixonada? Eu respondo com alegria: é que hoje é o dia do nascimento de um amigo querido. Mesmo acreditando que não existem amigos mais especiais do que outros, quero celebrar especialmente a existência e a constância dessa pessoa que vem iluminando minha vida com sua sabedoria há sete décadas. Que nunca se deixou desestimular por inúmeros contratempos nem se intimidar pelo distanciamento geográfico. Que tem a grandeza de perdoar e nunca se cansa de demonstrar compaixão.

Desculpe, Roberto Carlos, mas eu não quero ter um milhão de amigos. Como já dizia Aristóteles, ter muitos amigos é não ter nenhum. Esse amigo de quem vos falo é coisa fina, um artigo especial, raro ‒ e, por isso mesmo, precioso para mim.

Não se constranja, meu amigo, com tamanha efusividade. Em última instância, lembre que estou elogiando a mim mesma por ter sabido pinçá-lo em meio à multidão e por tê-lo conservado por tanto tempo bem perto do meu coração.

Obrigada pela longeva companhia. Que saibamos descortinar novos horizontes para nossa relação todos os dias.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Meu anjo

Anjo 1Myrthes Suplicy Vieira (*)

Conto sempre para as pessoas mais próximas – para as desconhecidas, não, porque não quero passar por louca – que sinto uma forte presença espiritual ao meu lado sempre que tenho de escrever. Na minha cabeça, trata-se de uma figura masculina poderosa, mas cheia de compaixão. Eu o chamo de “meu anjo”.

Não, ele não é um anjo da guarda comum, desses que se esfalfam por aí para salvar seus protegidos de atropelamentos, quedas, incêndios, bala perdida, etc. Ao contrário, ele já me colocou várias vezes no olho de furacões e em muitas saias justas. Não faz isso por maldade, já que é um ser do bem, mas porque gosta de me desafiar. Fica em pé às minhas costas, impávido e solene, esperando para ver se eu consigo contornar sozinha os obstáculos que enfrento no dia a dia e, quando jogo a toalha, entra em ação me acalmando, como se me dissesse “respira fundo e aprende como se faz”.

Anjo 5Ele atua na minha vida como consultor e conselheiro para assuntos linguísticos. Pode ser de ajuda num número incontável de situações, já que é articulado, culto, sábio, poliglota, versátil, dono de saber enciclopédico e está sempre de bom humor.

Ele não fala comigo. Apenas cochicha no meu ouvido as palavras que procuro em desespero quando tenho de redigir algum texto. Sugere termos coloquiais em outros idiomas quando estou às voltas com minhas traduções e quero impressionar. Alerta para as consequências negativas dos meus exageros, mas também me incita a não ter medo de optar por expressões provocativas. Já chegou a me soprar frases inteiras. Muitas vezes o ritmo de seus ditados é tão intenso que eu me sinto mergulhada numa atmosfera de psicografia – ou, melhor dizendo, de “psicodigitação”. Meu único trabalho é tentar copiar com a máxima rapidez possível as palavras que fluem como se estivéssemos conversando.

Anjo 2Não erra nunca. Certa vez, eu estava à beira de um ataque de nervos tentando passar para o inglês um texto muito complexo, fora da minha área de especialidade. Ele então cochichou no meu ouvido uma palavra que eu desconhecia. Aflita e sem tempo para conferir, digitei a palavra e concluí o trabalho. Mais tarde, ao revisar o texto, fui procurar no dicionário a palavra para ter certeza de que ela se encaixava bem na frase. Um arrepio frio percorreu minha coluna de alto a baixo quando constatei que era a palavra precisa, a mais adequada para transmitir com elegância a mensagem que eu queria.

Outra de suas especialidades é inspirar ideias e projetos sempre que minha criatividade está em baixa. Quando meu cérebro se agita para encontrar saídas para situações difíceis com que me deparo, uma lampadazinha se acende magicamente na minha cabeça. Corro para o computador e começo a digitar febrilmente uma série de lembretes – a respeito de autores, livros, conexões com outros temas, etc. – para investigar mais tarde, com calma. Depois, basta acionar um mecanismo de busca qualquer na rede mundial de computadores para encontrar as referências de que preciso ou investigar nos dicionários possíveis significados das palavras que elenquei ou as ilações que precisam ser mais bem compreendidas.

Anjo 4É nesses instantes que meu anjo entra na área de sua máxima ‘expertise’. Coloca no meu caminho uma série de pistas, assim como quem não quer nada. As pistas podem vir sob forma de uma conversa casual com um vizinho ou amigo, uma experiência na natureza, um comportamento inesperado de minhas cachorras, um livro que surge inesperadamente na minha frente, ou até uma reportagem na televisão.

Foi o que aconteceu ontem. Eu tinha ido dormir com uma sensação de impotência e incredulidade frente aos acontecimentos trágicos do dia. Acordei, porém, maravilhada e embalada por um discurso para lá de otimista de meu anjo. Suas palavras eram tão sábias e doces que me pareciam estrofes de um poema. Falava de esperança, incentivava a procurar novos ângulos de visão para atacar velhos problemas, instilava fé na capacidade de adaptação e superação que é típica do humano. Aconselhava a ir além das aparências e descobrir os sentimentos que estão por trás da realidade violenta de nossos dias.

Anjo 3A mensagem que julguei ter recebido e que me encheu de alegria foi, em resumo, a de que é chegado, enfim, o tempo da delicadeza. As reações exacerbadas de tudo e de todos à nossa volta nada mais são do que meros indicativos de que um ciclo se finda. Já não há mais espaço para dicotomias nem para o maniqueísmo. De agora em diante, seremos todos convidados a nos posicionar ao longo de um contínuo que vai do branco ao negro, do masculino ao feminino, da razão à emoção, da certeza à dúvida. Novas nuances de significados se abrirão diante de nossos olhos atônitos. Bem e mal se misturam e se diluem num oceano de possibilidades de aconchego e de tolerância.

Eu, que sempre fui tão catastrofista, mesmo a contragosto me deixo levar por essa delicada cantiga de despertar. Extasiada, ainda sentindo a onda de esperança evolucionária bater forte no meu peito, só consigo torcer para que outros anjos, ao passar por perto, a ouçam também e digam amém.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.