Desleixo

José Horta Manzano

Para os saudosistas, volta e meia a tevê francesa passa algum trecho de programa dos primórdios da televisão, programas dos anos 1950 ou 1960. As imagens são em preto e branco e não têm a nitidez das atuais, mas são retrato saboroso de uma época.

A construção da identidade de uma nação se faz a partir desse tipo de memória. Sem a imagem, ficamos na conjectura. Aprender com o passado, quando não há desenho, nem estampa, nem figura, fica complicado – especialmente para as jovens gerações, que nasceram num mundo de imagens.

França, Alemanha, Inglaterra, Suíça, Itália e os demais países da Europa ocidental têm todo o acervo de programas televisivos gravado e conservado desde que os primeiros aparelhos de videotape permitiram, lá pelo final dos anos 1950. O mesmo vale para todas a emissões de rádio, devidamente registradas e arquivadas desde que os meios técnicos permitiram a realização de gravações.

Quando a gente vê imagens com cenas de rua de Londres, Paris e Berlim de um século atrás, é de ficar babando. Há quantidade desses filmes que mostram a vida como ela era, não só nas cidades, mas também nos vilarejos. Das nossas principais cidades – que, no entanto, já eram grandinhas no começo do século XX – não há praticamente nada. A conservação da memória através da imagem nunca foi uma preocupação nacional.

E tudo indica que continua não sendo. A perda do Museu da Língua Portuguesa pelo fogo, faz sei anos, mostrou que o descaso para com um dos pilares da formação de nossa nação é mal de raiz. Três anos atrás, repeteco: a pavorosa destruição pelo fogo do Museu Nacional deixou evidente que nada havia mudado, e que continuávamos a desdenhar daquelas “velharia inúteis que não dão camisa a ninguém”.

A tristeza mais recente é a ruína de parte do acervo da Cinemateca Brasileira, de novo pelo fogo, perpetrada estes dias. Antes de tirar o lenço pra chorar a perda, é bom preparar a raiva. Fique-se sabendo que, nos últimos 60 anos, a Cinemateca já foi parcialmente destruída por 5 incêndios e uma enchente! Bota descaso nisso!

Os incêndios precedentes tinham ocorrido em 1957, 1969, 1982 e 2016. Em 2020, foi a vez da água da enchente, que inutilizou 113 mil DVDs.

A gestão(?) Bolsonaro não tem a culpa pelo que aconteceu no passado, sejamos justos. Mas tem responsabilidade – e como! – pelo que acontecerá daqui pra frente. As consequências do pouco caso da atual administração federal hão de se fazer sentir por décadas.

Se a destruição da memória nacional continuar no ritmo atual, os brasileirinhos dos anos 2100 vão se sentir como nós hoje, privados de memória visual do passado. Terão de contar com a transmissão oral, como nas civilizações que ainda não atingiram o estágio da escrita.

Ardido

José Horta Manzano

Em setembro de 2018, o mais significativo repositório da memória nacional virou tragédia e deixou de existir. Quando queimou o Paço de São Cristóvão, que abrigava o Museu Nacional, uma onda de comoção bateu nos costados do mundo civilizado. Uma catástrofe.

Na ocasião, escrevi um artigo contando curiosidades do passado de um edifício que foi residência de quatro gerações de monarcas. As eleições presidenciais estavam próximas e, naturalmente, não se sabia ainda quem havia de vencer. Eram tempos de suave esperança para os que não suportavam mais o descalabro dos governos lulopetistas.

Formulei então votos de que o próximo presidente, fosse ele quem fosse, fizesse uma visita à Biblioteca Nacional logo no início do mandato. Em matéria de memória nacional, é certamente a joia que nos restou depois da perda do museu arso(*).

Ai de nós, quem é que podia imaginar! Acho que ninguém se tinha dado conta de que estava subindo ao trono o indivíduo mais ignorante jamais eleito no Brasil. Pra piorar, apesar de não ter aprendido nem o básico, doutor Bolsonaro despreza a Educação, pisoteia as Relações Exteriores e tem feito o que está em seu poder para a destruição de nossa cobertura vegetal e para a desertificação do país.

É muita desgraça junta. Acho que o presidente aplaudiria se a Biblioteca Nacional ardesse e se, no terreno, fosse instalada uma filial da Disneylândia. É lastimável que, desde que virou o século, o Brasil tenha sido presidido por ignorantes. Para a cultura nacional, o golpe tem sido duro.

Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro

Com o Lula, a intenção era boa, mas o resultado foi pífio. Numa projeção que a psicologia talvez explique, pensou em dar ao país a possibilidade de fazer os estudos que ele não tinha feito. No entanto, passando por cima da instrução elementar, fomentou a abertura de dúzias de faculdades de beira de estrada. (É fato que uma faculdade é mais visível que um grupo escolar, mas ninguém chega lá sem ter passado por aqui.) Botou Gilberto Gil no Ministério da Cultura; o moço é excelente músico, mas… ministro da Cultura? No espremer dos limões, o Lula relegou a formação elementar à ventura.

Da Dilma, esperava-se uma ‘gerentona’ firme e forte. Ao fim e ao cabo, tivemos uma ‘presidenta’ autoritária, falsificadora do próprio currículo, de mente confusa, que não deu a mínima atenção à formação dos brasileirinhos. Sua ‘Pátria educadora’ não passou de slogan.

Do presidente atual, dá tristeza falar. É esse estropício tosco que está aí. Deu vexame na escolha de titulares para a Educação e para a Cultura. Não visitou (nem visitará) a Biblioteca Nacional. Talvez nem saiba que ela existe. Livro não é seu terreno de predileção. Só nos resta torcer pra que ele vá se embora logo. E que o próximo seja um bocadinho melhor. Será difícil ser pior, mas, no Brasil, nada é impossível – principalmente a piora.

(*)Nota etimológica
Arder corresponde diretamente ao verbo latino ardeo/ardere, que significa estar em chamas, queimar. O particípio perfeito latino é arso, palavra que, segundo o Volp, existe em português. Tanto pode ser adjetivo como substantivo.

É curioso que nenhum dicionário online traga esse verbete. Consultei Houaiss, Priberam, Aulete, Michaelis, Porto Editora, Cândido de Figueiredo e 7 Graus – sem sucesso. O Volp é um vocabulário que se limita a atestar a existência da palavra, dar a grafia e o gênero gramatical; porém, não dá o significado. Assim, resta supor que arso tenha o sentido que tinha na língua latina.

Em português, os descendentes de arder não são multidão: ardido, ardor, ardência, ardente, aguardente. E, naturalmente, arso(=queimado, que ardeu, ardido).

Doações midiáticas

José Horta Manzano

Estão fazendo fila os doadores para a causa da reconstrução da catedral Notre-Dame de Paris. Os donativos já atingem um bilhão de euros, quantia respeitável, quase 4,5 bilhões de reais.

Na Europa, os franceses têm fama de reclamões, aquele tipo de gente que nunca está contente. Há nisso um fundo de verdade. Mas, desta vez, parece que têm razão de se queixar. Muitas vozes se levantam pra lamentar que, quando se trata de ajudar aos que precisam, nunca há dinheiro; no entanto, pra reconstruir «uma igreja» ‒ e isso tem de ser pronunciado com boca de pouco caso ‒ chovem milhões.

Para recolher dinheiro, foi aberta uma subscrição nacional. Por seu lado, loterias, vaquinhas e quermesses se organizam em todo o território francês. Logo, logo, vai ser instalada uma conferência de doadores pra arrecadar mais fundos. E, mais que tudo isso junto, chovem doações de grandes empresas e de bilionários.

A família Arnault, a mais rica do país, doou 200 milhões de euros. A família Pinault, outra potência, vai contribuir com 100 milhões. Outros abastados ‒ os Bettencourt, donos do grupo l’Oréal ‒ vão entrar com 200 milhões. Em seguida, vêm os “pequenos” doadores, aqueles que doam 10 ou 20 milhões de euros. São muitos.

Villa Leopolda, na Côte d’Azur (França), propriedade de Madame Lily Safra
Avaliada em US$ 500 milhões, é uma das propriedades mais caras do planeta

Entre esses “pequenos”, está a bilionária Lily Safra ‒ brasileira, nascida no Rio Grande do Sul, viúva do banqueiro Edmond Safra. Segundo algumas fontes, propôs-se a doar 10 milhões de euros (44 milhões de reais). Outros chegam a mencionar 20 milhões (88 milhões de reais). Seja como for, é muuuito dinheiro.

Cada um faz o que quer com o próprio dinheiro. Fica registrada, no entanto, a surpresa. Madame Safra é conhecida pelas doações milionárias que faz regularmente a causas e institutos diversos. É curioso que ela, que cresceu no Rio de Janeiro, não se tenha comovido com o incêndio do Museu Nacional, aquela monstruosa queima de arquivo da memória do país. Não consta que tenha destinado nem um centavo à reconstrução do prédio ou à reconstituição do acervo. É verdade que não teria dado ibope. Doação boa é doação que aparece.

O estrago é maior

José Horta Manzano

Desde que a Operação Lava a Jato levantou a ponta do tapete que enfeita a sala do andar de cima, uma sujeirada começou a sair. Foi como se tivessem erguido a lápide da tumba dos horrores. O que escapou de fantasma não está escrito! As barbaridades que apareceram estes últimos anos deixaram o País de queixo caído. E quando a gente pensa que acabou, lá vem mais.

Dos bilhões surrupiados, nem precisa falar. Dá muita raiva. Poucos meses de cadeia para quem levou a saúde e os sonhos dos compatriotas é muito pouco. Muito pouco. Esses calhordas tinham de apodrecer na masmorra, pra nunca mais sair. A começar pelo chefe de todos eles.

O mal-afortunado incêndio do Museu Nacional foi edificante. Ficamos sabendo que a manutenção do venerando estabelecimento tinha sido confiada a uma universidade federal cuja cúpula dirigente estava dominada por lulopetistas de carteirinha. Os holofotes giraram para outras universidades federais. Veio à luz que estão praticamente todas infestadas por elementos de mesmo jaez.

Em artigo publicado pelo Estadão deste domingo, a jornalista Eliana Cantanhêde focaliza outra secular instituição do Brasil ‒ o Itamaraty ‒ e aponta o profundo entranhamento que a máquina lulopetista pôs em prática ali. A jornalista relata que os embaixadores Celso Amorim e José Viegas, cardeais de alta batina, se encarregaram de impor doutrinamento a uma geração de diplomatas. O resultado foi a vergonhosa diplomacia «ativa e proativa» que se aproximou de ditaduras sanguinárias e dançou quadrilha com elas. Com resultado nulo para os interesses nacionais, frise-se.

O próximo presidente do Brasil ‒ desde que não seja o candidato petista, te esconjuro! ‒ vai ter muito trabalho, mas muito trabalho mesmo, pra repor a casa em ordem. Desde que as credenciais de mérito foram abandonadas em favor da carteirinha do partido, a contaminação ideológica infestou centenas de empresas estatais, agências reguladoras, embaixadas, consulados, até a representação brasileira junto à Organização dos Estados Americanos. A contar de primeiro de janeiro do ano que vem, vai aparecer muito desempregado na praça.

Afinal, o que perdemos no incêndio?

«O incêndio do Museu Nacional só veio comprovar o descaso dos governos federal e estadual com a ciência, história e cultura do Brasil, uma vez que, anualmente, ele custava aos cofres públicos menos do que se gasta com apenas um dos 18 mil juízes do país.

Assim como o Museu Nacional, milhares de outros museus do país ainda dependem de verbas públicas que, muitas vezes, são mal direcionadas. O Museu do Amanhã, por exemplo, não realiza pesquisas e, mesmo assim, recebe anualmente 24 vezes mais do que o Museu Nacional necessitava para a sua manutenção.»

Trecho de excelente artigo publicado no blogue Tunes Engenharia Ambiental, com o detalhe do que se perdeu no incêndio do Museu Nacional. Vale a pena dar uma olhada.

O museu e o organograma

José Horta Manzano

Estava lembrando hoje de como era quando não havia foto digital. A gente batia as chapas, mandava o rolo de filme para a revelação e só alguns dias depois é que descobria como tinham saído as fotografias. Havia surpresas. Uma foto saía tremida. Outra, esbranquiçada. Um personagem aparecia de olhos fechados e outro, com a boca torta. Uma vassoura, esquecida num canto, estragava uma chapa, enquanto o gato no peitoril da janela enfeitava uma outra. Era assim.

A tragédia que destruiu o Museu Nacional agiu como revelador. Trouxe à luz do dia uma impressionante situação de descalabro. O filme está chamuscado e muita gente saiu com a boca torta. Quase ninguém sabia que o museu dependia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e não do Ministério da Cultura. Muito raros tinham conhecimento de que a cúpula da universidade é composta de militantes do Psol, partido extremista cujo ideário excludente está a anos-luz do ideal universitário, abrangente por definição.

Arquivo Nacional, Rio de Janeiro

A relegação de uma das joias da coroa ‒ o Museu Nacional ‒ a uma posição humilde na estrutura hierárquica do Estado brasileiro mostra a pouca importância que se lhe atribuía. De fato, o museu dependia de uma universidade, que dependia de um ministério, que dependia do Executivo. No organograma das prioridades, o museu estava em posição subalterna. Deu no que deu.

Por desgraça, justamente o diamante da coroa se arruinou. É catastrófico, mas a vida tem de continuar. O diamante se foi, mas ainda restam rubis, safiras e esmeraldas. É importante que a tragédia do Museu Nacional sirva de lição e leve a enérgica tomada de decisões. Não é conveniente que instituições desse calibre sejam entregues a entidades instáveis.

Reitoria universitária não é estável. Está sujeita a sofrer as consequências do descontentamento de alunos. Protestos e greves podem provocar queda de dirigentes. Vira e mexe, isso acontece.

Ministério tampouco é estável. Durante um mandato presidencial, é comum ver ministro sendo substituído a toda hora, num rodopio vertiginoso e opaco. Cada novo ocupante traz as próprias ideias, que podem não ser compatíveis com o amparo que se deve oferecer a museus & similares.

No limite, a Presidência da República é orgão (relativamente) estável. Salvo em caso de impeachment, o titular permanece quatro anos, tempo razoavelmente longo. Uma opção seria amarrar as joias da coroa diretamente à Presidência. Pode não ser a melhor solução, mas já estará melhor que agora.

Museu Paulista (Museu do Ipiranga), São Paulo

O ideal mesmo será criar fundações de direito privado especificamente dedicadas ao cuidado de cada uma das joias. A Biblioteca Nacional, o Arquivo Nacional, a Escola Nacional de Música, o Museu Paulista estão em primeiríssima linha. Sem contar as outras centenas de objetos que constituem nosso patrimônio arquitetônico e cultural. Somente uma gestão limpa e transparente poderá angariar apoio, popularidade e principalmente doações nacionais e estrangeiras.

Em resumo, algo tem de ser feito quanto à posição dessas instituições no organograma do Estado. Do jeito que está, não é possível continuar. Qual é o mecenas que ousaria abrir a bolsa pra pôr dinheiro numa instituição gerida por uma panelinha de extremistas?

Paço de São Cristóvão

José Horta Manzano

O Museu Nacional do Brasil e o Museu de História Natural do México formavam a primeira classe do panorama museológico latino-americano. As coleções de nosso Museu Nacional, no entanto, ultrapassavam em importância as do museu mexicano. O acervo acumulado no palácio da Quinta da Boa Vista ia além do universo tradicional da História Natural ‒ contava também com coleções arqueológicas, importante biblioteca, tesouros mineralógicos.

O Museu Nacional era destino de pesquisadores que vinham do outro lado do oceano apreciar e estudar objetos e espécimes que não se podiam encontrar em outro lugar. A tragédia comoveu o mundo da ciência. A França ofereceu assistência técnica. O Egito, que conta com grande experiência em restauração de obras de arte, também pôs seus especialistas à disposição.

Portugal sentiu o baque de maneira ainda mais especial. Além da destruição do acervo, a devastação do Paço de São Cristóvão foi um golpe duro. Esse edifício era o símbolo de um momento em que a História de Portugal e a do Brasil se roçam.

No Rio de Janeiro, a Biblioteca Nacional conta com acervo monumental.

Além de ter abrigado nossos dois imperadores, o prédio foi residência de nada menos que quatro gerações de monarcas portugueses. Viveram lá: D. Maria I (a Louca), seu filho D. João VI, seu neto D. Pedro I (que mais tarde reinaria como Pedro IV em Portugal) e ainda sua bisneta D. Maria da Glória (que viria a ser rainha de Portugal, com o nome de Maria II).

Esta última, D. Maria II, detém uma exclusividade não igualada até hoje: é a única monarca europeia nascida fora do continente europeu. Nasceu justamente no Palácio de São Cristóvão, em abril de 1819, quando D. João VI ainda residia no Rio de Janeiro.

Agora nos resta torcer pra que a súbita onda de interesse pelo panorama museológico brasileiro não morra na praia. Tomara que a desgraça de hoje sirva pra abrir os olhos de nossas autoridades. Sem um passado consistente, o futuro fica frouxo.

Dos personagens que presidiram nossa República nos últimos 50 anos, tem-se notícia de apenas dois que visitaram o Museu Nacional: Juscelino Kubitschek e Costa e Silva. Nenhum outro deixou registro de ter ensaiado alguns passos na Quinta da Boa Vista.

Se o próximo presidente fizer, logo no começo do mandato, uma visitinha, por exemplo, à fabulosa Biblioteca Nacional, já estará de bom tamanho. É bom ir antes que arda.

Missão Patrimônio

José Horta Manzano

Numa terrível coincidência, justamente no 3 de setembro em que o Brasil chorou a destruição do prédio do Museu Nacional e de tudo o que ele continha, o governo da França lançou um programa direcionado à salvaguarda de seu patrimônio histórico e cultural. Trata-se de uma loteria nacional.

O nome do jogo é «Mission Patrimoine» ‒ Missão Patrimônio. Tíquetes de raspadinha e bilhetes de loteria tradicional estão à disposição dos apostadores em todos os quisques e bancas do país. Durante algumas semanas, cada um poderá fazer sua fezinha. Ganhos de raspadinha são imediatos. Quem preferir comprar bilhete deverá esperar pelo sorteio final. Os prêmios milionários são extremamente atrativos.

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Em loterias tradicionais, 1/3 do valor arrecadado vai para o erário e o resto é distribuído aos ganhadores. Nesta Missão Patrimônio, o terço que iria para o erário vai para um fundo exclusivamente destinado à conservação de monumentos, abadias, igrejas, prédios históricos, museus e outros marcos da história nacional. O Ministério da Cultura, depois de examinar dois mil imóveis que requerem cuidados especiais, identificou 269 que estão a perigo. Com a loteria, o governo conta arrecadar de 15 a 20 milhões de euros, que serão inteiramente destinados à manutenção desses objetos periclitantes. A intenção é repetir a operação todos os anos, no mês de setembro.

No Brasil, em que dezenas de milhões de cidadãos são incapazes de ler e de contar, e em que outros milhões dependem de um óbulo mensal pra poder comer, as prioridades são outras. Assim mesmo, a iniciativa francesa pode ser aplicada. Milhões de cidadãos estão em condições de arriscar num bilhete de loteria. Por que não lançar a ideia?

Todos saem ganhando.

• O governo estará cumprindo, sem desembolsar um centavo, sua missão no campo sócio-cultural.

• Os apostadores terão a chance de embolsar inúmeros prêmios, uns pequenos, outros fabulosos.

• O patrimônio histórico e cultural do Brasil agradecerá. Quantas igrejas serão salvas de desabamento causado por cupins! Quantos prédios históricos serão resguardados contra a degradação infligida pela passagem dos séculos! Quantos museus serão reformados e protegidos contra incêndio!

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Para nosso Museu Nacional, é tarde. O que foi perdido, perdido foi. Não há nada mais a fazer. Mas a vida continua. Ainda há tempo de proteger outros bens de nosso patrimônio. Se o distinto leitor aderir a essa ideia, que tal propagá-la pelas redes sociais? Quem sabe o chamamento chega até as altas esferas que decidem nosso destino. Vamos cruzar os dedos.

Incendie à Rio

José Horta Manzano

Segunda metade dos anos 1960. Bem jovem, este blogueiro estava na Suécia para um trabalho de alguns meses. Por lá, conheci uma senhora brasileira que, casada com sueco, já vivia no país havia anos. Teria seus 40 e poucos anos. De boa cultura, falava várias línguas.

Na época, fazia sucesso no rádio uma música francesa muito animada, na voz de Sacha Distel, cantor simpático e sorridente. A canção tinha um ritmo meio desengonçado de «samba europeu». A música me agradou mas, à época, minha prática da língua francesa ainda não me permitia entender a letra.

Conversando com minha amiga, contei que gostava da canção, que me parecia muito alegre. Ela retrucou: «Se você entendesse a letra, apreciaria menos». Fiquei surpreso. Por que seria?

Depois fiquei sabendo. A letra conta a história de um incêndio no Rio. Ardia a “fábrica de café”. Os bombeiros foram chamados mas não puderam vir porque não encontravam a mangueira nem a escada. A noite avança. A fábrica queima, o fogo se alastra e destrói o quarteirão inteiro. De manhãzinha, quando não havia mais fogo a combater, os bombeiros avisam que encontraram a mangueira e a escada mas, infelizmente, ainda não podem intervir porque não conseguem dar partida no caminhão: falta a manivela.

Tinha razão minha amiga. A letra é cruel. É zombaria pura pra cima da república bananeira que se imaginava fosse o Brasil naquela época.

Hoje, ao tomar conhecimento da destruição do Museu Nacional por um incêndio, voltei a sentir a mesma vergonha ‘por procuração’ que me assaltou 50 anos atrás. Na rua, tenho a opressiva impressão de que todos me lançam um olhar de reprovação.

Para recuperar o país da corrupção generalizada, sempre há esperança. É permitido acreditar que amanhã as coisas vão melhorar. Já para recuperar a memória que virou fumaça, nada se pode fazer. Quando os bombeiros encontrarem a manivela, será tarde demais. Podem aposentar o caminhão.

Pátria educadora

Carlos Brickmann (*)

Sim, Dilma disse num dia que o lema de seu governo seria: “Brasil, pátria educadora”. E, na mesma semana, houve cortes no orçamento federal. Os maiores cortes atingiram o Ministério da Educação.

Mas a pátria educadora não é apenas a educação: é também a cultura. E o Museu Nacional, com 196 anos de história, maior instituição latino-americana de antropologia e história natural, fechou as portas ao público.

"Que notas são estas?" by Emmanuel Chaunu, desenhista francês

“Que notas são estas?”
by Emmanuel Chaunu, desenhista francês

Motivo: há três meses a Universidade Federal do Rio de Janeiro não paga as empresas terceirizadas de limpeza e segurança. Os serviços foram paralisados e o museu não podia mesmo receber visitantes.

Por que a UFRJ, subordinada ao Ministério da Educação, parou de pagar? Porque o governo federal parou de repassar as verbas para esses serviços. O salário de dezembro dos funcionários não saiu, nem o vale-transporte. E os 4 milhões que prometeram liberar nesta semana não resolvem o problema.

É a pátria educadora em ação.

(*) Carlos Brickmann é jornalista, consultor de comunicação. Publica a Coluna Carlos Brickmann em numerosos jornais.