Imposto de renda

José Horta Manzano

As brutais desigualdades que caracterizam a sociedade brasileira impedem a consolidação de um verdadeiro espírito nacional. Somos um aglomerado de gente que se observa, se cruza, se entretem, mas não se identifica.

Os objetivos de certos grupos estão demais distantes dos objetivos de outros grupos. As disparidades são tamanhas, que não permitem a constituição de um tecido social homogêneo.

A Copa do Mundo, talvez o único momento em que se chega a uma quase unanimidade, só dura um mês a cada quatro anos, o que é amplamente insuficiente para cimentar um sentimento geral de nacionalidade.

Vivemos num país em que:

  • 15% da população passa fome
  • Uma cidade (São Paulo) tem a maior frota de helicópteros particulares do mundo
  • Idosos tomam empréstimo consignado pra comprar alimento
  • Janelas têm de ser gradeadas pra conter assaltantes
  • Miseráveis se disputam ossos de gado
  • Há zonas onde a lei não chega (morros cariocas, vales amazônicos)

Num país assim, não há santo que resolva: nenhum indivíduo consegue sentir-se cidadão pleno.

Durante a campanha, o candidato Lula prometeu elevar a barra de isenção do imposto de renda até quem ganha R$ 5 mil por mês. O objetivo do presidente eleito, de dar um alívio aos que recebem salário baixo, é louvável; mas a mexida vai na contramão da busca da cidadania para todos.

Imposto é chateação, ninguém paga com prazer. Apesar disso, a tributação é o sistema que obriga todos os cidadãos a contribuirem para a sacola comum, cada um na medida de suas posses. Dinheiro não dá em árvore. Para funcionar, o governo precisa dispor de somas colossais para os serviços comuns a todos: Educação, Saúde, Rodovias, Segurança Pública, Defesa e todos os demais departamentos.

O distinto leitor certamente entende o funcionamento do sistema. Não paga imposto por prazer, mas sabe como o mecanismo funciona (ou como deveria funcionar, mas essa já é uma outra história). Mas boa parte da população menos favorizada não conhece o sistema nem sabe como funciona. Só tem certeza de não fazer parte dele: “Eu não pago imposto, meu salário não atinge”.

Sabemos que não é bem assim, que os impostos indiretos, embutidos no preço do feijão, do arroz e da passagem de ônibus são bastante elevados. Não conhecendo o funcionamento do sistema fiscal, a população mais humilde não se interessa por essas coisas: “Isso é coisa de rico”.

Nesse particular, penso diferente de Lula da Silva. Aumentar o valor de isenção do imposto é medida que serve mais para alijar parte da população do funcionamento da sociedade. Dependesse de mim, adotaria a medida inversa: baixaria o valor de isenção.

Por quê? Porque é um bom caminho para conscientizar os cidadãos desfavorizados de que também eles fazem parte da nação e, como cidadãos, devem dar sua contribuição.

A alíquota? Tanto faz, que é um gesto simbólico. Teria de ser baixíssima, pequena porcentagem do salário. O ideal é que não pesasse no bolso do trabalhador, mas que lhe incutisse a convicção de pertencer à sociedade. É importante que ele saiba que está contribuindo para o funcionamento da nação. Esse alargamento da base de contribuintes teria de ser reforçado por aprendizado a ser dado desde a escola elementar.

Essa medida simples seria de bom auxílio na busca de uma sociedade inclusiva. Uma política de cotas e de isenções tem a desvantagem de acentuar linhas de fratura na sociedade. Já uma política em que cada um dá sua contribuição à sacola comum tende a difundir um sentimento de homogeneidade, primeiro passo para a formação de uma nação.

Intercâmbio prejudicado

José Horta Manzano

Ninguém gosta de pagar imposto. A gente só paga porque não tem outro jeito. Por sinal, mais e mais países adotam o sistema de retenção na fonte, modalidade em vigor no Brasil há muito tempo. É justamente para evitar ‘hesitação’ do contribuinte na hora de pagar.

Queiramos ou não, é assim que os países funcionam: o rendimento dos habitantes é puncionado, seja na fonte, seja mais tarde. Todos entendem que é mal necessário. Mas tudo tem limite. O que nos contraria não é tanto o desconto, mas o mau uso que eventualmente se faz do dinheiro recolhido.

Imposto 1A revelação das tenebrosas transações que correm à solta no Brasil nos deixa revoltados. Com que então, o fruto do meu suor vai parar no bolso de sanguessugas que ainda riem na minha cara? O sentimento de injustiça, de raiva e de impotência é insuportável.

Sabemos que a conjugação de ladroagem com incapacidade e ignorância tem feito nosso país retroceder na escala da civilização. Anos de malandragem e roubalheira levaram as contas públicas ao fundo do poço.

Interligne 18h

Desde o começo deste ano, valendo-se de uma imprecisão na legislação fiscal, a Receita Federal instituiu novo imposto. Toda remessa para o exterior está sendo tributada. O tapa não foi dado de mão morta: a alíquota é de 25 por cento. E tem mais: toda remessa legal é, por definição, constituída de dinheiro já tributado pelo Imposto de Renda. Estamos falando de dupla tributação.

O imposto não atinge, naturalmente, os milhões subtraídos ilegalmente e depositados em paraísos fiscais. Esse tipo de operação, intermediada por doleiros e acobertada por gente graúda, zomba das leis e goza de isenção. Os prejudicados são cidadãos do andar de baixo, aqueles que ganham a vida com o próprio trabalho.

Imposto 2As principais vítimas são brasileiros que aderiram a programa de intercâmbio. Os que batalham pós-graduação, mestrado e doutorado no estrangeiro também entram na dança. A vertiginosa desvalorização do real combinada com o confisco de 25% tornam a permanência de muitos estudantes inviável.

Além de ser confiscatória, a intolerável medida pouco contribuirá para elevar o nível do erário dilapidado. Pior que isso, essa tributação cerceia os jovens que se aperfeiçoam no estrangeiro ‒ exatamente os que poderiam contribuir para a elevação do nível cultural do Brasil de amanhã.

É mais uma vez a Pátria Educadora garantindo o atraso.

Velhice e pobreza

José Horta Manzano

Um conhecido meu teve, já faz muito tempo, uma pequena papelaria. Naquela época em que ainda ninguém tinha computador, nem impressora, nem escâner em casa, ele deixava uma fotocopiadora à disposição dos clientes. Por módica soma, o distinto público podia tirar suas copiazinhas em sistema de autosserviço. Pagava-se no final.

Vez por outra, aparecia uma velhinha, moradora das redondezas. Depois dos bons-dias, ela pedia para tirar umas cópias. O dono da loja, comovido com a idade avançada da cliente, nunca cobrou pelo serviço. Sempre deixava por isso mesmo.

Um dia, a anciã chegou com algumas folhas. Parecia apressada. O comerciante propôs que ela lhe confiasse os documentos. Ele mesmo tiraria as cópias, e ela podia vir logo mais à tarde buscar o calhamaço. Contente e agradecida, ela aceitou.

Meu conhecido pôs-se à obra. Deu-se conta de que tinha em mãos a declaração de renda da velhinha, preenchida e pronta para ser enviada à Receita. Não se conteve ― deu uma rápida espiada nos números. Quase caiu de costas: a cliente era dona de fortuna considerável, coisa de milhões! Um espanto.

Interligne 23

Decreto n° 54925

Decreto n° 54925

Ao ficar sabendo que o prefeito da cidade de São Paulo havia decretado, semana passada, que cidadãos que já tenham completado 60 anos têm o direito de viajar gratuitamente nos ônibus municipais, lembrei-me da velhinha da fotocópia.

Pelo que diz o decreto, a idade é o único critério de atribuição desse benefício. O legislador partiu de um curioso pressuposto que equipara a velhice à pobreza. A meu ver, a (relativa) juventude do prefeito distorce sua visão. Sua premissa não é necessariamente verdadeira. Todo velho não é obrigatoriamente desvalido.

Reconheço o preceito de que a sociedade deve amparar seus membros mais frágeis. É a base de todo agrupamento humano. Mas não há que confundir idade madura com precariedade financeira. O cartão que assegura a gratuidade no transporte deveria ser atribuído unicamente a anciãos que comprovassem encontrar-se abaixo de determinado nível de rendimento e de patrimônio.

Do jeito que está, pobre tem de pagar tarifa plena enquanto a velhinha da fotocopiadora viaja de graça.

Burocracia

José Horta Manzano

É voz corrente que a burocracia brasileira é pesada. Carimbos, firmas reconhecidas, atestados, certificados e quejandos tornam ainda mais complicado o dia a dia do cidadão.Burocracia

Eu me pergunto, contudo, se esses entraves não seriam a essência, o espírito de nosso povo: desconfiado, minucioso, cheio de pormenores. Todo o mundo é considerado suspeito até que prove o contrário.

Ainda agora, estava lendo um artigo interessante de Bianca Pinto Lima publicado no Estadão deste 6 de março. A articulista lança um alerta aos que estão a ponto de declarar sua renda ao fisco. Lembra aos declarantes que certos erros primários e fáceis de evitar podem trazer consequências pra lá de desagradáveis.

Em seguida, o artigo discorre sobre limites, montantes admitidos, porcentagens, minúcias. Fiquei surpreso com um rigor detalhista ao qual não estou habituado.

by Serguêi Túnin, desenhista russo

by Serguêi Túnin, desenhista russo

Despesas com educação permitem abatimento de até 3’230,46 reais. Empregado doméstico dá ao patrão o direito de deduzir 1’078,08 reais de sua renda tributável. Cada dependente propicia franquia de 2’063,64 reais. Por que tamanha precisão? Por que 46 centavos aqui, 8 ali, 64 acolá?

Peço desculpa pela franqueza: muito mais do que exatidão, isso é burrice. Alguém já fez a conta dos minutos perdidos pelo declarante entre escrever e calcular os 8 centavos aqui e os 46 ali? Alguém já multiplicou esses minutos pelos milhões de declarações preenchidas a cada ano? Alguém já calculou o desperdício de tempo e de energia que isso acarreta ao País? Sem contar o risco de erro que, reforçado, acaba penalizando inocentes.

É simples remediar. Que se comece por desprezar os centavos nas declarações. Que se fixem montantes e deduções arredondadas. Nada de centavos. Se possível, que terminem em 10, 20, 30. Melhor ainda se terminarem em centenas redondas.

No nosso exemplo, os abatimentos ficariam assim:

Interligne vertical 10Educação = 3’200 reais
Empregado doméstico = 1’100 reais
Dependente = 2’100 reais

Não fica mais fácil? O que se perde aqui, ganha-se ali. Por que complicar? Um tijolinho cá, outro lá, um dia a casa fica pronta.

Deixo aqui a sugestão. Se algum de meus distintos leitores for um chegado do doutor Leão, que nos faça o obséquio de dar-lhe um toque. De leve, porque leão, como sabemos todos, é animal irracional.

Show para a galeria francesa

José Horta Manzano

Na quinta-feira 28 de março, o presidente François Hollande concedeu uma entrevista. A notícia parece banal, mas tem significado especial.

Como acontece em muitos países, no Brasil inclusive, o jornal televisivo francês das 20h é programa de forte audiência. O presidente escolheu esse momento particular para fazer seu pronunciamento.

Grande parte da população deve ter engolido seu jantar sem olhar para o prato, preferindo degustar as palavras presidenciais, olhos fixados na telinha. No entanto, os que esperavam ouvir algum anúncio espalhafatoso continuaram famintos.

Os tempos mudaram. Ilhas de prosperidade em meio a oceanos tempestuosos ― como o governo brasileiro apresentava nosso País lá pelos anos 70 ― ficaram no passado. Hoje em dia, sem muito alarde, a globalização vai-se impondo. Se a China espirra, o mundo pega uma gripe danada. Se os Estados Unidos bambeiam, o planeta desaba. Está tudo muito ligado. Ninguém mais faz milagre sozinho.

Durante sua campanha, o candidato Hollande fez uma montanha de promessas, algumas delas gritantemente demagógicas. Uma no cravo, outra na ferradura, tentou arrebanhar votos de simpatizantes de toda a paleta política, da esquerda trotskista à direita radical.

Entre outros compromissos polêmicos, jurou por todos os deuses que faria incidir imposto de 75% sobre beneficiários de salários superiores a um milhão de euros por ano. Não precisa ser nenhum mágico em economia para entender que pouquíssimos atingem essa faixa de ganho.

Era o tipo de promessa inócua, pura jogada de marketing. Feita apenas para agradar à galeria, seria incapaz de encher os cofres da nação e muito menos de endireitar as finanças. Assim mesmo, muita gente deve ter-se deixado impressionar pela falácia. O resultado é que Monsieur Hollande foi eleito, no segundo turno, com 51% dos votos.François Hollande

Já comentei sobre consequências dessa promessa aberrante em artigo de dezembro do ano passado. O primeiro efeito foi afugentar gente que, sem ter cometido nenhum crime, se sentiu subitamente malquista pelo simples motivo de ganhar muito.

O sistema eleitoral do país, com deputados eleitos em dois turnos, faz que o parlamento seja composto quase exclusivamente por representates dos dois partidos majoritários: um ligeiramente de esquerda, outro levemente de direita. Não há, portanto, necessidade de coalizões, muito menos de mensalões.

Hollande, que conta com folgada maioria parlamentar, conseguiu sem dificuldade fazer votar a lei dos 75%. Ato contínuo, deputados descontentes apelaram para a Cour Constitutionnelle(*), a instituição francesa que tem por atribuição pronunciar-se sobre a constitucionalidade de uma nova lei. A corte negou provimento, com o argumento de que todo imposto ultrapassando 2/3 dos ganhos do cidadão é confiscatório. Portanto, inconstitucional. A lei foi invalidada.

Pois não é que o presidente, certamente para não deixar transparecer a derrota, voltou ao ataque? Fez isso durante a entrevista televisiva. Anunciou que a intenção de confiscar três quartas partes de ganhos elevados continuava em pauta.

Na impossibilidade de cobrar a derrama de cidadãos, decidiu enviar a conta às empresas. A nova lei ― que será seguramente votada por sua maioria parlamentar ― especifica que os cidadãos pagarão, de seu próprio bolso, o máximo autorizado, e que o resto será pago por seu empregador. Assim, chegará de qualquer maneira aos 75% e estará cumprida sua promessa de campanha.

Formado em excelentes e prestigiosos institutos, o presidente é, supõe-se, homem de cultura. Imagina-se que seus assessores também sejam. Portanto, a solução proposta é desconcertante. É produto típico do que os franceses chamam la gauche caviar, a esquerda festiva. Um agrupamento de políticos bem-nascidos, daqueles que só conhecem a precariedade de ouvir falar.

Muito poucas empresas pagam salários tão elevados. E muito poucos são os funcionários que atingem esses picos. As firmas visadas são todas multinacionais, com ramos, braços, filiais e sucursais implantadas em dezenas de pontos do planeta. Não é difícil imaginar que uma parte dos salários mais elevados possa vir a ser paga fora das fronteiras nacionais, longe do alcance do fisco.

Pior que isso, há um efeito perverso que pode causar mal maior ao país inteiro. Firmas estrangeiras que, em ascensão acelerada, estejam procurando um país para acolher sua base europeia vão pensar duas vezes antes de escolher a França.

A Receita sempre alcança os pequeninos, aqueles que não têm como escapar de sua malha. Malha fina ou malha grossa. Já os que ganham milhões têm acesso a subterfúgios cuja existência nós outros nem de longe imaginamos.

As atuais sondagens de opinião mostram que o presidente da França está navegando em patamares baixíssimos de aprovação popular. Não será a insistência cabeçuda nessa medida confiscatória que lhe servirá de alavanca para subir nas pesquisas.

Melhor teria sido se Monsieur Hollande tivesse aproveitado a deixa, jogado a culpa na corte constitucional e virado a página.

.

(*) No Brasil, o STF acumula as funções de Corte Suprema e de Corte Constitucional. Na França, há uma instituição para cada uma dessas funções. A finalidade precípua da Cour Constitutionnelle é, quando instada a fazê-lo, pronunciar-se sobre a compatibilidade de uma lei com a Constituição.

Os exilados fiscais

José Horta Manzano

Diferentemente de outros países, que procuram atrair as grandes fortunas, a França vem se distinguindo por perseguir os ricos. É paradoxal, mas é assim. A tendência se acelerou desde que o presidente Hollande tomou posse de seu cargo, alguns meses atrás. Uma de suas promessas de campanha ― demagógica a mais não poder ― foi de elevar a 75% (setenta e cinco porcento!) a alíquota de imposto de renda de quem ganha mais de um milhão de euros por ano.

É um raciocínio estreito, pois quem ganha fortunas desse nível sempre encontra meios de defender seu patrimônio. Já faz muitos anos que franceses afortunados vêm se expatriando para escapar a essas taxas escorchantes. São industriais, artistas, esportistas, escritores. Não são ladrões, não cometeram peculato, nem assaltaram o erário. Ganham seu dinheiro dentro da lei.

Quando o Estado retém a metade dos ganhos de certos cidadãos, já está exagerando. Quando chega a alíquotas de 75%, já não estamos falando mais de imposto. O nome é outro: confisco.

Faz anos que franceses ricos já estabeleceram seu domicílio fiscal no estrangeiro. Alain Delon, Charles Aznavour, Alain Prost, Johnny Hallyday, Marie Laforêt são os mais conhecidos. Mas há muitos e muitos outros de quem se fala menos, por não fazerem parte do mundo do espetáculo.

Bilhões de euros escapam, assim, à receita francesa em consequência de uma política míope que, se angaria votos, priva as burras do Estado de recursos mais que polpudos.

O caso mais recente envolve o ator Gérard Depardieu. Pessoalmente, não morro de simpatia por ele. Mas há que separar paixão e razão. O ator decidiu estabelecer-se num vilarejo belga, a alguns passos da fronteira francesa. Essa mudança de residência fiscal indignou o Primeiro Ministro da França, que a descreveu a decisão como «miserável, digna de um pobre tipo».

Gérard Depardieu

Gérard Depardieu

Como se diz na França, Depardieu não costuma «guardar a língua no bolso», não é o tipo de pessoa que leva desaforo pra casa. De bate-pronto, resolveu dar o troco ao desajeitado ministro. Numa carta aberta publicada este domingo, ele se insurge contra o insulto de que foi vítima. E, num arrebatamento, declara sua intenção de renunciar à cidadania francesa. Disse também que, em 2012, pagou impostos equivalentes a 85% de seus ganhos. Declarou ainda que vai-se embora porque se dá conta de que seu país abomina e sanciona o sucesso, a criação, o talento e a diferença.

O prefeito do vilarejo onde Depardieu comprou sua residência está rindo à toa.