Polindo a biografia

José Horta Manzano

Se, antes da eleição, Jair Messias tivesse sido sincero e confessado aos brasileiros que seu futuro governo se resumiria a passar o tempo manobrando pra escapar da cadeia, em defesa do clã e esquecido do povo, certo não teria sido eleito. Não era de conhecimento público que a família Bolsonaro estivesse tão envolvida com milícias e outros círculos perigosos. O Brasil já elegeu muito estropício, mas capo mafioso é a primeira vez. Foi descuido terrível, que nos está custando caro.

Já houve presidentes bons; já houve presidentes medíocres; já houve presidentes ruins. Mas não me lembro de ter visto presidente sem projeto para o Brasil, que governasse exclusivamente para si e para o clã.

Se espremer bem esse primeiro ano de mandato, o que é que sai? Um caldo esquisito, com ministro do Meio Ambiente trabalhando pra destruir o meio ambiente; ministro da Educassão semianalfabeto; benesses distribuídas, à luz do dia, a parlamentares fisiológicos; incentivo oficial ao armamento da população; negacionismo escancarado da maior pandemia global do último século.

Os Três Patetas (os originais)

A lista de «esquisitices» é longa e conhecida. Não vale a pena gastar tinta com isso. A mais recente delas é a ocultação das estatísticas da pandemia no Brasil. Ignaro por falta de estudo e mal aconselhado por falta de visão, doutor Bolsonaro acha que, uma vez camuflada, a realidade some. Em sua estratégia rudimentar, acredita poder assim driblar a contagem macabra e dar a todos a impressão de que os mortos são poucos. «Não é tudo isso que dizem aí, pô!»

Será desmentido rapidinho por instituições sérias que já organizam contagem paralela – que vai acabar se tornando oficial. A biografia do moço vai guardar para sempre a marca do dirigente apavorado, que não teve peito pra enfrentar a grande peste de 2020.

Nos anos 1970, ao dissimular a realidade da epidemia de meningite que grassava em São Paulo, a ditadura deixou para a história a lembrança do bizarro triunvirato militar que tinha assumido o comando do país em 1969. De tão atrapalhado, o conjunto ficou conhecido com o apelido que lhes pespegou Ulysses Guimarães: «Junta dos Três Patetas». Doutor Bolsonaro tem lugar reservado nessa galeria de horrores: será o quarto pateta.

O Brasil e o bicho-papão

José Horta Manzano

Doutor Bolsonaro subiu ao púlpito da ONU e falou. Sua dicção não melhorou nadinha, mas, desta vez, ele teve sorte: apareceu um orador pior que ele. Pele escura e barrete no cocuruto, o senhor que presidia aos trabalhos tinha uma fala ainda mais absconsa. Impressionante, não sei se vocês ouviram. O homem falou antes de Jair Messias. Discursava em inglês, mas juro que só dava pra pescar uma palavra aqui, outra ali. Que fala enrolada, sô! Uma dublagem teria sido bem-vinda.

Estudos mostram que 9 em cada 10 leitores lê somente o título de cada artigo ou, no máximo, o primeiro parágrafo. O mesmo vale pra discursos solenes. Importantes são os primeiros dois ou três minutos; depois disso, o olhar vagueia e o ouvido amolece.

A primeira parte do discurso de nosso presidente levou a marca de Ernesto Araújo, seu ministro de Relações Exteriores. Não sei se ele fez de propósito, mas fato é que os primeiros minutos do discurso de Bolsonaro foram uma calamidade. O presidente autoproclamou-se paladino da luta contra a implantação do «socialismo» no país. Como é que é? Ele pronunciou a palavra ‘socialismo’ como se pecado fosse. Só faltou um pelo-sinal.

Alguém precisa dar umas aulas de política àquele pessoal do Planalto. Eles precisam urgentemente aprender o significado de conceitos básicos como socialismo, comunismo, nazismo, fascismo, liberalismo e quejandos. Embora essa família política não seja minha favorita, um governo socialista não é nenhum bicho-papão. Socialista não é comunista, aquele que come criancinhas. Os presidentes Mitterrand e Hollande, chefes do Estado francês, eram membros do Partido Socialista. A Espanha é atualmente governada por socialistas. O socialista Mário Soares foi presidente de Portugal. Por décadas, os países escandinavos foram governados por sócio-democratas. E nenhum desses países virou uma Venezuela.

Fiquei imaginando o espanto de um auditório que reunia a fina flor da política do planeta. Se o autor do discurso do presidente pretendia impressionar, pode ficar tranquilo: atingiu o objetivo. Só que impressionou no mau sentido. Doutor Bolsonaro subiu ao púlpito vestido e de lá desceu nu. Depois de contar que salvou o Brasil do socialismo, discursou por mais uns quinze minutos. Falou mal de Cuba, da Venezuela, do Irã. Mas o que disse não tinha mais importância. Os primeiros três minutos escancararam a realidade e carimbaram nosso presidente e sua troupe com um adjetivo incômodo: ignorantes. Pra fazer esse papelão, melhor teria sido ficar em casa.