Por que confinar?

José Horta Manzano

Se o confinamento foi imposto na maioria dos países da Europa, não foi pra castigar ninguém, mas pra preservar o sistema nacional de saúde. E funcionou. Quanto mais cedo foi instaurado, menor foi a taxa de mortalidade. Na maioria dos países, visto que a curva de contágio entortou pra baixo, o desconfinamento gradual já começou.

No início da pandemia, o governo do Reino Unido foi reticente, o que significou um baita escorregão para o país, que virou um caso à parte. Boris Johnson chegou a debochar do perigo ao dizer que continuava, sim, apertando a mão de muita gente. Deu no que deu. O figurão apanhou a covid-19, deu entrada no hospital, foi tratado na UTI, quase empacotou – parece até que foi castigo. Quando, finalmente, instauraram o confinamento, o contágio já corria solto. Como resultado, a epidemia foi lá mais grave do que na maioria dos vizinhos.

O Brasil vive uma situação peculiar. O sistema nacional integrado de saúde (SUS) convive com um sistema paralelo de asseguradoras privadas (convênios), que asseguram, grosso modo, os mesmos riscos. O resultado é sui-generis: boa parte dos brasileiros são sobreassegurados (=overassured, surassurés). Sustentam, do próprio bolso, dois sistemas concorrentes. Pra quem olha do exterior, parece um despropósito, um desperdício. Afinal, apesar de pagar dois sistemas, o cidadão só recorre a um deles de cada vez. Desse modo, terá pago o outro por nada. A meu conhecimento, nenhum país rico procede assim. No entanto, pensando bem, se ninguém reclama, é porque devem estar satisfeitos.

Seja como for, que se considere o SUS ou as seguradoras privadas, no frigir dos ovos, a capacidade de atendimento hospitalar será sempre o resultado da soma dos dois sistemas. Portanto, o princípio que compeliu outros países a decretarem confinamento da população vale também para o Brasil. O objetivo é preservar o(s) sistema(s) de saúde. É afligente que doutor Bolsonaro não tenha entendido isso.

O dilema do presidente

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 29 junho 2019.

A sinceridade não costuma ser a qualidade primeira do homem político. Uns mais, outros menos, todos acabam contornando promessas feitas quando era hora de atrair e cativar eleitores. Tanto faz que tenham sido promessas de raiz ou de circunstância. Virada a página da eleição, faz-se tábula rasa e o passado some. Alguns eleitos exageram no caradurismo. Roçam a desfaçatez. A julgar por declarações dadas recentemente, doutor Bolsonaro parece esforçar-se para aparecer nesta última categoria.

Em visita ao município onde passou a infância, nosso presidente foi claro. (Clareza não é lá seu forte mas, com boa vontade, dá pra entender o que ele quis dizer.) Pra começar, agradeceu aos que votaram nele e, curiosamente, também aos que lhe negaram voto. Dado que essa generosidade d’alma não é comum em suas falas, fica a impressão de ele estar seguindo, a seu modo, o conselho de algum assessor mais antenado. O objetivo nítido era contentar a todos, mas não se sabe se foi atingido. Devotar-se, ao mesmo tempo, a Deus e a Mamom é complicado.

No começo da Copa América de 1997, Zagallo, técnico da Seleção, andava desprestigiado. Ao final, assim que o Brasil conquistou a taça, ele despejou sobre seus críticos: «– Vocês vão ter que me engolir!». Vinte anos mais tarde, Lula da Silva repetiu a tirada de Zagallo. Foi num discurso em Vitória, quando pesquisas lhe sorriam enquanto nuvens judiciárias já lhe escureciam o horizonte. Dirigindo-se à pequena minoria que, em sua imaginação, não votaria nele para presidente, soltou a mesma frase: «– Vocês vão ter que me engolir!». Acabou engolido pelos acontecimentos.

Ainda na visita à terra da infância, doutor Bolsonaro não se contentou com agradecer pelos votos e pelos não votos. Fez uma ameaça que lembra a de Zagallo e a de Lula da Silva. Não usou as mesmas palavras, mas o sentido está lá. Disse que, caso não haja uma ‘boa reforma política’, será candidato à própria sucessão. Ficou claro o desafio lançado a deputados e senadores. Se o Congresso não conseguir costurar uma reforma que proíba a reeleição, os brasileiros terão de engolir Jair Messias de novo.

De fato, caso o Legislativo não releve o desafio de vedar reeleições, o diagnóstico do presidente quanto a sua futura candidatura é inequívoco: «– Lá na frente, todos votarão [em mim]», profetizou. Por um lado, a frase confirma a intenção de disputar a reeleição. Por outro, a julgar pelo valor de face, denota indisfarçável pendor totalitário. Eleições em que todos votam no mesmo homem são aquelas em que o partido único impõe um candidato só. Visto ser altamente improvável que a miríade de partidos brasileiros aceitem hipotética fusão geral que dê nascença a um partidão solteiro e único, doutor Bolsonaro vai ter de neutralizar concorrentes no muque.

Com apenas seis meses de estrada mas já de olho em 2022, o presidente não tem tarefa fácil pela frente. Que ninguém se deixe iludir pelo fato de a oposição estar destroçada neste momento. No jogo político brasileiro, pra ganhar eleição, o candidato pode dispensar respaldo de partido forte ou de coalizão. A prova disso é o atual presidente que, nanico na partida, vestiu a faixa na chegada. Portanto, aquele que desafiará o atual presidente no próximo pleito pode ser figura hoje desconhecida.

A obrigação primeira de quem quer receber o voto de todos é limpar o terreno arredando rivais e superarando concorrentes. Nesse particular, doutor Bolsonaro está diante de um dilema visguento. Sergio Moro, o pilar moral de seu governo, está atravessando fase de turbulência. Como capitão, o presidente tanto pode atirar o homem ao mar quanto dar-lhe amparo e abrigo. Se decidir abandonar o ministro e condená-lo à fritura em banha quente, eliminará o concorrente mas, em troca, seu governo perderá o esteio. Caso lance uma boia e salve o ex-juiz, o governo recuperará a garantia de intolerância contra a corrupção. Em compensação, doutor Bolsonaro estará vitaminando aquele que poderá vir a ser seu mais perigoso concorrente. E agora, Jair?

 

Presidenciáveis

José Horta Manzano

Eleitor 1Quem achar que é birra minha provavelmente terá razão. Assim mesmo, vou botar no papel, nem que seja pra esconjurar.

Estes últimos anos, surgiu a moda de atribuir o epíteto de «presidenciável» aos que pleiteiam o cargo de presidente da República. Não é termo adequado.

Em tese, presidenciáveis somos nós todos. Todo cidadão que preencher os requisitos exigidos pela Constituição é presidenciável. Para se habilitar, o cidadão precisa:

Interligne vertical 11― Ser brasileiro nato, ou seja, ter nascido com o direito à nacionalidade brasileira. Pouco importa o lugar de nascimento, desde que o neonato já tenha nascido brasileiro.

― Estar em pleno exercício dos direitos políticos

― Estar alistado como eleitor

― Ser filiado a um partido político

― Ser alfabetizado

― Ter acima de 35 anos de idade

Pronto. Como eu dizia, boa parte dos habitantes de Pindorama são presidenciáveis. O que falta à maioria é ser filiado a um partido. Com as dezenas de partidos que temos à mão, esse é problema de solução fácil.

O que é que distingue, então, os presidenciáveis (que todos somos) daqueles que hoje debatem na tevê e amanhã vão aparecer na telinha da maquineta de votar?

Ora, minha gente, é que eles se inscreveram como candidatos, e nós, não.

Interligne 18hResumo da ópera
Todos os candidatos são obrigatoriamente presidenciáveis, mas nem todos os presidenciáveis são candidatos. Melhor assim.