De conversa em conversa

José Horta Manzano

FHC e o Lula almoçaram juntos. E posaram para foto. E todos os veículos deram a notícia na primeira página. Assim que fiquei sabendo do encontro, minha primeira reação foi de perplexidade. “Como é que pode?”, pensei. “Parece que os dois perderam a cabeça! Com a idade, estão ficando de miolo mole.”

Dando uma vista d’olhos na imprensa, encontrei análises e reflexões sobre o almoço dos idosos. Analistas políticos reprovam. A reação generalizada é de rejeição. Cada um expõe as razões à sua maneira, mas todos torcem o nariz.

Parei pra pensar. E me lembrei de um episódio ocorrido muito tempo atrás, no final dos anos 1970, quando eu trabalhava na filial brasileira de uma indústria americana. Um belo dia, recebemos a visita de um figurão, um americano vindo direto da matriz. Dois dias depois, em reunião informal com os gerentes brasileiros, ele pediu informação sobre nosso principal concorrente, uma outra fábrica também situada em São Paulo, que produzia artigos semelhantes aos nossos.

Demos as informações. Ele então lança: “Quero ir visitá-los”. Estupor geral. Como assim? Visitar a concorrência? “E por que não?”, pergunta o estrangeiro. “Eu tomo um táxi, vou até lá, me apresento, digo em que firma trabalho, e peço pra encontrar o diretor”. Não foi fácil convencê-lo de que, no Brasil, as coisas não funcionavam daquela maneira. Não me lembro mais se ele acabou indo ou se ficou só na intenção.

Seria temerário generalizar a partir de um único caso. Mas ficou visível, no peculiar episódio da visita do americano, que o brasileiro tende a erguer barreiras que nem sempre têm razão de ser. Sem saber exatamente por que, a gente inventa que isto não pode, que aquilo não se faz, que aquiloutro não convém. São bloqueios que a gente faz por automatismo, sem pensar e sem medir.

No fundo, qual seria o motivo a nos proibir de ter uma conversa com um concorrente? Transpondo o raciocínio para o campo político, qual seria o motivo para FHC e o Lula se darem as costas e fazerem biquinho?

Volta e meia, soltamos o adágio “É conversando que a gente se entende”. Todos concordam com ele. No entanto, na hora agá, quando dois ex-presidentes que são vistos como adversários, se dispõem a trocar ideias, vem aquela torrente de protestos indignados. Não dá pra entender.

Pensando bem, acho que os dois fizeram muito bem de se encontrar, pouco importando as reclamações dos devotos deste ou daquele campo. O Brasil anda muito compartimentado. Vivemos num regime rigoroso que determina: ou você é deste lado, ou então só pode ser do outro; os daqui não podem conversar com os de lá; e vice-versa. Por que essa rijeza?

No encontro entre dois líderes políticos de correntes diferentes, realmente não vejo ameaça à democracia nem às instituições. Nem à moral, nem aos bons costumes. Tampouco vejo traição ou declaração de fidelidade. Acho que não se deve dar aos fatos mais importância do que eles têm. Não há motivo para dramatizar.

Que todos continuem a se encontrar e a conversar! É bem mais sadio do que ficar encastelado na própria bolha. Se, em vez de insultar inimigos imaginários, o capitão se dispusesse a bater um papo com eles, o Brasil estaria hoje menos crispado, e nós todos teríamos muito a ganhar. Afinal, é conversando que a gente se entende.

Homeschooling

José Horta Manzano

Não sou especialista em Educação, o que não me impede de refletir sobre a Instrução Pública com consideração e bom senso. Embarcando na onda de uma pandemia que tem fechado escolas e impedido crianças de frequentar aulas, muitos preconizam o ‘homeschooling’ – neologismo desnecessário usado atualmente para designar a escola em casa. Há gente cogitando tirar os filhos definitivamente da escola e continuar a ministrar-lhes instrução em casa.

Para dar nome aos bois, a expressão nacional (escola em casa) me parece mais eloquente do que a importada. Se alguns preferem a inglesa, será sintoma do mesmo mecanismo que transformou liquidação em sale e entrega em delivery.

O ensino que se ministra a crianças e adolescentes é assunto sério. A aparente simplicidade da atividade é enganosa: a prática é cheia de armadilhas. Um professor é formado para exercer o magistério, o que não acontece com quem não estudou as técnicas da profissão. A escola é lugar de socialização da criança e do jovem, ambiente dificilmente reproduzível no ensino em casa. A escola propõe (pra não dizer impõe) frequência regular, horários, deveres para o dia seguinte; em casa, é inviável manter toda essa disciplina a longo prazo; com o passar do tempo, o afrouxamento é inevitável.

Se a escola é ruim, que se procure outra. O que não me parece razoável é privar os filhos do convívio com a meninada e da disciplina imposta a todos. Num país socialmente tão desigual, conviver com pessoas alheias ao núcleo familiar, ainda que estejam no mesmo nível social, já é um passo em direção à socialização. O passo é tímido mas, para a criança, é sempre melhor do que ficar em casa e crescer dentro de uma bolha.

Discurso assombroso

José Horta Manzano

Hoje o Brasil acordou em efervescência por causa do discurso do presidente. Foi pronunciamento assombroso. Tome-se assombroso no sentido literal: discurso que lança sombra sobre o destino dos brasileiros; um falatório que ensombreia e apaga a luz que tínhamos esperança de ver no fim do túnel.

Não adianta procurar, na fala presidencial, algum traço de coerência: não há. Que não se busque tampouco linha de conduta ou objetivo fixado: não há.

É interessante comparar o modo de agir dos dois grandes falastrões que se sentaram na poltrona presidencial neste começo de século: Lula da Silva e Jair Bolsonaro. O Lula, finório por natureza, modulava o discurso de acordo com a plateia. Embora soltasse alguma asneira aqui e ali, era mais astuto. Sabia, por intuição, até onde podia esticar a corda; ao discursar, não costumava transgredir as regras da decência. Via de regra, seu discurso mostrava compaixão para com os menos favorecidos, atitude que invariavelmente lhe angariava simpatia. Tudo era da boca pra fora, mas isso só se soube mais tarde.

Doutor Bolsonaro tende a comportar-se como um Lula da Silva sem talento. Não é orador (mal sabe enunciar as palavras); não tem rumo; não é astuto; é fraquinho de intuição; desconhece as regras da decência; não deu mostras, até hoje, de nenhuma preocupação social. Ora, com todas essas insuficiências, a coisa se complica. Como fazer um discurso? Que dizer?

Homem de visão

Atualmente, discursos importantes estão sendo preparados por assessores de cunho radical. O problema maior é que tanto Bolsonaro quanto os que o rodeiam vivem encerrados dentro de uma bolha, fechados ao exterior, ignaros do que acontece no Brasil e no mundo. Como não têm programa nem falam para todos os brasileiros, discursos são moldados com um só propósito: alimentar a torcida alojada nas redes sociais.

No fundo, o presidente não está nem aí para o fechamento ou a abertura de comércios, transportes, serviços. Ele não vive no mundo real em que vivemos nós, mortais. Comida, na sua despensa, não vai faltar. Jatinhos da FAB suprem a falta de aviões. Seu cabeleireiro vem atendê-lo dentro do palácio. Portanto, se prega o fim atabalhoado da quarentena, é porque está tentando agradar à sua torcida.

Não tentem analisar nem encontrar lógica. Não encontrarão. Taí a razão pela qual o canal de comunicação entre o presidente e a maior parte da população está entupido. É que ele vive dentro da bolha; nós não. A lógica dos que habitam na bolha é interesseira e visa a manter privilégios. A nossa, cá fora, é de sobrevivência: gostaríamos todos de chegar sãos e salvos ao fim desta crise.

Falando em crise, quando é mesmo que o doutor vai mostrar o resultado de seu teste de Covid-19 assinado pelos diretores do hospital? Fica cada dia mais evidente que o dele deu positivo. Será que ele pretende continuar a contaminar, sem pudor, todos os que dele se aproximam? De um Bolsonaro, pode-se esperar tudo.

O pão e o brioche

José Horta Manzano

Revolution 1«Ils n’ont pas de pain? Qu’ils mangent donc des brioches!» Não têm pão? Que comam brioches!

A frase maldosa, que provavelmente nunca foi pronunciada, é atribuída a Marie-Antoinette, esposa do rei de França Luís XVI.

A rainha, de origem austríaca, era odiada pelo povo francês, que a chamava, com desdém, “a estrangeira”. Tanto ela quanto o marido foram precipitados à guilhotina, na esteira da Revolução Francesa.

O fato é que, naqueles tempos de monarquia absolutista, os do andar de cima viviam numa bolha, desconectados do povo. A população servia para fornecer combatentes para repetidas guerras. Fora isso, cada um que se virasse como pudesse.

Guardadas as devidas proporções, os altos círculos políticos do Brasil atual lembram a França pré-revolucionária do século XVIII. Basta atualizar alguns conceitos. Quer ver? Troque-se monarquia absolutista por desvario político. E substitua-se o termo ‘combatentes’ por ‘eleitores’. Pronto. Vamos reescrever a frase.

Manif 2Nestes tempos de desvario político, os do andar de cima vivem numa bolha, desconectados do povo. A população serve para pagar impostos e para votar nos candidatos “certos”. Fora disso, cada um que se vire como puder.

A frase de Marie-Antoinette também tem de ser atualizada. Fica assim: “Eles não têm escola, nem segurança, nem saúde? Que se contentem com a bolsa família!”

A fúria que se levantava contra a rainha francesa dois séculos atrás corresponde hoje à antipatia que cresce no povo brasileiro contra a presidente da República.

Guilhotina passou de moda, mas o futuro de nossa Marie-Antoinette tupiniquim não se apresenta sereno.

A bolha assassina

Ruy Castro (*)

Dilma gordaA presidente Dilma emagreceu 13 quilos em menos de dois meses. Puxados pelos índices econômicos, seu governo, sua força no Congresso e sua popularidade também emagreceram em escala equivalente. Essas quedas bruscas podem ser enganadoras, mas os observadores mais independentes consideram que Dilma já não tem muita gordura para queimar e garantem que seus índices continuarão caindo. Ainda mais agora, por ter contra si um partido capaz de tudo quando se encontra na oposição: o PT.

E é isto que torna a coisa intrigante. Dilma foi criação exclusiva de Lula – fundador, perpétuo inspirador e sinônimo do PT. Feita de barro e posta a andar com um sopro, ocupou cargos-chave nas duas administrações do criador e, por sua identificação com os princípios, programas e posturas do PT, foi duas vezes escolhida candidata à presidência pelo partido. Em ambas as campanhas, e nos dois turnos de cada, foi solidamente instrumentalizada pelos ideólogos e marquetólogos petistas – nenhuma frase, palavra ou ideia lhe saiu pela boca sem aprovação oficial.

Dilma magraInstrumentalização esta que atravessou seu primeiro governo e se materializou na chuva de benesses populistas, redução de taxas, estímulo ao consumo, vivas ao desperdício e bolsas a cair do céu para tantas categorias. Tudo proposto e aprovado triunfalmente pelo PT, e executado por milhares de militantes ocupando cada espaço da administração e reafirmando ser aquilo apenas uma fiel continuação do governo Lula.

Se, de repente, descobre-se que tal triunfalismo não passava de uma bolha, que a bolha estourou e é preciso conter o pus, por que espremer somente Dilma se, em quatro anos, ela só fez o que os companheiros achavam justo e certo?

Só falta agora que, abandonada por Lula, desprezada pelos companheiros e odiada pelo povo, Dilma engorde tudo de volta.

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista da Folha de São Paulo.