Decoro

José Horta Manzano

Nos tempos em que os povos viviam em estado de guerra permanente, era natural que o melhor guerreiro se tornasse chefe. De Júlio César, os romanos esperavam que vencesse batalhas e conquistasse territórios – o que de fato ele fez.

Dois milênios mais tarde, Benito Mussolini e Adolf Hitler ainda seguiam na mesma linha. Tinham a guerra no ADN (=DNA) e só pensavam naquilo. O primeiro anexou a Líbia e a Etiópia; o segundo assenhoreou-se da Europa quase inteira. Fizeram ambos o que deles se esperava. O comportamento de ambos coincidia com o anseio do povo. Combinava com o Zeitgeist, o espírito do tempo.

Os tempos hoje são outros. No mundo civilizado do qual imaginamos fazer parte, guerra de conquista saiu de moda. No Brasil, tirando algum devoto fanatizado, ninguém teme invasão chinesa, americana ou russa. Nem muito menos argentina, preocupação permanente de certos generais cinquenta anos atrás.

Hoje vivemos um tempo de contração, de interiorização. Nosso almejo e nossas esperanças estão voltados para dentro. Nosso sonho é alcançar uma igualdade social finlandesa, com padrão cultural francês, grau de segurança escandinavo e nível econômico americano. Quem é que não gostaria?

O valor simbólico do presidente da República equivale ao dos reis de antigamente – aqueles que eram escolhidos porque mais fortes que os demais e mais ágeis nas artes da guerra. Nossos reis de hoje têm de estar capacitados a conduzir nosso povo em direção aos padrões finlandeses, franceses, escandinavos e americanos.

Por seu valor simbólico, o presidente deveria estar assentado num degrau acima dos demais. Em países adiantados, é o que costuma ocorrer. Em países adiantados, eu disse. Por desgraça, não é nosso caso. A desigualdade social vertiginosa que perpassa nossa sociedade faz que o presidente será tanto mais apreciado quanto mais dinheiro distribua à massa de eleitores.

Quanto ao resto, se tem qualidades ou não, pouco importa. Ele está liberado para fazer o que bem entender: roubar, mentir, transgredir, agredir, regredir, tanto faz. Tudo lhe será perdoado desde que a torneirinha de onde pingam os caraminguás continue aberta.

Só isso explica que o atual inquilino do Planalto se tenha permitido, quando da live de ontem, pronunciar grosserias que nunca, jamais, em tempo algum, se ouviram da boca de um presidente do Brasil. Fico até incomodado de reproduzir aqui as palavras do doutor. Se o distinto leitor já ficou sabendo, tudo bem. Se não, boto aqui abaixo a frase presidencial. Só que, para não chocar nem envergonhar ninguém, escrevo de cabeça pra baixo. Assim, só lê quem quiser.

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Pra quem estiver lendo no telefone, é só virar o aparelho. Pra quem estiver à frente de um computador, é mais complicado. Gire o monitor ou torça o pescoço. Se não conseguir, não tem importância, não estará perdendo grande coisa. Não passa de uma ousadia a mais daquele que não tem categoria para ocupar o lugar onde está.

Nota etimológica
Decoro vem do latim decórum – aquilo que convém, que combina bem. É derivação do verbo decére, convir. Denota conveniência de atos ou de coisas, atributos do homem honrado. Esse verbo também deu decente.

Sinônimos mais ou menos próximos de decoro são: decência, honradez, dignidade, compostura, equilíbrio, vergonha, reserva, resguardo, recato, integridade, nobreza, brio, probidade, respeitabilidade, lisura, retidão, seriedade, moralidade. A lista não é exaustiva.

Agora responda sinceramente: se a frase pronunciada pelo presidente na live de 8 de outubro de 2020 não é quebra de decoro, o que será?

O fator humano ‒ 3

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Preocupado com as constantes quebras e alto custo de manutenção, o síndico apresentou em assembleia um projeto de reforma dos elevadores do condomínio. Fascinado por tecnologia, ele propôs que a reforma não se limitasse à troca de cabos e reforço da estrutura das cabines, mas que se adotasse um sistema computadorizado de acionamento, definido pelo fabricante como “elevador inteligente”.

Através desse sistema, o elevador mais próximo do piso em que o usuário está é enviado, independentemente de qual dos elevadores seja acionado primeiro. Com isso, afirmava o síndico, empolgado, seria possível não só economizar na conta de energia elétrica, mas também diminuir o tempo de espera. Isso sem contar o benefício de evitar que crianças e adolescentes ‘engraçadinhos’ brincassem de acionar os botões de todos os andares, como costumava acontecer. Até mesmo os condôminos mais renitentes deixaram-se sensibilizar e a proposta foi aprovada por vasta maioria.

Não se passaram nem quinze dias desde a implementação para surgirem os primeiros conflitos. Acostumados com antigos privilégios, alguns moradores passaram a se ressentir com a presença de empregados domésticos e de funcionários do condomínio no elevador social. No entanto, como não dependia mais da vontade destes usar este ou aquele elevador ‒ e a discriminação é vetada por força de lei ‒, perceberam que não havia o que fazer a não ser engolir o próprio desconforto.

Por outro lado, a insatisfação ganhou ares de rebelião incontrolável quando moradores se viram forçados a conviver com cães dentro do elevador. Marcou-se, então, uma nova assembleia para decidir como contornar o problema. Argumentos irados pipocavam de ambos os lados: os donos de cães alegando que era legítimo usufruir dos mesmos benefícios que os demais condôminos e estes protestando contra os “riscos” a que estavam expostos. Se você pensou que o único risco apontado era o de ser mordido ou lambido, enganou-se. Senhoras da fina flor da classe média paulistana chegaram a argumentar, angustiadas, que se sentiam expostas a riscos mais prosaicos, como o de terem suas roupas de festa contaminadas com “cheiro de cachorro” ou ainda a “má impressão” que visitantes mais bem posicionados financeiramente poderiam ter ao se depararem com um cachorro no elevador social.

Depois de horas de discussão acalorada, o próprio síndico acabou apresentando a contragosto uma solução conciliatória: o dono do cão deveria entrar no elevador, apertar o botão do último andar, sair e chamar o outro, de serviço. Mesmo sabedor de que a estratégia acarretaria aumento na conta de energia – o principal benefício alegado e aprovado para a implantação do sistema – ele a apresentou como saída temporária até que, como disse, encontrasse outra forma de tornar o elevador “menos inteligente”.

Teve início, então, a “revolta dos pet lovers”. Capitaneada por esta que vos fala, admito, a rebelião mirou a parte mais sensível do corpo dos condôminos cinofóbicos: o bolso. Ameaçamos depositar o valor mensal do condomínio em juízo até que a causa fosse julgada em definitivo, uma vez que a convenção do condomínio previa que o condômino que provocasse aumento de custos gerais deveria arcar com contribuição mensal maior. Foi o que bastou. Em poucos minutos, começaram a pipocar novas sugestões de como lidar com o conflito de interesses.

A solução vencedora revelou-se um primor de sensatez, uma obviedade tão explícita que ninguém ousou refutar: negociação caso a caso. Ou seja, sempre que, ao entrar no elevador, o dono de um cão encontrasse um morador já em seu interior, deveria perguntar se ele aceitava compartilhar o espaço com um cachorro. Caso recusasse, bastaria fechar a porta e aguardar pela chegada do seguinte.

Até hoje, passados já alguns anos, nunca mais se teve notícia de incidentes ou reclamações.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Os coxinha

José Horta Manzano

Este blogueiro é do tempo em que ascensão social não rimava necessariamente com geladeira em casa nem se restringia a adquirir bens de consumo. Gente fina sabia se comportar. Quem não sabia fazia questão de imitar a boa postura e o falar que lhe pareciam corretos. Palavrão e palavreado chulo, nem pensar: eram reservados pra discussão de boteco.

As pessoas de poucas letras procuravam se esmerar. Conheci gente simplesinha que, num fenômeno que gramáticos chamam de hipercorreção, pronunciavam «galfo» em vez de garfo. Era na intenção de não fazer feio. Em resumo, a evolução não devia se limitar ao aumento do saldo bancário ‒ devia atingir diferentes facetas.

Faz uns meses, o Brasil inteiro tomou conhecimento de conversa telefônica entre dona Marisa Lula da Silva e um dos filhos. O palavreado não era edificante. Entendo que a família Lula da Silva tenha origem humilde. Isso não é defeito nem doença ‒ tem remédio e tem cura.

Marisa Leticia 1O fragmento de diálogo deixou claro que os mais de trinta anos de ascensão social não foram suficientes para elevar o nível de compostura da família. Terão certamente adquirido geladeira e talvez tenham até dispensado o pinguim que costumava morar em cima. Mais que isso, dizem as más línguas que têm apartamento na praia, sítio com pedalinhos e até algumas dezenas de milhões encafuados por aí.

Quanto ao palavreado entre mãe e filho, é consternador. Não se bonificou com a ascensão da família. Meus distintos leitores com certeza ficaram chocados. Durante os oito anos(!) em que foi primeira-dama do país, aquela senhora permaneceu enclausurada em inexplicável mudez. Hoje, entende-se por quê. Foi melhor assim.

De ex-primeira-dama flagrada soltando palavrão, seria de esperar que se envergonhasse e se escondesse debaixo da cama até baixar a poeira. Com o tempo, tudo se esquece. Espantosamente, não é o que se viu. A referida senhora teve a petulância de pleitear, junto à União, indenização por danos morais. Reclama trezentos mil reais.

É o mundo de ponta-cabeça. O maltratado cidadão brasileiro, chocado e machucado pelo palavreado chulo da ex-primeira-dama, é conclamado a abrir a carteira para indenizá-la. É caso paradoxal em que o ofendido é obrigado a ressarcir o ofensor.

Observação
A Advocacia-Geral da União acaba de dar parecer contrário ao pleito da ex-primeira-dama.