Anestesiados

José Horta Manzano

Nunca vi guerra. Imagino (e espero) seja também o caso do distinto leitor. Dizem que os que viram guerra por dentro se assustam no começo, mas acabam por habituar-se com bombardeios e atrocidades de arrepiar o cabelo.

Isso também vale para outras situações. Por exemplo, quem tem a janela da sala dando pra uma avenida barulhenta já nem se dá conta, depois de algum tempo, do ruído contínuo.

O Insper publicou recentemente uma pesquisa intitulada Vitimização em São Paulo ‒ 2018. O estudo traz um dado estarrecedor. Atesta que 48% dos paulistanos já foram alvo de roubo ou furto pelo menos uma vez na vida. Metade dos habitantes da maior cidade do país! Um em cada dois!

E olhe que, nas outras metrópoles brasileiras, não deve ser muito diferente. Até cidades menores estão entrando nas estatísticas fúnebres. Para quem vive fora do país, como eu, é situação impressionante, difícil de conceber.

Nas muitas décadas em que tenho visto o Brasil de longe, não assisti a nenhum assalto nem me lembro de ter conhecido alguém que tenha sido assaltado. Que fique claro: não vivi num convento, mas em cidades comuns. Por aqui, assalto a mão armada sai no jornal televisivo da noite e deixa a população traumatizada.

Percebo que a população brasileira está habituada com essa barbaridade. Anestesiados, os honestos cidadãos acabam aceitando a situação, consolando-se com a (falsa) ideia de que «nas grandes cidades do mundo inteiro também é assim». Não é.

O problema no Brasil é complexo. Infelizmente, na atual temporada de eleições, não vejo nenhum candidato tratando a raiz da questão. Trancar-se em casa, levantar muros eletrificados e chamar o Exército é paliativo que não enfrenta nem resolve o problema. O buraco é bem mais embaixo.

Gostaria que candidatos mostrassem disposição pra integrar esse estrato da população que vive nas fímbrias da sociedade. Falo dessa juventude que, sem formação, sem trabalho, excluída e sem perspectiva, descamba para o crime. Infelizmente, parece que os do andar de cima ainda não se sensibilizaram com a situação. É pena.

Segundo turno

José Horta Manzano

A Constituição em vigor, promulgada em 1988 e dita «cidadã», respondia às aspirações e às necessidades da época. Considerando aquele momento histórico, com um Brasil recém-saído de longo período autoritário, a Lei Maior foi uma conquista e tanto. Aos constituintes ‒ e ao povo também ‒ pareceu que o período de trevas estava superado. Em certo sentido, estava. Só em certo sentido.

Urna 2Passaram-se já quase trinta anos. O mundo mudou e o Brasil também. Algumas das transformações foram pra lá de positivas; outras, menos. Temos menos analfabetos que antes, coisa boa. O aumento do número de escolas superiores subiu degraus de dois em dois, mas fica a desagradável impressão de que o iletrismo subiu de elevador. Um exemplo ilustra o drama. Temos bacharéis em Direito às baciadas, porém, de cada 10 candidatos, 9 são reprovados no exame que lhes daria o direito de exercer a profissão. É estonteante.

A Constituição já foi emendada e remendada numerosas vezes, mas parece saco sem fundo: a cada dia aparece um escolho, um pedregulho, um paralelepípedo no caminho. Dado que a convocação de nova assembleia constituinte não está prevista para tão já, o remédio é continuar remendando.

Um detalhe que volta à ordem do dia a cada quatro anos me incomoda. Reapareceu domingo passado, quando das eleições gerais para prefeito e vereador. O texto constitucional determina que apenas municípios cujo eleitorado supere 200 mil inscritos têm o privilégio de promover um segundo turno de votação, caso nenhum dos pretendentes tenha atingido maioria absoluta. Por que só grandes aglomerações beneficiam da medida?

Chamada Estadão, 4 out° 2016

Chamada Estadão, 4 out° 2016

Por décadas, eleições majoritárias se fizeram em turno único. Megalópoles, como São Paulo, já tiveram prefeito eleito com menos de 30% dos votos. É situação inconcebível hoje. Ignoro qual tenha sido a intenção do legislador ao restringir o segundo turno a 92 municípios. Se foi evitar gastos, foi decisão furada. Não há preço que pague a legitimização que um segundo turno traz. O ungido terá recebido, necessariamente, a benção da absoluta maioria dos governados.

Ademais, custos são relativos. Numa metrópole, campanhas custam os olhos da cara. Já em pequenos municípios, o gasto é infinitamente menor. A equidade ensina que todos os cidadãos devem ser submetidos às mesmas leis e que todos merecem receber o mesmo tratamento. Esse equilíbrio não será atingido enquanto o legislador não estender a todos os municípios o direito de realizar dois turnos de eleição a fim de legitimar o prefeito.

Interligne 18cPara completar
Os eleitores inscritos nos grandes municípos, com direito a dois turnos, são 54,3 milhões. O eleitorado total atinge 144 milhões. O resultado é que, grosso modo, menos de 38% da população tem prefeito legítimo e incontestável, eleito com maioria absoluta. Os 62% restantes ficam de fora. Têm de se contentar com um prefeito assim assim.

Falta espaço

José Horta Manzano

Quem já teve ocasião de chegar a Londres de avião deve ter reparado ― se o tempo estava claro e sem névoa, coisa rara por aquelas bandas ― que a metrópole britânica é composta de casinhas baixas, cada uma com seu jardinzinho e muitas com quintal.

Como é possível que uma aglomeração de mais de 12 milhões de almas possa se dar ao luxo de ter aquela multidão de casinhas, cada uma com seu terreno, sua grama e suas flores? É ainda mais intrigante se pensarmos que o Reino Unido, com uma superfície comparável à do Estado de São Paulo, abriga 60 milhões de habitantes.

E a Europa, então, com seus 750 milhões de viventes? Deveria ter a aparência de um formigueiro, mas não tem. Qual é o segredo?

Aglomeração urbana em pouco espaço

Aglomeração urbana em pouco espaço

Uma dispersão populacional lenta, como a Europa conheceu ao longo dos últimos dois milênios, favorece o estabelecimento dos habitantes de maneira pouco concentrada, mais equilibrada. Já o povoamento rápido que caracterizou o Brasil no século XX privilegiou o inchaço de aglomerações.

Entre 1900 e os dias atuais, a população europeia não chegou a dobrar ― seu aumento foi de 76%. No mesmo período, a população do Brasil mais que decuplicou, num aumento superior a 1000%. As cidades oferecem melhores perspectivas que o campo. É compreensível que os numerosos novos habitantes de nosso País, imigrantes ou nascidos na terra, tenham preferido aglomerar-se em meio urbano.

A enorme procura por espaço para morar, aliada à precariedade dos transportes, faz que o preço da terra suba às alturas. O resultado é que os terrenos oferecidos têm superfície ridiculamente exígua. Casas e prédios são construídos praticamente colados uns aos outros, dando esse aspecto apinhado, que lembra vagamente a China ou a Índia.

Nosso País é palco de contrastes difíceis de explicar a olhos estrangeiros. Latifúndios de milhares de hectares se estendem pelo interior das terras, vazios, sem um casebre para contar a história. Pode-se percorrer quilômetros sem encontrar vivalma. Os brasileiros se amontoam em aglomerações ultradensas, dentro de perímetros minguados, fato que contribui para estimular comportamentos agressivos e suas nefastas consequências.

Não só as pessoas vivem empilhadas, mas também as plantas, como nos mostra artigo publicado no Correio Braziliense.

Plantas em pirâmide Crédito: Correio Braziliense

Plantas em pirâmide
Crédito: Correio Braziliense

Alguns até podem encontrar uma certa beleza plástica nesse estado de coisas, mas não passa de estética. No fundo, o bom mesmo é viver em sua casinha, com seu jardinzinho, sem vizinho em cima, sem vizinho embaixo, com espaço para abrir os braços.

Infelizmente, a persistir o estado calamitoso do transporte público nas aglomerações brasileiras, a casinha com terreno generoso ainda é um sonho longínquo.

Alvíssaras!

José Horta Manzano

Séculos de presença árabe na Península Ibérica deixaram marcas. Visitas tão demoradas não se esquecem assim tão facilmente. O tempo se encarregou de apagar muita coisa, mas a língua tratou de guardar o que lhe pareceu apropriado. Entre milhares de termos, expressões, palavras, uma cai especialmente bem hoje. Alvíssaras!Visages

Os dicionaristas não são uníssonos quanto à origem da expressão. Para o Houaiss, o Aulete e o Priberam, virá do árabe al-bixra ou al-buxra. Para o Aurélio, o termo é descendente de al-basara. Pouco importa. Todos concordam que se trata de uma boa nova. Uma excelente nova!

A notícia, publicada pelo Estadão de 28 de janeiro e repercutida por Exame e pela Veja, é um começo de uma suspeita de uma esperança de um início de um primórdio do advento de uma solução para o gravíssimo problema da concentração urbana que marca o Brasil atual.

A falta de visão ― sempre ela! ― que caracteriza nossos governantes desde Tomé de Souza gerou um filhote bastardo: a falta de planejamento. Bastardo ou legítimo, o fruto não costuma cair muito longe da árvore. Temos aí mais uma prova. Governantes que exercem sua função com a ideia única de enricar e de preservar seu poder não se preocupam em preparar um futuro melhor para seus governados.

O vácuo total de planificação do crescimento populacional de nosso País engendrou uma desorganização na implantação da infraestrutura. Enquanto algumas poucas regiões concentram uma oferta regular de serviços básicos, outras carecem do estrito necessário. O Brasil, potência econômica de que mutos se orgulham, tem ainda municípios sem esgoto, sem água tratada e até sem estrada de acesso. Um desequilíbrio incompreensível. Visível e perigoso.Multidão

A atração que os centros dotados de alguma oferta de serviços tem exercido, ao longo das décadas, é irresistível. O resultado é o inchaço desmedido de algumas concentrações humanas e o despovoamento de territórios inteiros, largados ao deus-dará.

Não é fenômeno exclusivamente brasileiro, longe disso. É característica dos países do Terceiro Mundo, hoje pudicamente chamado de «países em desenvolvimento» ou até, com certo exagero, de «nações emergentes».

A concentração de multidões em espaço exíguo acaba por provocar efeito perverso. Ao invés de se elevar, o nível dos serviços decai. Ao final, o que se vê é um amontoado humano em que uns poucos bem-nascidos ou bem-sucedidos se locomovem em helicóptero, enquanto aos demais resta apinhar-se em sacolejantes e improváveis transportes coletivos. Lentos, ruidosos, desconfortáveis e sobretudo perigosos.

A melhor notícia do dia ― e das últimas semanas ― é a intenção do governo paulista de implantar 400km de linhas férreas radiais regionais, a partir da capital do Estado. Entendamo-nos bem: estamos, por enquanto, na fase das boas intenções. Nada nos garante que o desafogo da região central venha a ser realidade tão já.Multidão 2

Assim mesmo, intenção por intenção, essa é das boas. Caso ― digo bem: caso ― se concretize, servirá de exemplo para outras concentrações populacionais por esses brasis afora.

Resta-nos esperar que não esteja longe o dia em que nossas «metrópoles», de que tantos parecem se orgulhar, perderão suas características africanas e se aproximarão de padrões aceitáveis.

Alvíssaras, pois! Pior que está não fica. O resto se vê depois.