Telegrã

José Horta Manzano


Sinopse
Este artigo é um pouco mais longo que o habitual. Para o caso de o distinto leitor estar sem tempo, digo logo do que se trata. Falo da rede social Telegram e de sua (quase) ausência de controle. Contabilizo o potencial de delinquência contido em certos grupos que lá se aninham: nazistas, pedófilos, traficantes de droga & alia. Dou minha opinião sobre o perigo que isso representa – ou não.


Faz alguns dias, li n’O Globo um artigo inquietante, que ensinava como funciona a rede social Telegram. Ao ler aquilo, qualquer vivente dotado de bom senso fica de cabelo em pé. Quem, como este blogueiro, não tem nenhuma intimidade com as redes ditas “sociais” (que alguns consideram “associais”) se sente realmente desconcertado. Quem diria que eu ainda havia de viver pra ver isso.

O distinto leitor talvez ache estranho que eu não tenha disposição pra me inscrever num desses clubes. É que sempre fui avesso a tudo o que se assemelhasse a agrupamento, rede, associação, círculo, assembleia, sociedade, federação, partido, seita, corporação, religião – enfim a tudo o que juntasse gente compelida a pensar como os correligionários e a agir como eles. Prefiro continuar observando de longe.

Sociais ou não, essas redes ainda não conseguiram despertar meu interesse. Um dia, quem sabe. Por enquanto, o momento não chegou. Para mim, feicebúqui, instagrã, tique-toque ou telegrã são filhotes da mesma ninhada. E se parecem todos.

Foi o que sempre achei. Só que não. A leitura do mencionado artigo me ensinou que o Telegram é um caso à parte, um estranho nessa ninhada de iguais, um clube destinado àqueles que estão mais pra bandido que pra gente fina. Que me perdoe o leitor que se inscreveu nesse clube! Não tenho intenção de ofender ninguém. Mas, salvo erro ou omissão, o tal de Telegram é orientado para um público marginal – não necessariamente no sentido de meliante, mas daqueles que vivem à margem da sociedade.

A rede Telegram foi fundada por dois dois irmãos russos em 2013, faz menos de 10 anos. Como as coisas evoluem rápido neste século! Não funciona em Moscou, em endereço com rua e número conhecidos. Atualmente está abrigada “na nuvem”. Nos últimos anos, mudou frequentemente de jurisdição, o que não costuma ser bom sinal. Neste momento, tem endereço físico em Dubai. Não posso garantir, mas acredito que, naquela cidade artificial do desértico Oriente Médio, o máximo que se vai encontrar é uma caixa de cartas.

A particularidade do Telegram é a (quase) total ausência de controle do que dizem ou escrevem os usuários. O espaço está aberto a todas as liberdades. Só que tem um problema: apesar da liberdade de postagem praticamente total, há linhas de conduta que o bom senso não admite que sejam transpostas. Cabe a cada usuário fixar os próprios limites. O resultado é que, na quase ausência de moderação, os maus modos de alguns podem causar dano à maioria.

Além de abrigar gente fina e bem-intencionada, Telegram acolhe também gente ligada a submundos que nossa civilização condena. Há grupos de pedofilia, de incesto, de venda de drogas online, de tráfico de receitas médicas para remédios tarja preta; há círculos de entusiastas do nazismo e do fascismo (será que sabem o que é isso?); há panelinhas que exigem armas para todos e que pregam resistência à vacina contra a covid. Nesses grupos, encontra-se tudo o que não for recomendável. Todos postam e propagandeiam abertamente, sem restrições.

Quando se vê todo esse submundo se agitando, com a porta aberta para quem quiser participar, corre um frio na espinha. Só que…

Só que, deixando o frio da espinha pra lá, resolvi analisar um pouco mais profundamente. Em fulgurante ascensão, o Telegram já está instalado em 53% dos smartphones do país. Não conheço o número exato de smartphones instalados no Brasil. Um artigo da revista Época garante que, em 2019, havia 230 milhões em uso. Em termos práticos, tirando um ou outro indivíduo fora dos padrões, pode-se considerar que toda a população carrega no bolso (ou na bolsa) um desses aparelhos inteligentes.

Agora vamos ver quantos são os participantes desse “deep web” fomentado pelo Telegram, essa rede semiclandestina, de odor desagradável.

No quesito de sexualidade esquisita, que incluiu estupro de adolescentes, incesto, pedopornografia e outras extravagâncias que nossa civilização condena, há um total de 38.000 inscritos.

No tópico doutrinas fora de esquadro, que inclui antissemitismo, supremacia espiritual, nazismo, fascismo, veneração a Adolf Hitler e outros discursos de ódio de mesmo jaez, há um total de 26.000 inscritos.

O capítulo do porte (e uso) de armas, que compreende imagens de tortura e execuções mas também grupos que se interessam pelo comércio de armas de todo tipo com as respectivas munições, há um total de 45.000 inscritos.

No grupo dos bobões antivacina há pouca gente. Digo bobões porque todos eles já foram vacinados zilhões de vezes contra doenças variadas: tuberculose, varíola, hepatite, doenças infantis & outros bichos. Se tivessem condições de dar um pulinho no Quênia, para um foto-safári, espichariam o braço sem hesitar pra receber a vacina contra a febre amarela. No entanto, talvez por inspiração de um certo capitão boçal, dizem não à vacina anticovid. São poucos, evidentemente. Só 38.000, que ninguém é besta.

O grupo mais numeroso – como seria de adivinhar – é o dos adeptos do comércio clandestino. A imensa maioria corre atrás de filmes ainda não disponíveis em canais oficiais; procuram fazer como esses que instalam um “gato” pra furtar imagens da residência vizinha. Nesse universo, ainda há os traficantes de entorpecentes (e seus compradores), os que tentam obter dados pessoais de outras pessoas, os que se interessam por remédios tarja preta e, pasme!, os que compram e vendem cédulas falsas. Para mim, este é o grupo dos picaretas. Numerosos, seus adeptos chegam a 150 mil indivíduos – um total equivalente ao de todos os outros grupos reunidos.

Bom, agora vamos aos finalmentes. Somando os inscritos nas categorias que o Telegram permite (e que outras redes dificilmente tolerariam), não chegamos a 300 mil pessoas. Atenção: dado que um mesmo assinante pode aparecer em mais de uma categoria, o total periga ser menor.

Vamos agora calcular quanto representam esses 300 mil aprendizes infratores no universo dos 230 milhões de smartphones. Representam por volta de 0,1% (zero vírgula um porcento) dos brasileiros.

Um infrator é sempre um infrator, assim como um bandido é um bandido e um assassino é um assassino. Mas vamos “botar a bola no chão”, como diz o outro. Esses 0,1% de conterrâneos não estavam à espera da chegada de Telegram para se tornarem, da noite para o dia, pedófilos, falsários, traficantes ou adoradores de Hitler. Como faziam antes? Não sei, mas deviam ter seus canais. Usavam códigos. Botavam anúncio cifrado nos Classificados do Estadão, como se fazia antigamente. Se viravam.

A conclusão à que quero chegar é que Telegram não inventou a delinquência, assim como as redes sociais não inventaram o ódio, nem Bolsonaro inventou a corrupção. Todas essas pragas pré-existiam. O que mudou foi só o canal de expressão. Se Telegram desaparecer amanhã, no dia seguinte nova rede vai substituir. E assim caminha a humanidade.

Observação
Até que não é má ideia deixar que esses indivíduos que atuam à margem da lei se exprimam com liberdade. As autoridades que cuidam de reprimir certos excessos poderão, na pior das hipóteses, saber quantos são. E, na melhor das hipóteses, colher os delinquentes com a boca na botija.

Fonte: Artigo d’O Globo.

No topo da Terra ‒2

José Horta Manzano

Mensalão, Lava a Jato, Petrolão, impeachment, é golpe, não é golpe, é traição, não é, é salvação da pátria, voto por minha mãezinha, voto por meu neto que está por nascer, voto pelo bom povo de minha querida cidade, prefiro uma suíte de hotel de luxo, prefiro um sítio em Atibaia, prefiro um pedalinho de lata… Ufa!

Se o distinto leitor está ‒ como eu ‒ exausto de ler, todos os dias, notícias que nada mais são que variações sobre o mesmo tema, tenho uma solução. Dá um pouco de trabalho, mas resolve.

2016-0424-02 IslandPrimeiro, dedique-se, corpo e alma, ao estudo da língua islandesa. Não é fácil, mas também não é nenhum bicho de sete cabeças como chinês ou vietnamita. Uma vez adquirido razoável controle da língua, abandone a mídia brasileira. Essa é a parte mais agradável: é como jogar mágoas na cachoeira.

A partir daí, deleite-se com a mídia islandesa. Crônica policial? Dois acidentes de circulação ocorreram ano passado, causados por motoristas distraídos em conversar ao celular. Fora isso, tudo em ordem, tudo na santa, nada escabroso, nada raivoso, nada nojento.

Aí vem o melhor de tudo: fora uma ou outra (rara) menção ao futebol, nenhuma notícia sobre o Brasil. A mais recente que encontrei foi dada mais de três meses atrás. Conta a história de um casal islandês preso em Fortaleza por se estar preparando para voltar à terra natal carregando oito quilos de cocaína na bagagem.

Islândia 7O artigo não deixa claro como é possível que os dois tenham sido apanhados ainda no hotel, antes de se apresentarem no aeroporto. A polícia, naturalmente, confiscou a droga, os celulares e os 50 reais que encontrou. Nenhum artigo islandês posterior informa se os estrangeiros continuam presos.

Dado que, no Brasil, esse tipo de notícia já não impressiona ninguém, vai ser difícil conhecer o fim da história. Fica como sinfonia inacabada. Cada um que use a imaginação pra dar o fim que lhe parecer mais conveniente.

Enquanto isso, temos de consolar-nos com mensalão, Lava a Jato, petrolão, impeachment, golpe e voto pelo neto que está por nascer.

As balanças de dona Dilma

José Horta Manzano

O braço armado da Justiça indonésia aplicou ontem a pena capital a meia dúzia de indivíduos. Todos eles haviam sido condenados por infração gravíssima à lei nacional que reprime a produção e o tráfico de drogas entorpecentes.

Entre os executados, estava um conterrâneo nosso. Traficante multirrecidivista, o moço estava preso e condenado havia mais de dez anos. Iludido pelo clima tropical, imaginou que sua saga teria o desfecho usual no Brasil: a impunidade e o apagamento da memória.

Deu-se mal. Assim como nem tudo o que reluz é ouro, clima quente não é automaticamente sinônimo de justiça mansa. Que o diga a cidade-estado de Singapura, aquela onde quem atira papel na rua paga multa de mil dólares.

Dilma indignadaDona Dilma – aquela que já integrou milícias cujo intuito era eliminar inimigos a tiros – «indignou-se». Chamou para consultas seu embaixador em Djacarta. Não há que pasmar: faz parte do jogo. Em código diplomático, significa que o Brasil está descontente. Daqui a algumas semanas, quando a poeira tiver baixado, o embaixador volta a seu posto, e vira-se a página.

A boa notícia é que dona Dilma já não parece mais raciocinar como fazia nos anos 1970. Já abandonou a ideia de que a solução tem de passar pelo estampido das armas. A má notícia é que dona Dilma tem várias balanças – nem todas aferidas pelo mesmo gabarito.

De fato, não me lembro de jamais ter lido uma linha sobre eventual «indignação» presidencial em referência aos mais de 150 assassinatos que ocorrem todos os dias no país que ela mesma governa há mais de quatro anos.

São cento e cinquenta execuções. Por dia. Ontem, hoje e amanhã também. Sem processo, sem condenação, sem habeas corpus, sem advogado, sem embargos infringentes. Sem «indignação» presidencial e sem recolha de embaixador.

Ah, essas balanças desreguladas… Faz-se urgente a criação de um Ministério de Pesos e Medidas.

Rapidinha 14

José Horta Manzano

Reportagem do Estadão botou a boca no trombone. Alertou autoridades para um comércio de gênero peculiar que se desenrola, diário e clandestino, na noite paulistana. Ao ar livre, em plena rua da região central do município.

Peixoto GomideVende-se droga ― da pesada ― a quem quiser. Milhares de habitués frequentam o ponto pra lá de conhecido. É curioso que autoridades policiais, justamente pagas para zelar pelo respeito à lei e às regras, não estivessem a par. Uma desatenção, certamente. Ficam devendo um favor ao jornal que pôs o dedo na ferida.

Antes tarde que nunca: agora já sabem. O governador do Estado, num daqueles pronunciamentos transcendentes, declarou solenemente que «o tráfico de drogas é crime e precisa ser combatido». Prometeu tomar as devidas providências.

17 fev° 2014 ― Chamada Estadão

17 fev° 2014 ― Chamada Estadão

Vamos torcer para que, em breve, a feira livre das drogas se transforme numa feira livre das drogas.

PS: Ah, a falta que um hífen faz!