Cuspido e escarrado

José Horta Manzano

A Folha de SP publicou um excelente artigo assinado pelo jornalista Mario Sergio Conti. “Bolsonaro é um personagem cuspido e escarrado de Shakespeare” é o título. Se o leitor não é assinante da Folha e gostaria de ler o texto, faça-me saber. Mando por email.

Espirituoso, o título faz menção a uma expressão que se ouve de tempos em tempos. “Cuspido e escarrado”; dito assim, parece meio nojento, não? Usa-se para comentar que uma pessoa se parece muito com outra. A maior parte das vezes, se diz que o filho é o “retrato cuspido e escarrado” do pai. Mais raramente, usa-se também pra comparar pessoas que não são parentes. De onde será que vem essa esquisitice?

Há diversas versões da origem da expressão. A mais comum explica que seria uma corruptela de “esculpido em [mármore de] Carrara”, sabendo-se que a região de Carrara (Itália) é mundialmente conhecida por abrigar afloramentos de mármore de boa qualidade. Embora muitos acreditem nessa explicação, não me parece verdadeira.

Já veremos por quê. Outra versão, mais sofisticada e até apoiada por gente que entende do assunto, ensina que a expressão é corruptela, sim, mas de “esculpido e encarnado”, como a significar que as duas pessoas se parecem tanto que é como se a segunda fosse uma estátua representando a primeira, uma estátua que ganhou alma. Muita gente, como eu disse, só jura por esta segunda hipótese. Sob risco de decepcioná-los, não acredito que seja verdadeira.

Curioso que sou nesse assunto, cogitei durante um bom tempo. Um dia, bobamente, me dei conta de que, em francês, quando alguém – geralmente um filho – é parecidíssimo com o pai, diz-se que ele é le portrait craché de son père – o retrato cuspido do pai”. Vai daí, constatei que o inglês e o italiano têm expressões na mesma linha. O inglês tem spitting image – imagem cuspida” e o italiano, ritratto sputato – retrato cuspido”.

Foi quando a suposta coincidência me pareceu grande demais. Acabei descobrindo que há uma teoria que assimila o ato de cuspir à ejaculação. Uma cuspida seria símbolo da procriação – portanto, da geração de um filho. Pode até ser, mas fico um pouco desconfiado. Não tenho muita tendência a acreditar nisso. Se assim fosse, a expressão só valeria para comparação de um rebento com seu pai, nunca com sua mãe. No entanto, “é o retrato cuspido e escarrado da mãe” se usa também. Ou do irmão, do tio, do primo. Como é que fica, então?

Bem, pouco importam essas minúcias. Acho que é importante saber que a expressão não tem a ver com mármore de Carrara, nem com escultura, nem com encarnação. É de origem muito antiga e está presente em pelo menos 4 línguas europeias: português, francês, italiano e inglês. De outras, não sei.

Expressões costumam ser saborosas. São elas que dão sal e pimenta ao falar de todos nós.

The clown

José Horta Manzano

«A clown elected twice to Brazil’s Congress under the slogan “It can’t get any worse” apparently feels that it did. He says he is too embarrassed by his fellow lawmakers to run again.»

«Um palhaço eleito duas vezes para o parlamento brasileiro com o slogan “Pior não fica” dá a entender que, sim, ficou pior. Decepcionado com os colegas parlamentares, ele declara que não vai mais se candidatar.»

Essa é a abertura do artigo em que o britânico Daily Mail comenta a fala de ontem do deputado Francisco Everardo Oliveira Silva ‒ o Tiririca. Com efeito, o jornal tem razão ao confirmar que a situação piorou. No entanto, omite o fato de nosso Tiririca, em sete anos de atuação como deputado federal, nunca ter subido ao púlpito para um pronunciamento.

Não consta que ele tenha apresentado projeto para coibir comportamentos que lhe pareciam aberrantes. Não consta que tenha alçado a voz para denunciar procedimentos fora de esquadro. Admira que tenha levado sete anos(!) para captar o que lhe ocorria à volta. Espanta mais ainda que sua reação seja dar as costas, abandonar a arena e deixar que outros resolvam o problema.

O palhaço mostrou que é puro produto do meio em que nasceu e cresceu. É o retrato «cuspido e escarrado»(*) do brasileiro médio. Contentou-se em usufruir das benesses do cargo, do confortável salário acrescido de penduricalhos, das passagens aéreas de favor, dos assessores e das secretárias, do auxílio-moradia, do gabinete em palácio, da imunidade parlamentar. Tranquilo, permaneceu no seu canto à espera de que “alguém” tomasse uma atitude.

A simplicidade e a passividade com que o palhaço encara a sociedade são o exemplo acabado da maneira como se comporta o grosso dos conterrâneos. Não se dando conta de que cada um faz parte do processo, limitam-se todos a reclamar, a espernear, a criticar, sem perceber que uma atitude proativa seria mais eficaz. O deputado Francisco Everardo fez exatamente o que faz a maioria, com o agravante de ter tido nas mãos o poder de influir nos rumos da nação. Acomodado, fez cara de paisagem e deixou que outros agissem.

É afligente, deputado! Decepcionados estamos nós. Desesperançados devem estar os quase dois milhões de cidadãos que lhe confiaram a incumbência de representá-los em Brasília. A atuação do nobre parlamentar mostrou que a diferença entre nosso Congresso e um picadeiro está cada dia mais tênue.

Expressão popular
(*) Há quem afirme que a pitoresca expressão «cuspido e escarrado» seja corruptela de «esculpido em [mármore de] Carrara». A hipótese é tentadora, mas parece-me pouco provável.

O que me faz desconfiar é o fato de a expressão correspondente na língua francesa ser justamente «craché» ‒ cuspido. Para dizer que o filho é a cara do pai, o francês dirá: «C’est le portrait craché de son père» ‒ é o retrato cuspido do pai.

E aí, como é que ficamos? Esculpido aqui e cuspido lá? Tenho minhas dúvidas.

Verde e amarelo

José Horta Manzano

Você sabia?

Todos aprendemos que as cores de nossa bandeira têm, cada uma, seu significado. O verde de nossas matas, o amarelo de nosso ouro, o azul de nosso céu. É ou não é? Pois fique sabendo que essa explicação, bonitinha e didática, foi forjada pelo menos 70 anos depois da escolha das cores. A origem é bem diferente.

Quando o Brasil se tornou independente, em 1822, não fazia mais sentido conservar a bandeira portuguesa como símbolo nacional. Como desenhar o novo estandarte?

Brasil - Bandeira do Império

Brasil – Bandeira do Império

Dom Pedro, autoproclamado imperador e defensor perpétuo da nova nação, cuidou do assunto pessoalmente. O Império não dispunha de profusão de pintores, desenhistas. Um dos raros artistas presentes em território nacional era o pintor francês Jean-Baptiste Debret, que vivia no Rio de Janeiro. Foi encarregado por Sua Majestade Imperial de conceber o novo símbolo nacional.

Para as cores, Debret foi buscar inspiração na junção de dinastias que reinavam na nova terra. Verde era a cor da Casa de Bragança, à qual pertencia o imperador. Amarelo era a cor dos Habsburgos, linhagem da qual provinha a Arquiduquesa Maria Leopoldina, sua esposa.

A escolha das cores básicas estava prontinha: verde para ele, amarelo para ela. Restava dispô-las na nova bandeira. Pela tradição portuguesa, a figura masculina costumava ser simbolizada por um quadrado ou por um retângulo, enquanto o losango figurava o sexo feminino.

Brasil - Brasão do Império

Brasil – Brasão do Império

O pintor-desenhista não teve dúvida: inscreveu um losango amarelo num fundo verde. Para evocar a antiga metrópole lusa ― afinal, Dom Pedro era filho do rei de Portugal ―, Debret ornou o centro da bandeira com um brasão que conservava tanto a cruz da medieval Ordem de Cristo quanto a esfera armilar, símbolo adotado pelos lusitanos desde os tempos das grandes navegações.

Encimou a insígnia com a coroa imperial incrustada com diamantes e arrematou o conjunto com uma cruz dourada no topo. As laterais foram ornamentadas com ramos de café e de tabaco, as riquezas da nova terra. Dezenove estrelas brancas sobre fundo azul foram dispostas em círculo. Cada uma simbolizava uma província.

Não precisa ser extremamente observador para constatar que a bandeira brasileira atual é filha legítima do estandarte imperial. Cuspida e escarrada(*), como diz o povo.

Após o golpe de 15 de novembro de 1889, os que tomaram o poder simplesmente removeram o brasão imperial e o substituíram pela representação da abóbada celeste. A ideia de fazer representar cada estado por uma estrela não é exatamente original. Já estava em vigor fazia mais de um século nos Estados Unidos e já aparecia em redor do brasão imperial. Sempre brancas sobre fundo azul.

Como se vê, a explicação oficial nem sempre coincide com a verdade histórica. Não ficaria bem ensinar aos aluninhos da escola elementar que nossa bandeira conserva cores de dinastias varridas pelo golpe militar que nos impôs o regime republicano.

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(*) A explicação mais convincente que encontrei para a estranha expressão «cuspido e escarrado», usada quando duas pessoas ou duas coisas se parecem muito, é «esculpido em carrara». Faz alusão a uma estátua entalhada em mármore de Carrara. O próprio de uma estátua de pedra é, naturalmente, ser muito parecida com o modelo.