Romaria

A basílica de Santiago de Compostela

José Horta Manzano

Na tradição cristã, São Tiago Maior foi um dos doze apóstolos de Jesus, um dos mais chegados ao Mestre. Nasceu nas terras áridas da Palestina, região onde viria a ser martirizado com pouco mais de quarenta anos de idade. Conta a lenda que teria vivido alguns anos espalhando a nova fé na Hispania – a atual Espanha, então província romana. Morto o apóstolo, seguidores dedicados teriam carregado seus despojos para enterrá-los na região onde ele havia passado grande parte da vida e onde posteriormente se formou uma cidade que leva seu nome: Santiago de Compostela (Galiza, Espanha).

No centro da cidade, ergue-se monumental catedral onde estão custodiadas relíquias do santo. Faz mais de um milênio que a devoção por São Tiago é forte entre os cristãos europeus. Já na época de Carlos Magno, no século 9°, havia gente que se abalava de muito longe numa peregrinação que podia levar meses, para chegar à Galiza e recolher-se junto às relíquias do santo. Dirigentes europeus incentivavam essa devoção, principalmente numa época em que a expansão islâmica ameaçava o continente. Um povo coeso e aglutinado em torno da fé é poderosa arma para enfrentar invasões – já conjecturavam os antigos.

A tradição da visita ritual a Santiago de Compostela nunca esmoreceu. Até hoje, no século materialista em que vivemos, muitos e muitos romeiros(*) fazem a peregrinação. Há quem faça uma vez na vida, há quem aprecie refazer o percurso várias vezes. As estatísticas indicam a chegada de mais de 300 mil peregrinos todos os anos, metade deles vindos do estrangeiro. São espanhóis, portugueses, franceses, alemães, suíços, belgas. Pode-se cruzar até com algum inglês ou irlandês ou até com um polonês ou lituano.

Nem todos fazem o percurso inteirinho a pé, como manda a tradição medieval. Esse exercício de milhares de quilômetros na força das pernas não é pra qualquer um. Muitos, seja por falta de tempo, seja por impossibilidade física, percorrem a maior parte do caminho de carro. Em seguida, deixam o veículo e terminam o percurso com uma caminhada de 5km ou 10km, dependendo da disposição, do tempo e dos calos de cada um. Há também quem faça o percurso inteiro de bicicleta. Os romeiros são, na maioria, jovens – gente que está pelos vinte e poucos ou trinta e poucos anos.

Caminhos, há muitos, todos balizados. Há rotas que partem de longe – Alemanha, Áustria, Suíça, Inglaterra – mas todas atravessam necessariamente a França e, naturalmente, boa parte da Espanha. As estradinhas são caminhos vicinais, estreitos, por onde se consegue circular a pé ou de bicicleta. Pode-se ver, aqui e ali, algum veículo agrícola em seu trabalho habitual. Nada de automóveis, muito menos caminhões. As rotas são sinalizadas por placas que portam o símbolo dos Caminhos de Santiago.

Ao longo do percurso, há albergues simples, especializados no atendimento de peregrinos. Dotados de beliches, oferecem pousada em amplos dormitórios concebidos para várias pessoas. A refeição da noite é servida em mesas comunitárias. Tudo isso é proposto a preços módicos. As romarias se espalham pelo ano todo, com especial concentração de abril a outubro, os meses em que a temperatura não é tão baixa.

Para os que têm a intenção de caminhar somente os 5km ou 10km finais, há grandes áreas em que o automóvel pode ser estacionado durante vários dias gratuitamente. É a maneira que as autoridades encontraram para desafogar o tráfego na cidade de Santiago, que, não fosse isso, seria infernal.

Com espanto e tristeza, leio a notícia do atropelamento mortal de quase meia dúzia de romeiros que se dirigiam a Aparecida na semana que precedeu o 12 de outubro. Tirando os jornais regionais, o assunto mereceu duas linhas na imprensa. Tenho dificuldade em entender o descaso. Eram gente! Estavam viajando do jeito que podiam, uns a pé, outros de bicicleta, uns pra pagar promessa, outros por pura devoção. Nenhum deles estava ali pra exigir fechamento do Congresso nem do STF. Eram brasileiros – pobres, como a grande maioria.

Por que foram atropelados? Porque circulavam por uma via expressa, em dia de chuva e pouca visibilidade. E por que faziam essa loucura? Porque não tinham outra opção. Ou iam por ali, ou desistiam de pagar a promessa.

Desde que uma imagem de N. Sra. da Conceição, enegrecida por longo período de imersão, foi pescada no Rio Paraíba do Sul, 300 anos atrás, a devoção popular foi crescendo, ao ponto de a Igreja fazer dela a Padroeira do país. Formado nas cercanias, o arraial cresceu e hoje se chama Aparecida. Abriga atualmente a maior basílica do Brasil, uma das mais amplas do mundo, que há de ter custado verdadeira fortuna.

Só que os peregrinos que preferem (ou que são obrigados a) se locomover à antiga foram esquecidos. Talvez eu esteja desatualizado, mas nunca ouvi falar dos Caminhos de Aparecida, assim como todo católico europeu conhece os Caminhos de Santiago. Pela complexidade – concepção, obtenção de autorizações, revestimento de caminhos – somente o poder público é capaz de encampar essa obra. Devia haver não um, mas vários caminhos que levassem romeiros a Aparecida. Tinham de partir do Rio, de São Paulo, do sul de Minas, de Campinas.

Somos um país de poucas tradições. A Igreja e os governos estaduais da região deveriam se unir para fomentar e dar corpo a esse costume popular. Se essas peregrinações não se tornam mais concorridas é justamente porque não é qualquer um que está disposto a arriscar a vida de bicicleta na Via Dutra.

Viajar de ônibus e fazer o caminho a pé não são a mesma coisa. Uma via pedregosa leva mais rápido ao céu.

(*) Romeiro, em princípio, é palavra que designa o peregrino que vai a Roma. Mas é costume estender seu sentido para todos os que vêm de longe para uma visita ritual a um lugar santificado.