Foro privilegiado ‒ 2

José Horta Manzano

Numa sessão, espetaculosa como de costume, o STF alinhavou a discussão sobre o foro por prerrogativa de função, conhecido popularmente como foro privilegiado. Os três últimos ministros a votar valeram-se de engenhoso contorcionismo verbal pra justificar o injustificável. Um deles chegou a passar quase uma hora atirando pedra contra toda restrição do foro, para terminar votando a favor da restrição. De dar nó nos miolos.

Ao final, ficou combinada a instalação de algumas chicanas pra impedir o afluxo de determinados figurões. Mas o grosso permanece. Parlamentares que praticarem crime de corrupção durante o mandato conservam direito ao foro privilegiado ‒ justamente o cenário que o Brasil honesto queria abolir.

Nesta sexta-feira, o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil deu sua visão do assunto. Disse ser a favor da abolição quase total do foro privilegiado que, segundo ele, deveria ser mantido unicamente para os chefes de Poder: os presidentes da República, da Câmara e do STF.

É interessante observar a que ponto estão todos presos a um conceito medieval que, em países mais adiantados, desapareceu duzentos anos atrás. De fato, a Revolução Francesa abriu caminho para a abolição dos privilégios que recheavam a monarquia absolutista. Pouco a pouco, os países europeus foram aderindo aos novos tempos. A boa-nova ainda não chegou ao Brasil real.

Nossa Constituição diz, logo no início, que «todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza». A simples existência de um foro para privilegiados é aberração que contradiz o princípio constitucional. Ele não tem de ser «restringido» nem «regulamentado»: seu destino é a lata do lixo. Todos os cidadãos, sejam eles quem forem, têm de enfrentar a mesma Justiça, sem exceções. Quanto antes isso acontecer, melhor será.

Visto de fora

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 6 fev° 2016

Os revolucionários franceses de 1789 viraram o país de pernas para o ar, guilhotinaram o rei e aboliram privilégios. Faz dois séculos que o povo daquele país procura alcançar patamar mais igualitário, de maior justiça social. No entanto, como se sabe, o uso do cachimbo faz a boca torta. O soberano foi-se mas deixou rastro: a pompa e o requinte permaneceram. Estão presentes até hoje, firmes e viçosos. Na falta do rei e da corte, o presidente e os eleitos da nação fazem as vezes.

Os vernizes, os esmaltes e as cornijas continuam nos palácios, fiéis, a cumprir a função para a qual foram concebidos: impressionar e, eventualmente, intimidar visitantes. A Assembleia Nacional francesa não foge à regra. Seu décor todo de ouro e veludo e seus ritos deliciosamente antiquados impressionam. Desde sempre, o recinto foi reservado para uso exclusivo do mundo político nacional ‒ nenhum estrangeiro foi convidado a participar.

by Eugène Delacroix (1798-1863), pintor francês

by Eugène Delacroix (1798-1863), pintor francês

Somente em 1993 é que a regra foi levemente afrouxada. Desde então, em casos excepcionais, a palavra tem sido cedida, para breve discurso, a uma que outra personalidade estrangeira. Assim mesmo, o acontecimento não deixou de ser raro ‒ neste quarto de século, somente 18 chefes de governo ou de Estado foram brindados com a deferência, menos de um por ano.

A seleção de celebridades é rigorosa. O britânico Tony Blair, o americano Bill Clinton, o alemão Gerhard Schröder, o chinês Hu Jintao e o rei da Espanha foram admitidos no seleto clube de medalhões estrangeiros que um dia discursaram em plenário. Em outubro de 2001, a honra foi estendida a Fernando Henrique Cardoso, então presidente do Brasil.

Assembleia Nacional francesa

Assembleia Nacional francesa

Não era coisa pouca. Implícito no convite, estava o reconhecimento do Brasil como país sério e promissor, o gigante que despertava. Aconteceu antes mesmo de o acrônimo Bric entrar na moda. Entre outros temas, o presidente brasileiro evocou as esperanças que se depositavam no Mercosul, criado havia não muito tempo.

Visto de fora, foi acontecimento pra lá de significativo. Expatriados, como eu, nos sentimos orgulhosos. Foi como se todos os brasileiros tivéssemos sido homenageados. O planeta, enfim, começava a dar-se conta de que havia mais Brasil além das praias, do fio dental, do futebol e do Carnaval.

A bem da verdade, reconheça-se que, a olhos estrangeiros, o entusiasmo com o novo Brasil continuou forte durante o governo de Luiz Inácio da Silva, pelo menos no primeiro mandato. A ascensão econômica de nosso país encobriu, para os que observavam de longe, mazelas persistentes e feridas não curadas. Visto à distância, o Brasil parecia estar transpondo o fosso que separa países adiantados dos demais.

by Florence Catrin, artista francesa

by Florence Catrin, artista francesa

A diplomacia brasileira, contudo, emitiu sinais estranhos. A aproximação carnal com vizinhos bolivarianos, os tapinhas nas costas do líder iraniano, o achegamento a brutais ditadores africanos, a abertura de embaixada na Coreia do Norte, a desastrada tentativa de intervenção no conflito médio-oriental deixaram perplexas muitas chancelarias. Ao observador externo, podem escapar detalhes de nossa política interna, mas atos e fatos diplomáticos são meticulosamente escrutados.

Conquanto arranhada pelos desaires de nossas relações exteriores, nossa imagem, bem ou mal, manteve saldo positivo. As manifestações populares de junho 2013, contudo, marcaram o fim do crédito. Não falo de crédito comercial, mas de crédito de confiança. Aqueles protestos, maciços e espontâneos, sinalaram a inversão da curva. Atônitos analistas estrangeiros logo entenderam que a mostra de desagrado popular não decorria de simples aumento no preço do transporte público. O mal era mais profundo.

Bexiga 1De lá para cá, a condescendência para com nosso país desinchou como bexiga furada. Ressabiados, os olhares se tornaram críticos e cautelosos. A débâcle da economia confirmou que o gigante tinha pés de argila. A sucessão de escabrosos escândalos de rapina dos cofres públicos, com seu cortejo de figurões encarcerados, deu o golpe de graça. O mundo entendeu que a figura do gigante emergente não correspondia à realidade. Era vidro e se quebrou, era pouco e se acabou.

É pena. Vai levar muito tempo para restaurar a bela imagem que havíamos projetado no exterior. E vai demorar mais ainda até que um presidente nosso seja de novo incensado na Assembleia francesa.

Tem nada, não. O clichê continua de pé. Para quem vê de longe, continuamos sendo o país abençoado por Deus, com praias, fio dental, futebol e Carnaval. Viva Rei Momo!

Paraciclos

José Horta Manzano

Muitas das mazelas do Brasil vêm da confusão entre o que é público e o que é privado. Essa mistura não é nova nem é exclusividade brasileira. A discussão é antiga e vem de longe.

Na Idade Média europeia, o senhor feudal tinha direitos absolutos sobre seu domínio. Tudo lhe pertencia: terras, águas, construções e… gentes. O bem público simplesmente não existia.

Bicicleta 4No século 18, o conceito perdurava. Embora a propriedade privada já começasse a ser reconhecida, o rei ainda era visto como virtual proprietário do país. Na França, a mudança foi brutal. Aconteceu durante a Revolução Francesa, com a abolição dos privilégios. Em outros países, a evolução foi mais suave.

No Brasil, a separação entre o que é de cada um e o que é de todos tem-se feito com lentidão e ainda está longe de ter sido assimilada por todos. Até hoje, boa parte dos cidadãos não se deu conta dos limites.

Bicicleta 5Um exemplo recente está no assalto a empresas públicas – falo do petrolão. Os assaltantes têm vaga noção de haver cometido um “erro”, mas não se compenetram de que meteram a mão no dinheiro do povo. Podem até, numa hipótese extrema, admitir que levaram a grana de uma empresa, sem se dar conta de que embolsaram, na verdade, dinheiro suado do contribuinte. O pior é que o contribuinte assaltado continua acreditando que os facínoras levaram dinheiro «da Petrobrás», sem perceber que o lesado foi ele mesmo.

Li, estes dias, que a prefeitura paulistana publicou manual destinado a instruir os cidadãos que desejarem instalar um paraciclos – neologismo saboroso que nomeia dispositivo onde se pode estacionar uma bicicleta. Que ninguém reclame: escapamos de um «stopbike». Uff.

A intenção ecológica seria louvável, não fosse o reforço que traz à confusão entre o que é de cada um e o que é de todos. Proprietários de imóvel ficam autorizados, desde que sigam algumas regras, a plantar o dispositivo na calçada, no passeio público.

Bicicleta 7Para quem vive em terras onde é nítido e rigoroso o limite entre o público e o privado, a prática paulistana é desnorteante. Com que então, todo cidadão fica autorizado a instalar no espaço público – chumbado em caráter permanente – um bem móvel que lhe pertence? A mim, deixa-me perplexo.

Bicicleta 6A nova regra alimenta e reforça um dos grandes vícios nacionais. O que é de cada um tem de ser cuidado por cada um. O que é de todos só pode ser cuidado pela autoridade pública. Cabe à prefeitura montar paraciclos, assim como lhe cabe instalar postes, pontos de ônibus, placas de sinalização, bancos de jardim, estátuas e todo o mobiliário público urbano.

Muitos reclamam – com razão – da atitude de cidadãos que se apoderam de ruas sem saída e as fecham, impedindo a entrada a concidadãos e privatizando, assim, o bem público. Pois a permissão dada a particulares para instalar paraciclos é passo na direção errada. Borra a nitidez da linha divisória entre o público e o privado.