José Horta Manzano
Quero dar minha visão sobre o crime perpetrado no Carrefour. O que vou dizer não é agradável. Quando se deseja resolver um problema, o primeiro passo é reconhecer sua existência. Fazer cara de paisagem e fingir que não viu, como fazem muitos neste caso, não ajuda.
Tenho lido o que pensam dezenas de analistas sobre o triste ocorrido. Todos concordam que é absurdo contratar brutamontes desequilibrados e mal formados, enfiar-lhes um uniforme e dar-lhes a tarefa de garantir a segurança de um estabelecimento comercial. Concordo, sem dúvida, mas acho que o mal é maior e o buraco, mais profundo.
Aos 60 anos de existência, o grupo francês Carrefour atua em 30 países. Seu faturamento mundial no ano passado foi de 80 bilhões de euros. A França é o maior mercado, ficando o Brasil em segundo lugar. Com todo esse portento, as lojas da França não guardam registro de ocorrência tão trágica quanto foi a de Porto Alegre. Desavenças acontecem todos os dias, é da vida, mas nenhuma jamais atingiu nível tão exorbitante de violência.
O drama da semana passada deve nos levar a uma reflexão: por que razão, no Brasil, agentes de segurança se sentem livres para massacrar um cidadão? Faz dias que estamos perdidos em discussões improdutivas. Por um lado, analisa-se, sob todos os ângulos, o caráter racista do assassinato; por outro, organizam-se passeatas contra a rede Carrefour.
Ao fim e ao cabo, esses atos têm o poder de encobrir a realidade de nosso país, sem dar nem um passinho para reconhecer a realidade. Daqui a uma semana, o clamor popular terá baixado, e o problema continuará latente, mas encoberto e não resolvido.
Por que a violência come solta em nosso país?
A falta de treinamento dos seguranças é um dos componentes do drama de Porto Alegre, mas não responde à pergunta maior. O sentimento difuso de discriminação – contra pretos, nordestinos, mulatos, mulheres, pobres, homossexuais, estrangeiros, obesos, índios – é outro componente do drama, mas tampouco responde à pergunta.
Em terras menos violentas, apesar de pouco treinamento e de muito racismo, o resultado da abordagem seria a imobilização do cliente exaltado, não seu assassinato. Como é possível que, no Brasil, em que pese estarem mal formados, agentes de segurança achem natural transpor o limite entre a contenção de um rebelde e seu assassínio?
De pouco vai adiantar fazer passeatas contra o Carrefour ou quebrar a vidraça de suas lojas. De pouco vai adiantar fazer passeatas contra o racismo e as discriminações. É terrível dizer isto, mas não há como escapar: o problema não está no Carrefour nem no racismo, o problema está em nós. Em nós, sociedade brasileira. Em nós, herdeiros de um longo e trágico histórico de violência, escravidão, massacres, exploração da ignorância, lei do mais forte.
É importante exigir que agentes de segurança sejam selecionados com cuidado e recebam formação adequada. É importante, assim mesmo, ir além e refletir seriamente sobre as origens da insuportável violência nacional e sobre caminhos que levem ao apaziguamento de nossa sociedade. Quantos cadáveres são ainda necessários pra despertar essa reflexão?
Carrefour
É a palavra francesa para cruzamento (de ruas). Na Idade Média, o termo designava um cruzamento de dois caminhos. Na atualidade, só é usado quando se trata de avenidas largas ou de estradas de rodagem.
No latim medieval, o termo quadrifurcus (=que tem quatro forquilhas) indicava um cruzamento de dois caminhos, formando quatro esquinas. De quadrifurcus, evoluiu para carrefour. A mesma idéia está presente em nossa bifurcação. Neste caso, a imagem não vê quatro forquilhas, mas apenas duas.
Na logomarca da rede de supermercados, está presente a ideia de cruzamento, estilizada sob forma de duas flechas, uma voltada à esquerda e outra à direita. Entre as flechas, esconde-se um C maiúsculo, num formato que ilustradores chamam espaço negativo.
Exato! O problema está em nós, na nossa condescendência para com as transgressões dos agentes da lei, está no raciocínio de que bandido bom é bandido morto ou no de que a melhor forma de conter a violência é usar de ainda maior violência, na associação automática entre os conceitos de “suspeito” e “negro”.
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A associação entre suspeito e negro, a meu ver, é de somenos. Entendamo-nos: não estou a minimizar atitudes discriminatórias; todo supremacismo é execrável, mas não é o ponto ao qual eu queria chegar.
Neste caso de Porto Alegre, parece-me que o fato de todos se atirarem de cabeça numa explicação discriminatória (ou ‘racista’, como dizem) serve para aliviar consciências, mas não elude o ponto. É cômodo, mas não resolve.
O que me deixa perplexo é a sem-cerimônia com que um indivíduo assassina outro, à frente de todos, mãos nuas, numa boa, sem estar bêbado, sem estar drogado e sem ter sofrido intenso golpe emocional. Que a vítima tenha sido um homem preto, azul ou verde, importa pouco. É o homicídio fácil, descompromissado, desleixado que me perturba.
A imprensa transborda de exemplos diários dessa violência assassina que percorre nossa sociedade e que parece estar aumentando com o passar dos anos. Desde feminicídios cotidianos, passando por assaltos de esquina que ‘azedam’ e terminam em latrocínio, até chegar a famílias inteiras que se associam para assassinar, como fez aquela parlamentar que tem nome de flor. Numa boa.
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Entendo e respeito seu ponto, mas a absurda violência com a qual convivemos – e toleramos graciosamente – não é de somenos, na medida em que atinge quase exclusivamente pretos, pardos, pobres e periféricos. Segundo as estatísticas, 75% das mortes violentas envolvem essas pessoas e praticamente ninguém se incomoda em perguntar das razões para isso. Lendo os comentários nos grandes jornais, nas tevês e nas redes sociais, é fácil perceber como a maioria busca justificativas para se isentar da responsabilidade pelo clima de violência generalizada decorrente da desigualdade e do racismo: “ah, o cara não era flor que se cheire, era agressivo, estava bêbado ou drogado, estava em atitude suspeita, já tinha um desentendimento antes com os seguranças”. Resta saber qual seria a reação dessas mesmas pessoas caso o agredido/morto fosse um executivo dos Jardins ou do Morumbi.
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Chegou minha vez de não concordar. Mata-se todos os dias nas esquinas do Brasil. Trucida-se por dez reais, por uma sacola de supermercado, por um par de tênis usados. E os assassinados costumam ser brancos.
Não. A violência está entranhada na alma brasileira, desse povo cordial. Permeia todas as classes, todas as cores e todos os sexos. Só não vê quem não quer ver.
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É verdade, não há como discordar de que a violência está entranhada na alma brasileira. Mas permita-me lembrá-lo que estamos falando de crimes perpetrados por agentes de segurança particulares, policiais militares fora do horário de serviço (se bem que cometem crimes também no horário do trabalho), milícias armadas, etc. Se você percorrer as notícias de jornais todos os dias, vai ser forçado a concluir que esse tipo de violência atinge quase exclusivamente o andar de baixo – e, no meio deles, quase só pretos e pardos.
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Falou e disse: a violência está no ADN (=DNA) da população. Que sejam do andar de cima, de baixo ou do intermediário, homicídio não comove ninguém. Desde os tempos de Tomé de Souza.
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