Trump quer esvaziar Gaza

José Horta Manzano

Em 27 de janeiro passado, está fazendo quase dez dias, escrevi um post ao qual dei o nome de Plaza Strip. Naquele texto, botei no papel uma realidade que me parecia evidente, bastanto juntar duas falas de Donald Trump pronunciadas em momentos diferentes. Eu tinha entendido que o presidente americano, experiente no ramo de promotor imobiliário, enxergava a Faixa de Gaza como excelente localização para implantar um complexo turístico de luxo.

Pelas manchetes que vejo hoje nos jornais do mundo inteiro, fico com a impressão de ter sido o único a ligar as duas falas de Trump. Esse é o lado lisonjeiro. Do lado decepcionante, percebo que nenhum dos líderes globais – Xi Jinping, Macron, Putin nem mesmo Lula – leu meu artigo. Se tivessem lido, já teriam reagido antes dos comentários da multidão. E olhe que não leram de bobeira: aqui não tem anúncio! Enfim, paciência.

As manchetes devem estar fazendo muita gente fina cair das nuvens, todos assustados com o pronunciamento que Trump fez ontem sobre Gaza. Desta vez, ele juntou tudo numa fala só, e foi bem claro. Lançou no ar a ideia de que os EUA devem tomar conta de Gaza, não sem antes tirar de lá os gazeus e reparti-los entre Egito e Jordânia. Em seguida, a faixa de terra será reconstruída e se tornará uma “Riviera” do Mediterrâneo Oriental. (Daí eu ter chamado meu escrito de Plaza Strip, fazendo rima com Gaza Strip, mas numa declinação mais chique e sofisticada, lembrando grandes hotéis de luxo da orla mediterrânea.)

Não precisei ir mais longe que nossa mídia online nacional para encontrar as primeiras reações ao projeto: desumano, limpeza étnica, roubo de território, mundo chocado, projeto truculento, mandar palestinos para onde? (Lula), violação de leis internacionais, genocídio.

Concordo com todas essas expressões. Trata-se de mais um passo no genocídio montado contra os infelizes palestinos, cidadãos cujo triste destino todos lamentam mas que ninguém se anima a convidar pra morar em casa.

Agora vamos mudar de tom. Não se trata de ser cínico, mas realista, questão de ver as coisas como são.

Israel controla a Faixa de Gaza. Ninguém lá entra nem de lá sai sem autorização de Tel Aviv. Desde o começo da guerra, nenhum jornalista estrangeiro pisou o território. Remédio só entra a conta-gotas. Todos os hospitais foram destruídos ou fortemente degradados. Em Gaza City, 90% dos imóveis desmoronaram.

Os Estados Unidos são a maior potência econômica e militar do planeta. São também aliados incondicionais de Israel.

Juntando os dois, Israel e EUA, temos a fome e a vontade de comer. Portanto, não perca dinheiro na bolsa de apostas de Londres: o que Donald Trump quer, se fará. Que  seja chocante ou não, que pareça legal ou não, que o mundo aprecie ou não, dentro de pouco tempo o território será esvaziado dos trapos humanos que o habitam. Alvas construções em estilo brotarão e palmeiras recém-plantadas enfeitarão a borda das piscinas para suavizar o clima desértico. E os primeiros nababos começarão a chegar.

Quem poderá impedir que isso tudo aconteça? Xi Jinping? Putin? A União Europeia? Quem se arriscaria numa guerra contra os EUA?

Como disse, prezado leitor? Pra onde vão os gazeus? Ora, uma parte para a Jordânia e outra para o Egito, exatamente como Trump deseja. E como é que ele vai conseguir que esses países aceitem dois milhões de maltrapilhos? Pela ameaça. Tanto a Jordânia quanto o Egito são tributários de substancial ajuda americana. Todo ano, recebem quantia que não podem perder. Receberão, naturalmente, uma compensação pela gentileza de acolher os refugiados. E vão acolhê-los, sim, senhor.

Mas tem uma coisa. Como se sabe, toda moeda tem duas faces. Na outra face desta, está o precedente que Trump estará abrindo caso insista nessa ideia descabida. Se sua cupidez imobiliária o cegar, estará dando ao mundo prova de que é legítimo intervir de forma truculenta para conquistar territórios estrangeiros.

Daí pra frente, não poderá mais dar um pio se a Rússia intervier militarmente na Moldávia ou na Geórgia ou se a China decidir tomar Taiwan à força dos canhões. O mundo terá regredido aos séculos de antigamente. Estará aberta nova era de conquistas territoriais como nas guerras napoleônicas. Só que agora a espada será substituída por drones incendiários, minas antipessoais e outros bijuzinhos da guerra moderna.

Lula no Egito

José Horta Manzano


“A única coisa que se pode fazer é pedir paz pela imprensa, mas me parece que Israel tem a primazia de descumprir, ou melhor, de não cumprir nenhuma decisão emanada da direção das Nações Unidas”


O texto acima faz parte da declaração dada por Lula no Egito, país onde foi fazer turismo no Complexo de Gizé para visitar as pirâmides. No segundo dia, aproveitou para se encontrar com o ditador de turno, um senhor sorridente que leva o vistoso nome de Abdul Fatah Khalil al-Sissi.

Luiz Inácio se esmerou no discurso, falou bonito, usou até o verbo emanar, mas tropeçou na hora de escolher uma palavra para expressar a liberdade que as Nações Unidas dão a Israel para fazer o que quiser.

Disse que Israel tem a primazia de descumprir ordens da ONU. Primazia é superioridade, competência, excelência de algo ou alguém. Certamente não é o que Lula queria dizer. Ele quis sublinhar a licença especial que, segundo ele, Israel tem para dar de ombros às determinações onusianas e agir como bem entende.

Em vez de primazia, tinha a escolha entre uma dezena de termos:

  • Licença (como citado acima)
  • Consentimento
  • Permissão
  • Privilégio
  • Anuência
  • Direito
  • Apanágio
  • Regalia
  • Carta-branca

A lista não é extensiva. Há outras palavras ainda. Ficam para a próxima, não é, senhor Presidente?

Lembre-se de que quem usa “emanar” não pode escolher termo inadequado no mesmo discurso, pior ainda, na mesma frase. Se não, vão acabar pensando que o discurso foi escrito por outra pessoa. O que cai mal, francamente.

Influenciador

José Horta Manzano

Se covardia fosse crime, muita gente estaria na cadeia, condenada à perpetuidade. Aliás, nosso capitão, legítimo integrante dessa turma, já faz tempo que teria sido defenestrado e encarcerado. Infelizmente, covardia não é crime. É atitude baixa, feia, reprovável, indigna, odiosa, mas, a rigor, crime não é.

Outro dia, os jornais deram notícia de um brasileiro que, em viagem turística ao Cairo, deu mostra de baixeza de caráter. Ofendeu uma vendedora jovem e ingênua. Ridicularizou-a usando expressões de botequim pronunciadas em português, língua que a moça desconhecia. Orgulhoso da proeza, documentou a cena em som e imagem. E publicou nas redes.

O vídeo circulou, saiu de controle, acabou chegando às mãos das autoridades egípcias – que não apreciaram nadinha o episódio. Chamaram o rapaz para investigação. Enquanto corriam as averiguações, ele ficou detido. Com medo, desmanchou-se em desculpas, declarou-se arrependido. Magnânima, a vendedora ofendida perdoou publicamente o ofensor. Ao cabo de uma semana, as autoridades soltaram o rapaz.

Estranhei a duração da prisão. Uma semana por uma molecagem digna de adolescente retardado me pareceu muita coisa. Dizem os jornais que o indivíduo é médico. Dizem também que é “influenciador”, seja lá o que isso significar. Acrescentam que ele faz parte do círculo de devotos de nosso capitão. Quando li isso, entendi.

Faz um ano e meio que Bolsonaro, logo no comecinho de sua desastrada aventura presidencial, declarou ter intenção de transferir a embaixada do Brasil em Israel de Tel Aviv para Jerusalém. De lá pra cá, as barbaridades presidenciais foram tantas que, no Brasil, poucos se lembram disso. A memória acaba se perdendo diante do fluxo contínuo de horrores que emanam do Planalto. Só que, no mundo árabe, ainda está vivíssimo o trauma que o anúncio causou.

No episódio do turista ofensor, as autoridades egípcias hão de ter sido informadas de que o engraçadinho, além de brasileiro, era devoto do capitão. Foi a conta. Cadeia nele! Não fosse o perdão concedido pela vendedora, era bem capaz de ainda estar mofando nas masmorras egípcias.

A desconfiança e a má vontade com que brasileiros são recebidos no exterior é “efeito colateral” da política externa do capitão. Sofremos todos, mas bolsonaristas sofrem ainda mais.

Fico pensando nos seguidores desse “influenciador”. Imagino que tenha um séquito de “influenciados”. Francamente, já não se fazem gurus como antigamente. Pobres seguidores!

Reclamar do quê?

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 31 dez° 2016

Os brasileiros vivem num país gigantesco. Para a maioria, fronteira não passa de conceito vago, um ponto perdido no meio da Amazônia, afundado no Pantanal ou açoitado pelo pampeiro nos pastos sulinos. Mal e mal, nos inteiramos do que se passa do lado de cá. Acompanhar o que acontece além-fronteira, então, já é pedir demais. No entanto, lá como cá, há mundo. Por toda parte, gente ama e briga, se entristece e se alegra, nasce e morre. Vale a pena dar uma espiada no que se passa do outro lado.

Fim de ano é momento de balanço. Neste finalzinho de 2016, tenho visto muito desencanto. «O ano que não terminou» é a tônica das análises. O gosto de inacabado, a apreensão com o que está por vir, a carestia e a perda de vigor da economia, os relatos sobre o aumento do desemprego, a recapitulação do nome dos figurões já encarcerados e dos que o serão em breve, o embate entre os Poderes da República ‒ eis os temas dominantes. Todos eles deprimentes, desacoroçoados e angustiantes. Ânimo, minha gente! Ou, como diriam os antigos: sus! Basta olhar em roda pra ver que, se nosso país atravessou um ano difícil, há quem esteja pior que nós. Não acredita?

tanque-de-guerra-1No Brasil, 2016 já começou com cara de golpe. Revolução à antiga, com obuses e trincheiras, anda meio «démodée» por aqui. Mas muita gente imaginava que meia dúzia de brucutus surgiriam a qualquer hora pra derrubar o governo e tomar o poder. Pois não aconteceu! A destituição da presidente e a consequente assunção do substituto legal se deram dentro da mais estrita ordem constitucional. Tirando pequenos engasgos, normais e desculpáveis em situações insólitas, o processo deslizou sem tropeços. Reclamar do quê?

Na primeira metade do ano, conforme iam se aproximando os Jogos Olímpicos, a ansiedade crescia. Até policiais, agentes e peritos do exterior foram convocados para reforçar o time nacional e garantir paz e segurança aos atletas e ao público. Bilhões de olhos ao redor do planeta se encantavam com as imagens do Rio de Janeiro. Cada um torcia por seus atletas. Tudo ao vivo. De novo, tirando escorregões de pouca monta, tudo deu certo, sem catástrofes. Reclamar do quê?

O povo da França, da Índia, do Egito, da Bélgica, de numerosos países africanos e até da Alemanha foi castigado por atentados que deixaram centenas de mortos, milhares de feridos e um cruel sentimento de impotência. Tanto os do andar de cima quanto os do porão se sentem igualmente desarmados, perdidos. No Brasil, tirando a violência à qual, de tão corriqueira, ninguém mais presta atenção, nenhum atentado aconteceu. Reclamar do quê?

Os que vivem na infeliz Venezuela, nossa vizinha de parede, esses, sim, têm do que se lamentar. A situação lá anda tão feia que impele cidadãos a escapar do país para conseguir alimento. Nem comida eles têm! Preferem tornar-se flanelinhas clandestinos em Roraima e dormir ao relento a passar fome no país de origem. Nas grandes cidades da república bolivariana, não há passeata ou manifestação popular que não deixe rastro de mortos e feridos. Do lado de cá da fronteira, não nadamos em dinheiro, é verdade. Mas, ao menos, não vivemos em penúria alimentar. Reclamar do quê?

flanelinha-1Na República Democrática do Congo ‒ país africano de 85 milhões de viventes ‒, o presidente foi batido nas urnas quando buscava reeleger-se. Em vez de passar o poder ao vencedor, como manda o figurino, agarrou-se ao trono. A confusão e a violência se instalaram no país. Pressões externas estão tentando conciliar os dois presidentes autoproclamados. Pra evitar mal maior, cogita-se dar o cargo de presidente a um deles e o de primeiro-ministro ao outro. No Brasil, faz uma pancada de décadas que passação de mando se tornou rotina sem surpresas. Reclamar do quê?

E os apuros dos pobres 80 milhões de turcos? Depois de mal explicada tentativa de golpe de Estado, milhares de cidadãos foram encarcerados. Ninguém sabe o total, mas fontes confiáveis estimam que cem mil estejam presos. Com vocação para ditador, o presidente aproveitou para expurgar o país dos cidadãos que o incomodavam. Fechou jornais e prendeu multidão de jornalistas. Semana passada, na esteira do assassinato do embaixador da Rússia em Âncara, mais 17 mil turcos foram enjaulados. Dezessete mil! Na aprazível Terra de Santa Cruz, abençoada por Deus e bonita por natureza, não temos nada disso. Reclamar do quê?

Feliz ano-novo, brava gente!

Desalinhados

José Horta Manzano

Você sabia?

No começo dos anos 1960, a Guerra Fria comia solta. O mundo, inquieto, temia que, a qualquer momento, a guerra esquentasse. Já à época, as duas superpotências ‒ EUA e União Soviética ‒ tinham arsenal nuclear capaz de aniquilar a humanidade. Vivia-se em tensão permanente.

Alguns países de importância secundária, na intenção de mostrar-se independentes tanto do bloco americano quanto do soviético, agruparam-se. Com o incentivo do Egito de Nasser, da Iugoslávia de Tito e da Índia de Nehru, dezenas de países médios e pequenos juntaram-se ao Movimento dos Não-Alinhados.

Não é fácil conciliar interesses de países díspares e espalhados pelo planeta. O objetivo do grupo nunca foi muito claro. Por exemplo, Cuba, membro fundador, embora se declarasse “não-alinhado”, estava visceralmente ligado ao bloco comunista, liderado pela União Soviética.

Nasser (Egito), Nehru (Índia) e Tito (Iugoslávia) Mentores do Movimento dos Não-Alinhados, 1961

Nasser (Egito), Nehru (Índia) e Tito (Iugoslávia)
Mentores do Movimento dos Não-Alinhados, 1961

Os países africanos, que acabavam de conquistar independência, entraram quase todos para o Movimento. Como a Cuba dos Castros, a maioria deles estava alinhadíssima com a URSS, ainda que alguns mostrassem simpatia pelo bloco ocidental. Resumindo, grande parte dos membros era constituída de não-alinhados pero no mucho.

Com a queda do Muro de Berlim e o desaparecimento da União Soviética, o Movimento dos Não-Alinhados perdeu a razão de existir. No entanto, por razões que a razão nem sempre explica, não foi dissolvido. Continua, firme e forte, a organizar cúpulas a cada dois, três ou quatro anos. Os interesses dos membros continuam tão divergentes como sempre foram, mas… quem se importa com esse detalhe?

Registre-se que o único país europeu a participar do Movimento é a Bielorrúsia. Quanto aos países ibero-americanos, vários integram o grupo com a notável exceção das três maiores economias: Brasil, México e Argentina. Praticamente todos os africanos são membros. Os grandes deste mundo (EUA, China, Japão, União Europeia, Rússia) não participam da encenação.

Nicolas Maduro by Darío Castillejos, desenhista mexicano

Nicolas Maduro
by Darío Castillejos, desenhista mexicano

Que discutem nas reuniões? Que resoluções tomam? Que ideologia seguem? Difícil dizer. Quando se juntam visões de mundo heterogêneas ‒ Timor Leste, Paquistão, Burundi, Equador, Afeganistão, Suriname ‒ entre dezenas de outros ‒ é complicado chegar a alguma espécie de consenso.

Mas a vida segue e o Movimento dos Não-Alinhados sobrevive. A Venezuela, mergulhada no caos político e econômico, está recebendo a reunião de cúpula de 2016 do clube dos não-alinhados.

Que um país que não consegue alimentar o próprio povo acolha autoridades de mais de cem países ‒ sem contar as respectivas comitivas ‒ é decisão singular. O tiranete Nicolás Maduro há de ter esperança de que a festa distraia, por um momento, o ronco das barrigas vazias dos infelizes venezuelanos.

O caça cassado

José Horta Manzano

O protótipo do caça francês Rafale fez o primeiro voo em 1991. Fabricado pelas indústrias Dassault, o modelo corresponde às exigências da aeronáutica militar francesa. Paris comprometeu-se a comprar 180 aparelhos, dos quais 142 já foram entregues.

Avião 6Sofisticado mas muito caro, o Rafale não foi um sucesso de vendas. Mais de vinte anos depois de lançado, nenhum país, além da França, tinha mostrado interesse. Eis senão quando, um Lula no auge da popularidade, a pouco mais de um ano de terminar o segundo mandato, faz anúncio estrondoso.

Contrariando os interesses dos que entendem do assunto ‒ as Forças Aéreas Brasileiras ‒, tomou a decisão pessoal de entabular negociação firme em vista de adquirir 36 exemplares. Para comemorar e oficializar o acordo, convidou Nicolas Sarkozy, então presidente da França, para assistir aos festejos do 7 de setembro. Estávamos em 2009.

A forte limonada servida no almoço há de ter deixado os dois presidentes eufóricos. Imprudentemente, deram o fechamento do negócio por favas contadas. Garantiram que o Brasil estava comprando os aviões franceses.

Lula e SarkozyO tempo passou, os dois presidentes terminaram o mandato, e o assunto morreu. A razão do malogro das discussões não ficou clara, deixando a cada um liberdade para imaginar o que bem entender.

Em 2015, para alegria do fabricante, o Egito encomendou 24 aparelhos. Meses mais tarde, o Catar também adquiriu duas dúzias. São pedidos firmes ‒ aliás, os três primeiros aparelhos já foram entregues ao país das pirâmides.

Interligne 18h

Monsieur François Hollande, atual presidente da França, está de visita oficial à Índia este fim de semana. A principal razão da viagem é o interesse demonstrado por Nova Delhi em adquirir 36 Rafales. Escaldados pelo fiasco quando das tratativas com o Brasil, franceses e indianos se abstêm de apregoar que o negócio está no papo.

Hollande IndiaQuando as negociações entre o Brasil e a França goraram, todos imaginaram que tivesse sido por razões técnicas ou ligadas à transferência de tecnologia. Hoje, desencadeada a Lava a Jato, sabemos que operações políticas envolvendo dinheiro gordo encerram mais mistérios do que sonha nossa vã filosofia.

Assim, fica no ar a pergunta: «Por que é mesmo que deixamos de comprar os Rafales?». Que cada um imagine o que quiser.

De uma tragédia a outra

Piramide 1José Horta Manzano

Cada nova tragédia tira o foco da precedente. Os sangrentos acontecimentos de Paris tiraram do mapa a recente catástrofe ocorrida na península do Sinai. Refiro-me ao Airbus russo que caiu no deserto egípcio faz pouco mais de duas semanas. Vale lembrar que ambos entram na categoria dos atentados.

Se a importância de calamidades fosse medida em função do número de mortos, o desastre aéreo, com 224 vidas ceifadas, teria sido mais significativo que o da França. Mas a contabilidade macabra não funciona assim – outros fatores entram no cálculo.

A matança de Paris ocorreu… em Paris, cidade mítica. Toda agressão contra a Cidade Luz é ressentida como afronta ao mundo todo. Tivesse o atentado acontecido em Londres, Berlim ou Madrid, a comoção não teria sido tão intensa.

Avião 13No entanto, a queda do avião russo traz consequências catastróficas. Para o Egito, pobre e superpovoado – com mais de 80 milhões de habitantes – os rendimentos do turismo são cruciais. O balneário de Charm El-Cheikh, no litoral do Mar Vermelho, é pérola preciosa entre as atrações turísticas do país.

Na Rússia, desde que o rublo começou a degringolar, o povo empobreceu rapidamente. A partir daí, intensificou-se o tráfego aéreo entre Moscou ou São Petersburgo e a estância egípcia, destino de baixo custo, ao alcance do turista padrão. Diariamente, multidões de russos fugiam das neves subárticas para espreguiçar sob o sol do Mar Vermelho.

A confirmação de que o desastre aéreo foi provocado por bomba instalada a bordo por terroristas desfere duro golpe. As companhias aéreas já suspenderam, por tempo indeterminado, voos em direção ao Egito. Evitam, em especial, o aeroporto de Charm El-Cheikh.

Praia Charm El-CheikhComo consequência, turistas russos não podem mais passar uma semanazinha de férias num dos únicos lugares quentes que estavam ainda ao alcance de seu bolso. Pior que isso, o Egito deixa de recolher preciosas divisas estrangeiras. Estima-se que a perda será de 300 milhões de dólares mensais – três bilhões e meio por ano.

Se os terroristas queriam castigar o país dos farós, o objetivo foi atingido.

O Egito antigo e nós

José Horta Manzano

Futebol 1

O portal noticioso francês RTL comenta o fechamento temporário do estádio dito Arena Pantanal, inaugurado em Cuiabá um mês antes da Copa 2014. O complexo esportivo será interditado ao público para dar lugar a «intervenção de emergência», necessária para sanar «diversos problemas de construção».

Frise-se que o estádio foi entregue 6 meses atrás. Acolheu 4 (quatro) jogos do Campeonato do Mundo, entre eles um imperdível Nigéria x Bósnia. A construção da ‘arena’ custou módicos 254 milhões de dólares, que equivalem, ao câmbio atual, a 660 milhões de reais.

Dividindo o gasto total pelos quatro jogos que o estádio acolheu, chega-se ao veredicto: cada um dos encontros custou ao contribuinte brasileiro 165 milhões de reais. Sem contar o que vai ser gasto no «conserto». Não foi divulgada a porcentagem de superfaturamento incluída nesse valor.

Futebol 4O portal informa que o próprio governo do Estado de Mato Grosso reconhece que o futuro do campo de futebol está comprometido, dado que a previsão de receitas está longe de cobrir os custos de manutenção. É obra deficitária, como todos já sabiam.

Crédito: Kopelnitsky, EUA

Crédito: Kopelnitsky, EUA

Para fechar o artigo, uma última flechada. Fica-se sabendo que, para amortizar os 470 milhões de euros (1,3 bi de reais) investidos no estádio Mané Garrincha, de Brasília, serão necessários mil anos.

O distinto leitor e eu não temos nada que ver com o peixe. Mas pode ter certeza: os tataranetos dos tataranetos de nossos tataranetos nos amaldiçoarão.

Daqui a um milênio, se a humanidade ainda estiver povoando este planeta, nossa era será descrita como civilização atrasada, que gastava recursos construindo monumentos de concreto em vez de cuidar da saúde e da educação do povo. Exatamente como enxergamos o Egito antigo ou as monarquias absolutistas. No fundo, pouca coisa mudou de lá pra cá.

Desinventando a imprensa

Ruy Castro (*)

Pesquisa científica divulgada há dias revela que foram os chineses, há 5.500 anos, que domesticaram os gatos ―1.500 anos antes dos egípcios, a quem se creditava essa maravilha. Quando um país está com a bola branca, como a China, não apenas seu presente chama a atenção ― até seu passado fica iluminado. E, se alguns ainda se espantam com o ímpeto com que ela ocupa hoje todo tipo de espaço, só me intriga que não tenha acontecido antes.

A história nos ensina que, com sua criatividade, os chineses já mudaram o mundo pelo menos duas vezes. Uma foi quando inventaram a pólvora ― de que resultaram o canhão, o mosquete, o arcabuz e muita gente morta. A outra foi quando criaram o papel e, daí a séculos, os tipos móveis, de argila ― do que, 400 anos antes de Gutenberg, nasceu a imprensa.

Essas foram as suas grandes contribuições no atacado. No varejo, é aos chineses que devemos o macarrão e, deste, o talharim, o espaguete e a língua de pato. Eles nos deram também a seda, a porcelana, a bússola, o sismógrafo, o moinho hidráulico e até a pipa ― esta, para pescar sem barco. Sem falar no palito de fósforo, nos fogos de artifício e na tinta ― não por acaso, nanquim.

Mas isso foi lá atrás. A China moderna são os bilhões de cacarecos e cafonices que assolam o mercado mundial, empesteiam o planeta e levarão séculos para ser digeridos pelo ambiente. E ela vem agora com uma novidade ainda mais revolucionária: a desinvenção da imprensa. Seus jornalistas, se quiserem manter a licença de trabalho, terão de devorar um manual de 700 páginas para fazer uma prova sobre os princípios do marxismo e se submeter a 18 horas de treinamento para se condicionar a não contrariar o Partido.

No Brasil, havia gente no governo que queria nos impor essa medida. Mas isso foi antes da Papuda.

(*) Ruy Castro, escritor e jornalista, em sua coluna na Folha de São Paulo.