Unção dinástica

José Horta Manzano

Quando o capitão Bolsonaro designou seu primogênito para suceder-lhe, muita gente se surpreendeu. Consideraram que o ungido talvez não dispusesse do estofo necessário para o sublime encargo de presidir nossa república. Outros acharam que, além de não estar à altura das expectativas do pai, o primogênito fosse ruim de voto – fato que, na outra ponta, teria deixado entusiasmada a oposição.

Em primeiro lugar, vamos nos pôr de acordo. Em monarquias tradicionais, não cabe ao monarca designar seu sucessor – antigas regras se encarregam de fazê-lo. Já num nascente arremedo de dinastia, como a dos Bolsonaros, tradições não há. Eis por que, com as regras ainda por escrever, coube ao patriarca apontar o próprio sucessor.

Mesmo agrilhoado pelos ferros que o entravam nos calabouços da república, teve lucidez suficiente para dar-se conta de que seu reino tinha chegado ao fim e que era chegada a hora de abrir mão de alguma ilusão de poder que ainda subsistisse. Está aí a grande prova de lucidez de um homem que, por fim, se deu conta de estar encarcerado.

Só se as circunstâncias forem realmente adversas, o filho primogênito deixará de ser candidato à sucessão do pai. Mas o caminho fica traçado: cabe ao rei posto designar o sucessor. Todo e qualquer pretendente que ouse apresentar-se como candidato legítimo a suceder ao monarca caído não passará de reles usurpador.

Até aqui, falamos de sonhos e fantasias. Na vida real, Bolsonaro acaba de se dar conta de que o futuro de seu sobrenome está comprometido. Um dos filhos, aquele que conspirou contra o Brasil, nâo deve voltar à pátria tão cedo. Outro rebento jogou a toalha e renunciou definitivamente à política. O filho mais jovem não parece ter envergadura suficiente para voos mais altos: elegeu-se vereador por uma estação balneária catarinense. A esposa é uma figura; dizem as más línguas que não passa de aventureira sem lastro e sem passado.

Eis por que o capitão entregou o bastão ao primogênito: por falta de opção.

Essa novela brasileira se encaixa no modelo latino-americano de tentativas pseudodinásticas. Já aconteceu no Peru, com Alberto Fujimoro, que designou a filha, sem sucesso. Já surgiu na Argentina, com Juan Domingo Perón, que transmitiu o encargo à esposa, que levou a aventura ao desastre. O caso do Haiti foi outro que terminou em tragédia, com Duvalier pai morto e Duvalier filho exilado.

O Brasil decente gostaria que a campanha eleitoral do ano que vem assinalasse o enterro dos populismos grosseiros que nos atormentam há décadas. “De direita” ou “de esquerda”, que acabem todos comendo poeira e abrindo alas para nova geração de políticos mais comprometidos com o eleitor do que consigo mesmos. Não custa sonhar.

O lampião do capitão

José Horta Manzano

Circula pela mídia nesta terça-feira um vídeo mostrando uma revoada de repórteres, microfone na mão, todos correndo atrás de um comboio de automóveis de vidros fumês que se dirige à entrada da Polícia Federal de Brasília.

Quando vi a cena, imaginei que tivessem descolado um filmezinho do Bolsonaro sendo preso. Mas logo me lembrei que ele foi levado embora no lusco-fusco matinal de uma Brasília cochilenta, na maior discrição, sem algema e sem fotógrafo.

Atrás de quem estariam aqueles repórteres, então? Seria mais um figurão sendo conduzido para se explicar com o delegado? Olhei até o fim do vídeo. Surpresa: não era novo prisioneiro, era apenas uma visita. Tratava-se de um dos filhos de Bolsonaro, aquele que é senador e que era considerado moderado, até a semana passada, quando decidiu convocar uma prece coletiva para salvar o pai da cadeia. Vinha chegando para visitar o pai encarcerado.

Agora cogito: será que não estarão dando a essa gente uma importância que não têm? Bolsonaro foi eleito em 2017, por um desses golpes de má sorte que a natureza reserva a nosso país. Setenta anos atrás, o lema de Juscelino Kubitschek era “50 anos em 5” – anos de progresso e desenvolvimento, subentendia-se. O lema que se pode hoje atribuir ao governo de Bolsonaro é “40 anos em 4” – anos de destruição e marcha à ré, entende-se.

O capitão, como figura política, está morto e enterrado. Pode até ressuscitar um dia, que nada é impossível em nosso país, mas por enquanto está fora do jogo. A partir daí, não atino com a motivação de quem despacha a revoada de microfones atrás do filho que vem à cadeia visitar o pai condenado. Será a vontade de algumas redações de manter acesa a chama do lampião do capitão? Se não for isso, qual será o motivo de tanto auê?

Nunca serei preso!

José Horta Manzano

É imprudente fazer promessas que a gente está arriscado a ser incapaz de cumprir. Numa época como a nossa, então, em que tudo o que se diz ou faz fica gravado, registrado e arquivado com som e imagem, é duplamente imprudente.

Quem cospe para o alto periga receber a cusparada de volta na moleira. Recebi esse conselho de criança, mas parece que tem gente que não recebeu. Ou nâo quis seguir.

“Por Deus que está no céu, eu nunca serei preso”

Foi o que declarou um Bolsonaro triunfante em setembro de 2020 e em maio de 2021. Fez isso em plena pandemia, entre um e outro passeio de jet ski. Talvez já pressentisse, com anos de antecedência, o que o destino lhe reservava.

Êta família trapalhona! Só fazem besteira. Parece até que fazem de propósito, um trabalhando contra o outro, só para se atrapalharem mutuamente. Primeiro, teve aquele filho bobão que foi para os EUA, fez o que fez, deixou os juízes do STF mais enfezados do que estavam, prejudicou o pai, e agora, se voltar, vai direto para a Papuda. Estes dias, veio o mais velho, aquele que todos achavam fosse o menos abirutado, marcou uma aglomeração em frente à casa do pai, às vésperas do inevitável encarceramento. Pra coroar, no entrar da madrugada, o pai ainda tentou forçar a tornozeleira. (Não conseguiu, mas o mal estava feito.) Se quisessem forçar o encarceramento do pai, não teriam agido diferentemente. Gente estúpida.

O resultado da aventura é que Bolsonaro pai entrou na cadeia para uma boa temporada. Não faz mais sentido aliviar o regime para uma domiciliar – se isso fosse feito, voltaria o elevado risco de fuga. Não vejo como escapar dessa quadratura do círculo.

Uma sugestão, se me fosse permitido dar, seria bloquear uma pequena ala de um hospital de Brasília e arranjar aí uma cela para Jair Messias. O regime de cela especial da Papuda permaneceria: quarto individual, saleta, banheiro privado, cozinheta, armário individual. Ninguém poderia entrar nessa ala prisional, a não ser pessoas autorizadas.

Com isso, o prisioneiro teria seu direito a ser assistido em sua saúde 24 horas por dia. Se viesse a falecer, não teria sido por falta de hospital. Fora isso, o regime usual na Papuda seria aplicado: número de visitantes, horário das refeições. Nenhuma saída temporária da prisão seria necessária, dado que a assistência já estaria sendo fornecida in loco.

Bem, antes de nos despedir, vamos à moral da história:

Nunca se deve dizer nunca.

Lula III – 3 anos, 11 meses

José Horta Manzano

Em matéria de governo ruim, Lula 3 decaiu e está empatando com Dilma 2. Até que tinha começado bem, com aquela subida de rampa com direito a alegre convescote multicolorido, até com cachorro abanando o rabinho. Bom, precisa dizer que o alívio de não ver mais Bolsonaro nas paragens – e, principalmente, podê-lo chamar ex-presidente – era tão intenso, que qualquer espetáculo mambembe teria encantado o distinto público.

Mas o espetáculo não foi mambembe. O desfile no Rolls Royce da rainha foi como se deve, com presidente e primeira-dama, sem filho destrambelhado aboletado no banco de trás. Naquele dia, um Brasil aliviado até acreditou que tudo seria diferente dali pra frente. Tolinho…

Transformar água em vinho pode até ser possível, mas precisa de um tempo no caldeirão da feiticeira. Da noite pro dia, só na Bíblia. Portanto, todos deviam ter desconfiado que mudança tão brusca, de um governo tenebroso para um período de sonho, não podia acontecer de um dia pro outro. Como, de fato, não aconteceu.

Hoje, três anos passados e a um ano das próximas eleições presidenciais, a miragem que a alegre subida da rampa nos tinha trazido se dissipou. O sonho não passou de uma escapada passageira. Voltamos agora à realidade, do jeito que as coisas se apresentavam in statu quo ante.

O crime endêmico que gangrena nosso país dá mostras de estar mais organizado que o próprio Estado. Já era assim quatro e oito anos atrás, só que agora está mais forte, mais ancorado, mais diversificado. Enquanto o Estado cochilava (ou colaborava, vá saber…), o crime se profissionalizou.

Se até hoje não surgiu um Eliot Ness pra dar um jeito na criminalidade, a gente vai perdendo a esperança de que apareça um dia. O crime encontra muito respaldo país adentro, no Legislativo, no Judiciário, na indústria, no agropecuário, na banca e na finança. Desalojá-lo vai ficando cada dia mais complicado. Está em votação um projeto de lei dito “antifacção”, como se o crime organizado se desmantelasse por força de lei. Acredite quem quiser.

A um ano das eleições, Lula 3 entrou em modo Dilma. Como dizia Madame, “em tempo de eleição, faz-se o diabo”. Pois o diabo está de novo solto. Contenção de gastos? Teto de despesas? Suspensão na contratação de funcionários? Tudo balela! A gastança corre abalada, desenfreada, chispada. Como de costume, há quem aproveite para tirar uma casquinha. Mas, olhe lá, pequenininha.

Talvez bem aconselhado, Lula diminuiu a frequência de besteiras pronunciadas, especialmente em política internacional e em assuntos dos quais ele tem visão viciada por algum vírus contraído na mocidade. Isso nos ajuda a passar menos vergonha fora do país, mas não diminui nossa taxa de criminalidade nem colabora com nosso ajuste de contas.

No primeiro turno das presidenciais, não sei ainda a quem darei meu voto. Mas no segundo, caso se enfrentem Lula e um outro, vai depender. Se esse outro me parecer um pouco menos pior do que os que estão por aí, leva minha preferência. No entanto, se for um dos que se comprometeram a indultar um Bolsonaro hoje condenado e encarcerado, não há dúvidas: voto no Lula.

Que remédio?

O extremista caolho

José Horta Manzano

Não sei por onde andavam os extremistas de direita quando os de esquerda explodiam estações de estrada de ferro, sequestravam artesãos e matavam indiscriminadamente nos anos 70 e 80. Isso foi na Europa, mas até no Brasil, num tempo em que a vida andava muito vigiada e reprimida por aqui, esquerdistas extremados empreenderam ações ousadas e mataram gente.

Calada naqueles anos, a extrema direita só deu o ar de sua graça a partir dos anos 2010, coincidindo com a subida ao poder de Trump, Bolsonaro, Orbán e outros colegas europeus. Veio tarde, mas veio com força. Como prova disso, vejam o estrago que tem provocado no Brasil e no mundo. Bem tudo isso mostra que, independentemente da ideologia, a violência pode estar presente, basta cutucá-la com vara curta.

Direitistas extremos têm traços comuns com seus contrapontos da extrema esquerda. O desinteresse pelas grandes causas do país é um deles. O tarifaço de Trump dá mostra interessante. Para efeito de argumentação, vamos passar por cima dos capítulos iniciais da novela. Vamos direto ao capítulo mais recente, o encontro entre Lula e Trump.

O sucesso das tratativas, pelo menos até o momento atual, trouxe um alívio a inúmeros brasileiros. Muitos de nós estávamos assustados e apreensivos com o que estava acontecendo, cada um por um motivo. Uns temiam que sua pequena empresa exportadora fosse à falência, outros receavam perder o emprego, outros ainda se sentiam profundamente incomodados com o ataque intolerável à soberania nacional. Todos se sentiram aliviados de saber que as negociações iam no bom sentido.

Todos, não! A reação de bolsonaristas e de outros integrantes da direita extrema foi esquisita. Calaram-se e submergiram. Pior: tentaram (e continuam tentando) menosprezar e minimizar o que aconteceu na Malásia, que não lhes parece importante.

Ora, esse comportamento demonstra que certas pessoas não têm capacidade de enxergar além da ponta do nariz. Este escriba, que não é petista nem nunca foi, percebe que as tratativas entre EUA e Brasil estão indo no bom sentido. E festeja, porque, do jeito que as coisas vão, o final deve ser bom para brasileiros e americanos.

Não vejo por que razão eu deixaria de aplaudir iniciativas tomadas por políticos com quem nem sempre concordo, mas cuja ação me parece boa para todos. Infelizmente, parece que os extremistas, engessados por uma visão caolha, não têm capacidade de vislumbrar a grandeza de uma visão alargada do mundo. É pena.

Um manda, outro obedece

Pazuello e Bolsonaro

José Horta Manzano

Alguém se lembra dele? É Pazuello, aquele general do Exército do Brasil, que Bolsonaro tratava por “meu gordinho”? É exatamente aquele que explicou um dia, ao estender-se como capacho assumido de Bolsonaro: “É simples assim, um manda, outro obedece. Mas a gente tem muito carinho, viu?”.

“Meu gordinho”, militar sem a menor experiência em assuntos políticos, conseguiu o milagre de ser eleito deputado federal por seu estado, o Rio de Janeiro, de primeira, na onda do bolsonarismo triunfante. Não tenho notícias de sua atuação como parlamentar, mas, para o bem do povo fluminense, espero que o personagem esteja se desempenhando melhor do que quando cuidou do Ministério da Saúde, durante a pandemia. Naquele sinistro período, muitos morreram sufocados, sem balão de oxigênio, em consequência das trapalhadas do ministério que ele comandava.

Uma declaração dada estes dias por Mr. Pete Hegseth, ministro da Guerra dos EUA, me fez irresistivelmente pensar no general Pazuello. O maioral americano, um tanto exaltado no palco, diante de uma plateia de fardados das Forças Armadas norte-americanas, declarou enfaticamente estar cansado de ver “soldados gordos” e “até generais e almirantes gordos” Acrescentou que tal situação é inaceitável porque depõe contra a imagem de força e virilidade que o país e o mundo esperam do exército americano.

É verdade que conquistadores, generais e almirantes têm sido representados, em pinturas e estátuas equestres, como homens viris, longilíneos, de feições angulosas e, sobretudo, magros. Isso vale para figuras nossas, como Deodoro, Caxias e o Almirante Tamandaré. Vale também para personagens internacionais, como o general De Gaulle, Simón Bolívar e Francisco Pizarro, aquele que dizimou os incas.

Civis acima do peso, como Churchill e Getúlio, ainda vá lá. Mas militar gordo e vitorioso? É raro. Se acontecer, a história se encarregará de emagrecê-lo.

Em 2020, o TCU contabilizou quase 6.200 militares lotados no Palácio do Planalto, ocupando cargos civis. Bolsonaro, então presidente, se orgulhava de haver “militarizado” o governo. Hoje, olhando com a perspectiva do tempo que passou, é possível entender por que seu governo rodava aos trancos. Botar milhares de militares a ocupar cargos para os quais não haviam sido formados é chamar o desastre.

O levantamento do TCU não estratificou os militares por faixa de peso. Assim sendo, só nos resta conjecturar. Batalhão que luta na linha de frente de uma guerra não tem tempo nem condições de comer leitão pururuca, nem chips com páprica, nem brigadeiro. Tem de se contentar com o rancho que, em princípio, não inclui delikatessen. Já batalhões que trabalham – todos fantasiados de civis, cada um diante de seu computador, com máquina de café à disposição, com pausas e fins de semana livres – esses, sim, tendem a “amolecer”.

Quem amolece se aborrece e… come mais. Bastam poucos anos nessa dieta para formar o pequeno candidato à obesidade. É impossível saber quantos dos militares próximos de Bolsonaro entravam nesse quadro. Também é impossível conhecer o IMC (Índice de Massa Corporal) de cada um.

O que é certo é que milhares de militares foram alocados, contra a natureza, a um trabalho de escritório. Homens treinados para o trabalho físico, ao ar livre, em contacto com a natureza e a selva foram enfurnados em ambientes climatizados e cercados de janelões de vidro. Certamente não era o caminho que esperavam seguir ao se alistarem nas Forças Armadas.

Agora vem a conjectura. E se tiver sido essa espécie de amolecimento forçado uma das principais causas do malogro do tentado golpe de Estado? Boa parte da força armada com a qual Bolsonaro contava estava amolecida e engordada pelo bem-bom de anos de sedentarismo e climatização. Com militar gordo e mole, não se faz guerra. Nem se dá golpe.

França x Brasil: condenados lá e cá

by Kleber Sales

José Horta Manzano

Nicolas Sarkozy foi presidente da França por um mandato de 5 anos, de 2007 a 2012. Faz uns dias, foi condenado a 5 anos de prisão em regime fechado. A sentença estipula que Sarkozy permanece em liberdade por algumas semanas, mas que terá de cumprir a sentença, pelo menos inicialmente, atrás das grades. Um eventual recurso – com o qual o condenado já declarou que vai entrar – não terá efeito suspensivo. Em outras palavras, é cadeia ou cadeia.

A promotoria acusou o ex-presidente de ter recebido dinheiro da Líbia para sua campanha eleitoral. Observe-se que, à época, Muamar Kadafi era ditador do país. No entanto, a acusação não conseguiu provar o recebimento da alegada ajuda financeira. Assim sendo, Sarkozy não pôde ser condenado por corrupção.

Severo, o tribunal julgou que o acusado era assim mesmo culpado de formação de quadrilha, visto que ele tinha se reunido com dois amigos próximos para solicitar e receber o dinheiro vindo da Líbia, ainda que nenhuma transação tenha sido detectada na investigação.

Mesmo sem ser sarkozista, achei que os juízes foram muito severos. Enfim, se Sarkozy tivesse feito tudo certinho, dificilmente teria se encontrado diante de um tribunal. O que fica como marca desse julgamento excepcional são a pena de 5 anos e a obrigação de ser encarcerado imediatamente. Se deixaram algumas semanas de respiro ao condenado, foi em consideração por ele ter sido presidente da República e por já ter 70 anos.

Chamada Folha de S. Paulo
25 set° 2025

Todos nós conhecemos um outro ex-presidente que aprontou horrores, só que fez isso quando já estava na Presidência. Foi Bolsonaro. Como Sarkozy, também tem 70 anos – são do mesmo ano. Duas semanas atrás, Bolsonaro foi condenado, por um tribunal colegiado de 5 juízes, a 27 anos de prisão em regime inicialmente fechado. Apesar desse prontuário, está em “recolhimento domiciliar”, esperando não se sabe bem o quê.

Nosso sistema judiciário tem peculiaridades que o leigo tem, às vezes, dificuldade em entender. Julgado por um colegiado de magistrados da mais alta corte do país, com pena definida, o condenado continua em casa, na poltrona macia, de chinelas, dando ordens à família, à empregada e ao cachorro. Esperando o quê?

Hoje me diz a imprensa que “Bolsonaro toparia redução de penas com garantia de prisão domiciliar”. Toparia? Que quer dizer isso? Será que, antes de encarcerar o condenado, nosso sistema prisional propõe uma negociação? Tipo assim: o senhor quer redução de pena com prisão domiciliar ou prefere cumprir pena integral em regime fechado na Papuda? Francamente, não faz sentido.

Na França, o condenado Sarkozy, que está longe de ser um santinho, terá de provar a sopa rala que lhe servirão na Prison de la Santé ou outra qualquer onde for encarcerado. O camburão virá buscá-lo em casa assim que o juiz mandar. No Brasil, o condenado Bolsonaro, nosso ex-candidato a ditador mequetrefe, continua sentadinho na poltrona macia de sua mansão. Aguarda a garantia de prisão domiciliar. Com redução da pena.

Se, no púlpito da ONU, Lula tivesse lembrado de contar essa peculiaridade de nosso sistema, teria desarmado Trump. Imagine só: o bandido de estimação do presidente americano estará qualquer hora descondenado!

Wake up, America!

José Horta Manzano

O processo e o julgamento a que Jair Bolsonaro teve direito não são fato corriqueiro. De fato, não é todo dia que se assistem às consequências judiciais de um golpe dado com a intenção de tomar (ou conservar) as rédeas do poder de um Estado. Golpes há, processos são mais raros.

O malogro contribui para a raridade do que ocorreu com Bolsonaro: só golpe malogrado dá processo. Golpe bem sucedido costuma dar execução sumária (dos adversários), exílio, “desaparecimento”, cadeia ou coisa pior. Tudo longe de qualquer processo. Se o golpe urdido por Bolsonaro tivesse dado certo, só quem vive fora do país estaria em condição de comentar ou criticar neste momento. No interior das fronteiras, o silêncio seria obrigatório.

Golpes costumam ser bem planejados, bem organizados, bem disciplinados e, como consequência, bem sucedidos. Bolsonaro quis dar o seu, mas não tinha gabarito para tal. Como diziam os metalúrgicos do ABC, comeu mortadela e tentou arrotar peru. Entupido na própria mentira, dançou.

No momento atual, ao redor do mundo, não há muitos, vamos dizer assim, “pré-golpes”, como o de Bolsonaro em andamento. Há o caso da Hungria, um golpe como aquele que o capitão sonhou. Só que a versão húngara está sendo conduzida com método, paciência e disciplina, qualidades que nunca fizeram parte do arsenal bolsonárico. A distorção da democracia húngara já passou do ponto de não retorno. A meu ver, pouco ou nada se pode fazer para evitar a consolidação de um regime iliberal ali.

Há, sim, um lugar do globo em que a queda e a condenação de Bolsonaro devem servir de sinal de alarme porque ainda dá tempo: são os Estados Unidos. Não sei se por respeito, susto ou medo, os eleitores que não votaram em Trump nem têm por ele nenhuma simpatia continuam encantados, hibernados, paralisados.

Faz 8 meses que o novo presidente assumiu, já retalhou discricionariamente instituições, entrou em conflito com magistrados, com personagens da sociedade e com o eleitorado não branco, já desferiu golpes pesados em empresas importadoras, já comprou briga com países amigos com impostos de importação proibitivos, já se indispôs com a Rússia, com a Índia, com o Brasil, com a Suíça, com a Dinamarca, com o México, com o Canadá, com a Venezuela, com a Ucrânia. Meteu-se pessoalmente a perseguir juízes de nossa Corte Maior e a exigir que julgamentos em andamento fossem anulados.

Diante de tudo isso, os eleitores que não votaram nele continuam entorpecidos, sem reação, sem palavras, sem um pio. Dá vontade de gritar: “Wake up, America!” – Acordem, Estados Unidos! Está passando da hora de se agitar, desenterrar o machado de guerra (olhe lá, metaforicamente!) e agir. Juntem bons advogados, que vocês devem ter, estudem a melhor maneira de enquadrar Trump, a melhor brecha na lei para alcançá-lo, e vão em frente!

Por prudência, comecem desde já a preparar a luta a travar quando ele sair do governo, por fim de mandato ou por renúncia. Se puderem impichá-lo antes, melhor ainda. Vocês não imaginam o que perderão caso permitam que seu sucessor seja um cafajeste da mesma espécie.

Corram, que ainda dá tempo!

É bom já ir

by Marília März
in Folha de S.Paulo

José Horta Manzano

Imaginem uma loja de comércio que pegou fogo. Depois do fogaréu, vem a hora do rescaldo. Limpa-se tudo e separam-se cuidadosamente artigos carbonizados de produtos ainda em estado de ser vendidos: são os salvados de incêndio.

Na semana que termina neste dia 13, o rigor de um julgamento, rígido e preparado nos conformes, foi perturbado pela explosão de vaidade de um dos julgadores que, esquecido de que a palavra é de prata e o silêncio, de ouro, autoimolou-se na fogueira das vaidades. Num surto de verborragia, deitou fora uma solitária fala de quatorze horas, na qual desafiou a lógica, destratou os colegas e insultou a inteligência dos ouvintes. Um despautério. Tentou livrar os réus da condenação, mas foi voto vencido. Há quem diga “voto vendido”, mas há controvérsia.

Entre os salvados do incêndio, está o pequeno Mauro Cid, ajudante de ordens do então presidente Bolsonaro. Coube ao rapaz o papel de bom menino, por ter sido o único a fornecer verdades importantes para a instrução do processo. Embora teoricamente condenado, na prática sai livre e solto. Foi o único.

De aplaudir é também o estoicismo dos julgadores que, apesar da ameaça bem real de Trump de privá-los de visto, de conta bancária e de cartão de crédito, não se encolheram e enfrentaram de peito aberto. (Não foi o caso de Luiz Fux, que preferiu o caminho da desonra.)

Entre os artigos carbonizados, está o próprio Bolsonaro. Por mais que seus defensores reclamem, gritem, esperneiem e se apliquem a requerer habeas corpus, revisão de processo e quejandos, não hão de conseguir mexer na essência. Uma condenação a 27 anos de cadeia, ainda mais pronunciada pelo STF, não é bagatela.

Em termos práticos, Bolsonaro, mesmo sem a sentença ter transitado em julgado, está preso. Em prisão domiciliar, é verdade, mas de lá não deve sair. Trancado e incomunicável, não tem como açular sua malta. Dele, estamos livres. Espera-se que nos deixe tranquilos para sempre.

Vêm aí as eleições. Já sabemos que a urna não emitirá papelzinho (pra ser mostrado ao patrão). Será eletrônica, como estamos acostumados. Tirando os Bolsonaros menos perturbadores, que costumam visar a vereança, não devemos ter nenhum dos dois graúdos na cédula. Um porque está preso; o outro, porque não vai ousar voltar para o Rio, vai continuar nos EUA. Meio sem ter o que fazer, é verdade.

Não se sabe ainda quais serão os nomes que enfrentarão Lula. Em todo caso, três ou quatro governadores, que estão de olho gordo no Planalto, já perderam meu voto. Foram aqueles que defenderam Bolsonaro e, ao mesmo tempo, atacaram o STF. São também aqueles que prometeram conceder indulto presidencial a Bolsonaro. Entre eles, estão Tarcísio, Zema, Caiado, Ratinho Jr.

É bom que apareça alguma figura menos interesseira, se não vamos ter de votar no Lula de novo. Ui!

Janus

Janus
by Andrey Kokorin,
desenhista bielo-russo

José Horta Manzano


“A gente está aqui para defender a anistia!”

“Ninguém aguenta mais a tirania de um ministro como Moraes!”

“Nós não vamos mais aceitar que nenhum ditador diga o que a gente tem que fazer!”

“Chega do abuso, chega!”


Quem disse isso? Jair Bolsonaro? Um dos seus filhos, talvez? Ou, com certeza, algum exaltado pastor de almas num discurso inflamado?

Não, nenhum desses personagens. Engana-se quem ticou uma das opções acima. O autor dessas frases contundentes é, nada mais nada menos, que Tarcísio de Freitas, antigo militar, hoje governador de São Paulo, eleito graças à indicação de Bolsonaro, antigo chefe de quem é pupilo.

Pronunciou essas palavras de guerra aberta contra o Poder Judiciário em comício que teve lugar dias atrás, no 7 de setembro, na avenida Paulista, São Paulo. Foi naquela mesma manifestação em que tremulou uma gigantesca bandeira dos EUA, curioso símbolo de vassalagem a potência estrangeira, assomado bem no dia em que se comemora nossa independência de uma potência estrangeira…

Desde que virou governador, Tarcísio tem se equilibrado na crista do muro estreito que separa o golpismo, entranhado na doutrina bolsonarista, da democracia, almejada por todos os brasileiros de boa fé. Tarcísio ora pende para um lado, ora para o outro. Com bom talento de equilibrista, tem surfado conforme sopram os ventos da atualidade, piscando o olho para o povo de lá, acenando para o de cá.

Janus é o deus romano dos começos e dos fins, das boas escolhas, da passagem e das portas. Deu nome a janeiro, o mês que se situa na passagem entre dois anos; que dá adeus ao ano velho e saúda o novo. É um deus sábio, bastando ver como consegue se desligar do passado e se inserir no presente.

Nosso Tarcísio, calculista que só ele, chegou a um ponto em que foi compelido a tirar a máscara e mostrar a cara. Não havia mais como contemporizar numa situação como a que vive o país. Com o julgamento de Bolsonaro & demais golpistas entrando na fase final, espera-se, de cada um, que assuma sua posição no tabuleiro político – e que a declare, alto e bom som.

Na hora H, o governador de São Paulo deu um salto do muro e escolheu cair do lado do golpismo. Deitou, rolou e se lambuzou. E, ao levantar, revigorado e reembebido da doutrina que professou desde sua fase de aprendizado junto ao clã dos Bolsonaros, pronunciou memorável (e definitiva) arenga, da qual tirei as frases que encabeçam este artigo.

Janus é o símbolo dos começos e dos fins. Preside também às boas escolhas. Tarcísio de Freitas vestiu a máscara do deus romano. Muitos acreditaram que ele tivesse absorvido um pouco da sabedoria da divindade, mas foi ilusão. Na hora H, já se pôs a fazer escolhas erradas e mostrar que não passa de um Bolsonaro 2.0, que já começa mal.

Eleitores do Brasil, tomem cuidado! Quem já começa insultando o STF antes mesmo de se inscrever como candidato à Presidência, está pondo as cartas na mesa. Ninguém vai poder dizer que não sabia. Tarcísio de Freitas tem uma dívida de gratidão para com seu padrinho, Jair Bolsonaro. E pretende pagá-la sendo-lhe fiel nas palavras e nos atos.

É bonito ver a gratidão de um beneficiário! Mostra não ser mal agradecido, o que é um bom traço de caráter. Pena que, neste caso, o padrinho é um pilantra. Agora, todo o Brasil se dá conta de que este futuro candidato a presidente já dá a largada com o rabo preso. E logo com quem…

Passamos quatro anos como espectadores, paralisados diante de uma tensão insuportável entre o presidente da República e os magistrados do STF. Agora que estávamos caminhando para a normalização das relações entre os Poderes, não queremos recomeçar a luta, com um eventual novo presidente que, desde que se candidatou, já mostrou como será a toada.

Xô, gente encrenqueira e oportunista! Já temos o Trump para semear pedras no nosso caminho. Não precisamos de mais um estagiário.

Bolsonaro e o filho imaturo

José Horta Manzano

Segundo palavras do próprio Jair Bolsonaro, seu terceiro filho – aquele que se autodegredou para os EUA a fim de atravancar a vida do Brasil – é imaturo. De diagnóstico de pai, quando é elogioso, é melhor desconfiar; mas quando é crítico, convém prestar atenção.

Quando li essa declaração, que o capitão tirou do bolsinho de trás no meio de uma fala qualquer, concordei com ele. Tratá-lo de “imaturo”, aliás, me pareceu quase elogioso. A imagem do rapaz, no dia em que posou para uma foto (ao lado do pai que jazia numa cama de hospital em recuperaçâo de cirurgia), abrindo o paletó e exibindo ostensivamente um revólver grande como os dos capangas de Al Capone, me deu certeza de que algo estava fora de prumo no bestunto do bolsonarinho.

O tempo passou. Um dia, o Zero Três decidiu instalar-se nos EUA. Muitos acharam que estivesse fugindo. Também acreditei, mas hoje não tenho mais tanta certeza. O plano arquitetado para livrar o velho Bolsonaro da cadeia, detalhado pelo zerinho, parecia não passar de ameaça. Quem imaginaria que Trump, apesar dos rompantes ególatras, ia atravessar o Rubicão e aplicar contra o Brasil uma lei feita pra castigar bandidos?

Mas acontece que um Trump, irritado com:

  • o antiamericanismo explícito e persistente de Lula (considerado por Donald Trump um perigoso comunista);
  • o ativismo terceiro-mundista do Brics, que a cada dia mais parece um conclave de ditaduras sanguinárias;
  • os permanentes ataques, proferidos por Lula em particular, contra o predomínio do dólar como moeda de trocas internacionais;
  • as limitações impostas pelo Congresso brasileiro a big techs americanas,

aproveitou o tsunami de “tariffs” para aplicar mais 50% aos impostos de importação que incidem sobre mercadorias vindas do Brasil.

Por seu lado, o zerinho expatriado não passou férias nem folgou: fez o que disse que ia fazer. Tanto chuchou os áulicos de Trump, que conseguiu o que tinha ido buscar: a Lei Magnitsky, em princípio feita para castigar gângster, foi aplicada contra o ministro Moraes, relator dos processos ligados ao malogrado golpe do 8/1.

Mas o pior vem agora. Como espada de Dâmocles, a mesma lei fica como ameaça pendurada sobre a cabeça dos “aliados” de Moraes, ou seja, os que acompanharem seus votos.

As consequências da aplicação da tal lei antigângster são tão temidas, que os demais ministros já parecem amarelar. Barroso já deu a entender que estará se aposentando em breve. Outros dois, Mendonça e Fuchs, já mostraram seu temor, ao pedir vista para atrasar processos.

É bem provável que, como bons brasileiros com finanças mais folgadas, ministros do STF tenham interesses pessoais nos EUA: apartamento em Miami, um filho que estuda lá, uma reserva de dólares aplicada no país, etc. Assim, é compreensível que todos estejam inquietos com a perspectiva de que a espada se lhes despenque sobre a cabeça.

A dosagem dos “tariffs” de Donald contra o Brasil foi tão violenta, que automaticamente afastou toda perspectiva de negociação. Com taxa assim, nem dá pra ensaiar uma conversa.

Mas a “dosimetria”, se assim me posso expressar, de aplicação da Lei Magnitsky, já efetiva para um dos ministros e latente para os demais, foi lance de mestre. Não acredito que essa graduação tenha saído do bestunto “imaturo” (segundo Bolsonaro) do Zero Três. Mas tanto faz.

A história registrará que o rapaz foi lá, cutucou, pediu, argumentou, explicou, e acabou conseguindo o que queria. Poucos meses atrás, ninguém além dele acreditava que fosse dar certo. É chato constatar, mas… parece que deu.

Estamos todos, a nação inteira, à mercê do que vier e, sejamos francos, impotentes diante das rajadas musculosas com que Trump tenta sabotar nossa integridade.

Vamos ver o que o futuro nos reserva.

Bolsonaro, Trump e o teatro da prisão domiciliar

Clã Bolsonaro

José Horta Manzano

A prisão domiciliar de Jair Bolsonaro, longe de ser um acidente político ou uma mera consequência judicial, parece ter sido provocada de forma deliberada. Tudo indica que o ex-presidente, em conjunto com membros do seu clã familiar, esticou a corda conscientemente, de caso pensado, e “cavou” essa prisão domiciliar como parte de uma estratégia que vai além das fronteiras nacionais. O objetivo? Despertar a atenção – e a ação – de Donald Trump.

Trata-se de uma jogada desesperada, mas alinhada com a lógica que rege o bolsonarismo desde o início: a crença de que a realidade pode ser moldada a partir de narrativas delirantes e alianças simbólicas. Essa movimentação, por mais absurda que soe (pode até ser confundida com roteiro de novela), segue um raciocínio próprio da bolha em que o bolsonarismo se aninha. É, em essência, a ingenuidade bolsonarista levada ao paroxismo.

Nesse contexto, até Donald Trump – com todo seu histórico de absurdos – passa a parecer um dirigente equilibrado, se comparado à atuação tresloucada dos Bolsonaros. A família revela um egoísmo sem limites. Ao que tudo indica, não haveriam de hesitar em ver o país ruir se isso significasse a salvação pessoal do patriarca. Se a única saída fosse um bombardeio atômico que destruísse o Brasil, a escolha seria óbvia para eles: que se dane o país, desde que o pai se salve.

O que parece estar em curso, neste momento, é uma tentativa explícita de provocar Trump. Os Bolsonaros querem ser vistos como vítimas de um sistema judicial “perseguidor”, esperando que isso alimente o discurso populista e conspiratório do ex-presidente americano. Com isso, esperam que Trump amplie as sanções contra o STF e contra o Brasil.

O problema dessa estratégia é que ela desconsidera uma realidade simples: nem o STF, nem o governo brasileiro, estão dispostos a se curvar diante de pressões externas. As instituições brasileiras seguem com firmeza o caminho que lhes traçou a Constituição de ‘88. Para um grupo que passou anos governando o país sem demonstrar qualquer apreço por valores como brios, pudor ou responsabilidade, há de ser incompreensível descobrir que ainda existem líderes com vergonha na cara.

Em certas cabeças, a esperança bolsonarista de escapar das consequências jurídicas depende menos de fatos e mais da construção de uma narrativa internacional de martírio político. O plano, no entanto, está fazendo água e parece cada dia mais deslocado da realidade.

Enquanto isso, o Brasil segue seu curso, enfrentando as turbulências deixadas por um governo que jamais colocou os interesses nacionais acima dos seus próprios.

Aula de línguas

José Horta Manzano

Com boa vontade, se consegue encontrar o lado bom de coisa ruim – e vice-versa. Até da crônica policial dos jornais, espremendo bem, algum ensinamento bom às vezes sai.

As aventuras de nosso horrível capitão já estão cansando. Tanto problema mais importante no Brasil, e só se fala dele. Agora até o Trump resolveu dar seu pontapezinho no formigueiro nacional. Uma canseira.

Donald deve imaginar estar tratando com Zambeze, Tanganika ou Bechuanalândia (pra não ofender ninguém, são países que, se existiram um dia, já sumiram). Só faltava agora o Brasil modificar suas leis para satisfazer aos caprichos daquele ogro ignorantão. Só cretinos acreditariam nessa possibilidade. E parece que houve gente que acreditou firme. Cretinice não paga imposto. Tsk, tsk…

Bom, eu dizia que as notícias policiais abrem as portas do aprendizado de dezenas de línguas estrangeiras. Duvida? Pois é como lhe digo. Tome, por exemplo, a sugestiva expressão tornozeleira eletrônica. Já é poética em si, mas há línguas que preferiram adicionar-lhe charme e a chamam de bracelete eletrônico. Um encanto, pois não? Não corresponde à realidade, mas… quem se importa com a licença poética? A conhecida “caixa preta” do avião é cor de laranja e ninguém reclama.

Aqui abaixo vai um apanhado de manchetes que colhi na mídia. Em cada uma, grifei em vermelho a expressão tornolezeira eletrônica. Algumas são facilmente reconhecíveis; quanto a outras, precisa afiar os olhos e procurar bem.

Então? Pronto para aprender o nome do cobiçado acessório que Bolsonaro já começou a portar? Antes disso, só uma observação. Dizem do ex-presidente que ele é um “quase-presidiário”. Pois eu diria que é mais que isso: já é um presidiário. Se não, vejamos:

é vigiado 24h por dia

está proibido de entrar nas redes

está proibido de sair de casa das 19h às 7h

está proibido de sair de casa nos fins de semana

está proibido de passar perto de embaixadas

está proibido de entrar em contacto com os corréus

está proibido de falar com o filho que sabe inglês

E então? Não lhe parece um verdadeiro regime de presidiário? Deveriam até descontar estes meses dos quarenta anos de sentença que deve receber.

Agora vamos às manchetes e a nosso curso “Aprenda 14 línguas em 7 minutos!”.

 

Em francês: bracelet électronique

 

 

 

Em catalão: braçalet electrònic

 

 

 

Em alemão: Fußfessel (Fussfessel)

 

 

Em tcheco: elektronický náramek

 

 

Em inglês: ankle monitor

 

 

 

Em espanhol: tobillera electrónica

 

Em italiano: braccialetto elettronico

 

Em letão: piešķirts potītes


Em lituano: apykoję

 

Em polonês: elektronicznej bransoletki

 

Em húngaro: elektronikus nyomkövetőt

 

Em romeno: brățară electronică

 

Em sueco: fotboja

 

Em finlandês: nilkkapanta

 

 

Ocaso dos populistas

José Horta Manzano

Lula anda se comportando feito barata acuada. Corre pra um lado e pra outro, hesita em trocar ministros, tira da cartola um programinha populista aqui, outro ali, tudo de circunstância, sem consistência. Mostra, a cada dia, não ter programa de governo. Na sua cabeça, que parece ter estacionado no tempo de seus mandatos anteriores, imaginou que pudesse se comportar como Midas moderno, resolvendo todos os problemas com um toque. Não está dando certo.

Bolsonaro é outro que anda deslizando, cada vez mais enrolado. Nos bons tempos em que lhe serviam café quente, vencia todas e agredia sem medo todas as autoridades da república. Pairava, inatingível, acima da ralé e da grã-finada. Hoje o vento mudou. Não entra mais em palácio. Seus comparsas estão presos ou à beira de o ser. Desconcertado, agarra-se a qualquer miragem que lhe pareça poder livrá-lo da cadeia com a qual já tem encontro marcado.

Trump está decepcionando os que dele esperavam um poderoso “abre-te sésamo” que projetasse os EUA num futuro brilhante de riqueza e prosperidade. Suas promessas de campanha andam mal das pernas. A expulsão de 11 milhões de trabalhadores clandestinos está se verificando meta inatingível, fora de qualquer cogitação. O conflito ucraniano, que seria resolvido em 24 horas, foi posto de molho. Bombas continuam explodindo na capital ucraniana. O vaivém dos impostos de importação mostrou, depois de perturbar as finanças do planeta, que não tinha vindo pra ficar, que era só uma ameaça. Caiu mal.

Putin continua lá no seu canto, jururu, sem conseguir vencer a guerra que declarou contra um vizinho bem menor e menos poderoso que ele. Ele também há de estar perdendo a confiança em Trump, aquele que prometia acabar com a guerra em um dia.

Milei, dizem, também anda inconformado. Seu sonho teria sido que a Argentina, e não o Canadá, tivesse sido convidada a se tornar o 51° estado americano.

Marine Le Pen é deputada francesa da extrema direita populista. A cada eleição para a presidência da república, seu nome na urna é tão infalível quanto brigadeiro em festa de criança: está sempre lá. E já faz umas duas ou três vezes que passou para o segundo turno. Pois Madame acaba de receber uma pena de prisão e de cinco anos de inelegibilidade. Em vez de prisão, terá de andar com tornozeleira eletrônica, mas a inelegibilidade é pra valer: não poderá disputar a próxima eleição.

Os que mencionei não são os únicos, há muitos outros líderes populistas no mundo. Falei dos que estão mais próximos de nosso universo. A julgar por eles, este ano da graça de 2025 parece assinalar o fim – ou pelo menos uma pausa – na pestilenta vaga de populismo que nos circunda.

Tomara que a pausa dure bastante tempo. Tomara que as próximas presidenciais brasileiras não tragam nenhum candidato populista na urna. Uma eleição sem Lula e sem Bolsonaro será uma bênção.

São Benedito é santo forte. Não sei se seus braços alcançam Le Pen, Milei, Putin e Trump. Mas sei que têm poder em Brasília.

Sem Lula e sem Bolsonaro(s), por favor, meu Santo!

É o fim da minha vida

José Horta Manzano

O distinto leitor e a graciosa leitora hão de se lembrar da birra que Jair Bolsonaro tinha com a Folha de São Paulo. Birra? Que digo! Era ódio mesmo. Aconteceu mais de uma vez ele mandar expulsar jornalista(s) daquele veículo que ousassem estar presentes numa coletiva de imprensa.

Rei morto, rei posto. As coisas mudaram. Hoje, longe do poder, sem a caneta, sem mandato, sem imunidade, acuado pela justiça penal, Jair tem disfarçado a crista. Não digo que tenha perdido a soberba, mas, vez por outra, deixa de lado a pose de imbrochável (hoje recauchutado e amparado pela ciência) e veste a máscara de coitadinho.

Fez isso estes dias, ao aceitar ser entrevistado por uma jornalista (uma mulher!) da Folha. Com palavras humildes, respondeu às perguntas que lhe fez a moça. Como de costume, safou-se de toda culpa na trama em que é acusado. Não fez nada de errado, não cometeu nenhum deslize, não conspirou, não incentivou, não deu luz verde para nada, viajou para a Florida para não ter de passar a faixa, não sabe de nenhum crime, não invadiu palácio nenhum, não quebrou nada. E pergunta onde está a “prova” de um possível golpe.

Foi indagado sobre as consequências de uma eventual prisão, se isso poderia representar o fim de sua carreira política. A resposta veio de bate-pronto:


“É o fim da minha vida. Eu já estou com 70 anos!”


Eu, que já passei dos 70 faz uns bons anos, fiquei comovido. Me pus a imaginar a figura de um ancião confinado num cômodo de alguma vila militar, possivelmente na capital federal. Com armário, micro-ondas, minibar, tevê mural, banheiro exclusivo. Tudo isso e mais o escambau. Pode parecer o fino da hospedagem, mas não deixa de ser prisão, um lugar onde o hóspede fica confinado e não sai quando deseja.

Apesar da comoção, meu pensamento foi mais longe. Voltei cinco anos no tempo. Tornei a sentir o bafo de desespero que emanou do povo brasileiro naqueles dias de pandemia brava. Lembrei de gente carregando cilindros de oxigênio para acudir parentes morrendo de asfixia em hospitais, vítimas da inépcia do general que comandava o Ministério da Saúde (e que hoje é deputado federal!). Lembrei de um odioso Bolsonaro, que teve a ousadia de arremedar, diante de câmeras e microfones, os estertores da respiração ofegante dos moribundos.

Lembrei de muitas outras situações em que Bolsonaro se posicionou frontalmente contra os interesses vitais do povo brasileiro, que acabou contabilizando cifra assombrosa de mais de 700.000 mortos de covid-19.

Talvez, no futuro, a Ciência consiga estabelecer com certeza quantos óbitos devem ser debitados da conta do capitão, pelas ações tomadas e/ou decididas por ele no enfrentamento da pandemia. Hoje, mesmo não possuindo ainda essa fórmula, é lícito intuir que milhares, dezenas de milhares, quiçá centenas de milhares de mortes poderiam ter sido evitadas se o então presidente quisesse realmente, como ele afirma na entrevista, “o bem do meu país”.

Para Bolsonaro, alguns anos numa prisão de primeira classe serão “o fim da vida”. Isso porque ele já está com 70 anos.

Há milhares de brasileiros, ricos e pobres, bolsonaristas e lulistas, jovens e velhos, para os quais não haverá prisão. Nem de primeira nem de última classe. Estão mortos. Para eles, o “fim da vida” já foi. A covid, associada à pusilanimidade pérfida do presidente, não lhes deu tempo de chegar aos 70 anos. Nunca verão os futuros netinhos.

Bolsonaro, de todo modo, um dia sairá da cadeia e voltará ao convívio dos seus. Suas vítimas, ai delas, não voltarão nunca mais.

Asilo em embaixada

José Horta Manzano

Bolsonaro já deixou entender que, a qualquer momento, com ou sem passaporte, pode pedir asilo numa embaixada em Brasília. Muitos analistas vão nesse sentido e dão crédito ao que diz o capitão. O grande Elio Gaspari já previu que Jair Messias não passará nem um dia atrás das grades porque vai se asilar. Minha visão é menos otimista. Acho importante fazer a diferença entre pedir e obter o tal asilo. Pedir qualquer um pode. Conseguir são outros quinhentos.

Se o distinto leitor acordar um dia disposto a se asilar numa embaixada chique, pode vestir terno de três peças, preparar pequena valise com o necessário para alguns dias e tocar a campainha do imóvel. Em seguida, pode escrever: terá 100% de probabilidade de receber resposta negativa. Não vão nem lhe permitir a entrada.

Bolsonaro imagina-se um ser superior à ralé que o circunda. Acredita que basta se apresentar pelo porteiro eletrônico que um tapete vermelho vai se desenrolar para sua entrada triunfal. Cada um acredita no que quer. Se eu fosse ele, não teria tanta certeza do roteiro.

Todos nos lembramos dos dois dias que ele passou dentro da embaixada da Hungria em fev° 2024. O episódio foi tão escondido que nenhum veículo da imprensa nacional tinha ficado sabendo. Quem revelou o enredo foi o jornal The New York Times, um mês depois – com fotos, que é pra ninguém duvidar.

Quanto a mim, entendi que os acontecimentos tinham sido revelados ao NYT pela própria embaixada a mando do governo húngaro. Valeram-se do jornal mais importante do mundo para deixar claro que o ex-presidente tinha penetrado na embaixada por sua própria conta, que não tinha havido nenhum conluio, que ele havia pedido asilo e que Budapeste havia negado. Bolsonaro já era página virada e a Hungria não tinha interesse em se indispor com o governo brasileiro.

Pois a mesma realidade continua valendo. Desde que o ex-presidente deixou o Planalto, o mundo virou a página Bolsonaro. Bola pra frente. Política se faz com a razão, não com o coração. Os países com embaixada em Brasília pretendem manter boas relações com o Estado brasileiro, sejam quem forem os governantes de turno.

Bolsonaro tornou-se um estorvo, uma batata quente que ninguém quer segurar, um mico do qual cada um quer se livrar. Assim que for julgado e condenado, caso ouse se enfiar em alguma representação estrangeira, ele periga ser incluído na lista dos foragidos da Interpol. Ninguém está disposto a carregar trambolho.

Inelegibilidade

José Horta Manzano

Estava lendo agora há pouco um relato n’O Globo sobre a possível extensão da inelegibilidade de Bolsonaro se, porventura, vier a ser condenado. Explica o texto que a inelegibilidade passa a contar do fim da execução da pena. Se, por exemplo, o ex-presidente viesse a receber a sentença máxima (43 anos), estaria inelegível por 50 anos.

Se essa é a lei atual, cumpre-se. Leis são feitas para serem cumpridas. Mas também são feitas para serem alteradas. Essa história de inelegibilidade temporária me intriga.

Ao condenar Bolsonaro a oito anos de privação do direito de ser eleito, pressupõe-se a expectativa de que, ao final do período de privação de eleição, o antigo presidente se tenha transformado, que sua personalidade volte despida de toda agressividade, que seu comportamento reapareça livre de intenções golpistas.

Ora, sabemos todos que não será assim. Pau que nasce torto não tem jeito, morre torto. Desde a juventude, quando tentou criar o caos no Exército por meio de explosivos, Jair Messias não mudou um milímetro. Assim como entrou na Presidência, saiu. Como é que alguém pode ter a ilusão de que ele se transformará após 8 anos de provação? Que acompanhamento psicológico foi previsto para ele durante esse período de abstinência de votos? Nenhum.

Logo, o período de inelegibilidade é apenas um castigo, uma punição, sem esperança de remissão dos pecados, ou seja, de regeneração da personalidade. Se assim for, parece-me medida inócua, que só protela a volta do malfeitor, carregado dos mesmos defeitos que lhe eram peculiares.

Por seu lado, se um indivíduo é condenado a não mais ter o direito de candidatar-se a cargo público, a mim parece que a pena deveria ser definitiva. Dado que o cidadão foi condenado por defeitos de sua própria personalidade, não faz sentido dar-lhe um castigo temporário. Ao final, voltará com os mesmos defeitos, se candidatará e, caso seja eleito, espalhará os mesmos problemas.

Em resumo, penso que a condenação à inelegibilidade deveria ser definitiva, sem possibilidade de volta atrás. Ou que, caso se acredite na possibilidade de “cura” do apenado, que se o obrigue a seguir os passos médicos ou psicológicos impostos pelo tribunal.

Paz de mentirinha

José Horta Manzano

Sabe aquele sorriso meio forçado que a gente dá em direção ao fotógrafo, sorriso que não reflete a verdade do momento e que só serve pra aparecer bem na foto? É a imagem que me vem à mente quando vejo a autolouvação de Trump e Putin na sequência da conversa telefônica entre os dois. Desligado o aparelho, o mundo continua igual e a tão desejada paz continua longe e difícil de alcançar. Mas o sorriso meio forçado sai bem na foto e satisfaz ao ego.

Donald Trump não tem a menor ideia do que seja a geopolítica. Talvez nem chegue a se dar conta de que as relações entre os diferentes países são regidas por fios sutis e sensíveis, e que um leve esbarrão na teia repercute em todo o trançado. Sua especialidade são os negócios.

Dizem que é excelente homem de negócios, agressivo, resistente, incisivo. Não há razão para duvidar de suas habilidades. O problema é que relações internacionais não devem ser tratadas como quem compra uma peça de tecido ou meio lote de terreno. É grave que um presidente seja a tal ponto desconectado da dualidade entre diplomacia e negócios. Os dois mais recentes presidentes de nossa maltratada república tinham ambos algo de Trump.

Quanto aos negócios, não sei, mas o fato é que nenhum dos dois manjava lhufas de diplomacia. Daí o tempo perdido por Bolsonaro que passou seu mandato vituperando contra a China, insultando a primeira-dama da França e arrumando encrenca gratuita com uma dúzia de outros países. Lula seguiu pelo mesmo caminho. Arrogante e soberbo, destratou o presidente da Ucrânia e deu ao mundo seu peculiar diagnóstico pessoal segundo o qual a Crimeia, parte integrante do território ucraniano, tinha de ser entregue ao invasor. Sua dose cavalar de orgulho levou-o ainda a arrumar encrenca com Israel, país onde acabou sendo declarado “persona non grata” – vejam que cúmulo!

Mas essas trapalhadas não perturbaram o equilíbrio do planeta. E isso por uma razão simples: o Brasil não são os EUA. Dirigentes de um país periférico, carente, militarmente pouco significativo, nossos figurões são tigres sem dentes, que não assustam. Já o presidente dos EUA, quando faz das suas, assusta. E muito.

Quando Trump pega o telefone e chama Pútin para darem cabo, juntos, à guerra provocada pela invasão russa à Ucrânia, toda a teia dos relacionamentos globais estremece. É que o presidente americano, certamente sem se dar conta, acaba de entrar de sola num terreno espinhoso, cujos problemas não podem ser resolvidos no grito, nem no par ou ímpar, nem no dadinho.

Está fazendo três anos que a grande Rússia invadiu a pequena Ucrânia. Os invadidos vêm lutando com muita bravura, tanto que até agora seguraram o exército de Pútin. Milhões de ucranianos fugiram do país e se asilaram na Europa que, generosa, os acolheu a todos. Faz três anos que todos os países europeus vêm ajudando a Ucrânia, cada um conforme suas possibilidades. Faz três anos também que os EUA vêm ajudando com fornecimento de material bélico, sem o qual a Ucrânia não teria resistido.

De repente, chega um sujeito de pé grande, vira o jogo e, sem avisar aos aliados, decide entrar em comunicação com o ditador do país agressor, passando por cima do país agredido e de todos os aliados que contribuíram para segurar até agora o tirano. Imagine a que ponto a geopolítica está assustada. Não é todos os dias que se assiste a uma traição tão flagrante e tão desenvolta.

A não ser que, nas trevas da equipe de Trump, um raio de luz consiga penetrar e ensinar que não é assim que se joga esse jogo. Do jeito que está, o presidente americano está reabilitando o ditador russo e condenando a pobre Ucrânia a uma existência de medo, sob a ameaça permanente do apetite expansionista do vizinho e grande irmão moscovita.

Talvez nem a Otan resista a essa inacreditável quebra de aliança.

O homem da continência

John Bolton

José Horta Manzano

Na manhã do dia 29 de novembro de 2018, já eleito mas ainda não empossado, Bolsonaro recebeu em sua casa do Rio de Janeiro um emissário do então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. O visitante era um senhor de cabelo e bigode brancos chamado John Bolton, assessor de Segurança Nacional nomeado por Trump.

Assim que Mr. Bolton apontou no portão do jardim, um entusiasmado capitão, empertigado na soleira da porta de casa, bateu continência ao visitante(!), aquela saudação que um militar deve obrigatoriamente fazer diante de outro militar de grau mais elevado que o seu.

O primeiro a se surpreender com o gesto deve ter sido o próprio americano, desacostumado a ver as regras militares tratadas com leviandade, mas a mídia brasileira tampouco deixou passar em branco. Os comentários foram de espanto com a atitude do novo presidente do Brasil que, assim, deixou clara sua postura de curvar-se diante dos EUA, representados ali pelo emissário. Pegou supermal.

Nem o suco de caixinha e o pão com leite condensado servidos naquele petit-déjeûner em honra ao hóspede tresnoitado foram capazes de atenuar a sombra de mal-estar que pairava no ambiente. Mr. Bolton entregou a Bolsonaro o convite que Donald Trump lhe fazia para visitar os Estados Unidos.

Os anos passaram, Trump perdeu a reeleição, Bolsonaro terminou seu governo calamitoso e também perdeu a reeleição. Agora, depois de quatro anos atravessando o deserto, Donald Trump conseguiu ser de novo eleito para a presidência. Nas 24 horas que se seguiram à tomada de posse, despejou um balde de decretos carregados de ressentimento, raiva, perseguições, intolerância. Desfez medidas que seu antecessor havia implementado. Atirou a torto e a direito.

Um dos projéteis atingiu John Bolton, seu antigo assessor de Segurança Nacional, aquele que havia sido homenageado com a continência de Bolsonaro. O homem aparentemente caiu em desgraça, não se sabe exatamente por que razão.

O que se sabe é o seguinte. Em 2021, o presidente Joe Biden tinha concedido a Mr. Bolton proteção permanente do Serviço Secreto em razão de ameaças de morte proferidas pela Guarda Revolucionária Islâmica do Irã. Pois ao voltar à presidência esta semana, Trump revogou a proteção policial permanente dada a Mr. Bolton. Supõe-se que tenha feito isso por capricho, só para desfazer o que Biden tinha feito. Veja em que mãos está o governo dos EUA!

Bem, Bolsonaro que se cuide. Assim como ele mesmo faz com seu costume de abandonar amigos e correligionários feridos pelo caminho, Trump leva jeito de fazer igual.

Trump aprecia ganhadores, vencedores, os que ele chama de “winners”. Um Bolsonaro no Planalto podia até interessar Trump, mas um Bolsonaro na rua da amargura, cheio de processos e ameaçado de cadeia, periga ser atirado ao mar para alegria de tubarões e camarões.

E o barco segue.

Tu não te manca?

by Laerte Coutinho (1951-), desenhista paulista
via Folha de S. Paulo

José Horta Manzano

Chega a ser irritante a insistência do ex-presidente Bolsonaro em fazer de conta que ainda é o que já deixou de ser. De fato, um indivíduo que foi apeado do poder há dois anos e que é hoje inelegível e indiciado em um balaio de crimes deixou de ser um cidadão comum, como a maioria de seus concidadãos. Ele é hoje uma pessoa suspeita de ter praticado crimes e tem, portanto, contas a prestar à justiça.

Você e eu não vivemos sob “medidas cautelares” impostas pela justiça do país. Não temos de bater o ponto na delegacia; não precisamos pedir licença para visitar quem nos dê na telha; não estamos de passaporte retido pelas autoridades, impedidos de pôr o pé fora do país. Bolsonaro não pode dizer o mesmo. Suas liberdades estão cerceadas. É um indivíduo a um passo da infâmia de tornar-se réu da justiça criminal.

Apesar disso, ele volta e meia dá uma de joão sem braço e manda seus advogados solicitarem ao STF favores aos quais não faz jus. Sua proeza mais recente foi pleitear lhe concedessem autorização especial para reaver o passaporte e partir para uns dias de vilegiatura em Washington (EUA). A-do-ra-ria prestigiar(?) os festejos da tomada de posse de Donald Trump como presidente do país. Se conseguisse tirar uma selfie ao lado do empossado, então, seria a glória, a consagração.

Ó Bolsonaro, tu não te manca não, cara? – é assim que a gente costumava arrematar uma ousadia desse calibre. É impressionante como certos caras se consideram importantes como se fossem figurinha carimbada, enquanto não passam de reles figurinha rasgada. Não ornam mais nem álbum de criança.

Por que, raios, a justiça concederia favores especiais a um sujeito que passou os quatro anos de seu mandato a invectivar as instituições da república, o Judiciário em particular?

Que ele curta o empossamento de seu amigo Donald pela tevê, como todo o mundo, sentado no sofá da sala. Que aproveite, porque, quando estiver em cana, talvez nem direito a televisão lhe concedam.