A origem da receita

José Horta Manzano

Você sabia?

Quem vai ao médico, nos dias de hoje, não se dá conta de que a regulamentação da profissão ― em terras europeias e americanas ― é relativamente recente.

Da Idade Média até o século XIX, a arte de curar foi exercida por corporações disparates, tais como: homens de igreja, barbeiros, boticários, tira-dentes, curandeiros, charlatães, feiticeiras.

Prescription 2

A Revolução Francesa, entre outros feitos, tornou a sociedade consciente de que certas práticas ancestrais reclamavam por normatização. O sistema métrico, por exemplo, é fruto daquela época. Até então, havia um rosário de unidades de medida ― de peso, de capacidade, de tamanho. Pés, polegadas, quintais, braças, arrobas variavam de uma região a outra.

A Revolução, assim como normalizou as unidades de medida, apontou para a necessidade de sistematizar outros atos e procedimentos que cada um costumava, até então, executar a seu modo. A regulamentação de certos ofícios começou naquela época.

A valorização das profissões da área de saúde ― medicina, cirurgia, farmácia ― gerou, como corolário inevitável, o rebaixamento de curandeiros e feiticeiras. Barbeiros passaram a dedicar-se unicamente à pilosidade de seus clientes, deixando sangrias e extrações dentárias para profissionais habilitados.

Olho de Horus

Olho de Horus

Embora já fosse adotada esporadicamente desde o século XVII, ganhou força aquela marca de que uma receita tinha sido prescrita por um profissional. Tratava-se de um R barrado ― este aqui: .

Está em uso até nossos dias. É muito provável, distinto leitor, que o médico que cuida de sua saúde tenha guardado o que lhe ensinaram na escola e continue a marcar suas receitas com o símbolo distintivo da corporação. Preste atenção da próxima vez.

De onde vem essa, digamos assim, logomarca? Pois parece que a origem é incrivelmente longínqua. Contam que as raízes descem até o Egito antigo. O R barrado seria a transliteração, se assim podemos nos exprimir, do hieroglifo que simbolizava o olho esquerdo de Horus, um dos deuses da mitologia egípcia.

Olho de Horus

Olho de Horus

Por que o olho esquerdo? Ih, é uma história complicada, com briga entre deuses, assassinato, esquartejamento, muito sangue. Pra resumir, saiba-se que, numa luta entre Seth e Horus, o olho esquerdo deste último foi arrancado e picado em 64 pedaços. Toth, o deus da ciência e da medicina, foi quem conseguiu dar jeito de recompor o despedaçado olho de Horus.

Seja como for, é surpreendente que milhares de médicos ao redor do planeta encabecem suas prescrições, talvez sem o saber, com símbolo forjado milênios antes de nossa era.

Publicado originalmente em 22 agosto 2014.

A origem da receita

José Horta Manzano

Você sabia?

Quem vai ao médico, nos dias de hoje, não se dá conta de que a regulamentação da profissão ― em terras europeias e americanas ― é relativamente recente.

Da Idade Média até o século XIX, a arte de curar foi exercida por corporações disparates, tais como: homens de igreja, barbeiros, boticários, tira-dentes, curandeiros, charlatães, feiticeiras.

Prescription 2

A Revolução Francesa, entre outros feitos, tornou a sociedade consciente de que certas práticas ancestrais reclamavam por normatização. O sistema métrico, por exemplo, é fruto daquela época. Até então, havia um rosário de unidades de medida ― de peso, de capacidade, de tamanho. Pés, polegadas, quintais, braças, arrobas variavam de uma região a outra.

A Revolução, assim como normalizou as unidades de medida, apontou para a necessidade de sistematizar outros atos e procedimentos que cada um costumava, até então, executar a seu modo. A regulamentação de certos ofícios começou naquela época.

A valorização das profissões da área de saúde ― medicina, cirurgia, farmácia ― gerou, como corolário inevitável, o rebaixamento de curandeiros e feiticeiras. Barbeiros passaram a dedicar-se unicamente à pilosidade de seus clientes, deixando sangrias e extrações dentárias para profissionais habilitados.

Olho de Horus

Olho de Horus

Embora já fosse adotada esporadicamente desde o século XVII, ganhou força aquela marca de que uma receita tinha sido prescrita por um profissional. Tratava-se de um R barrado ― este aqui: .

Está em uso até nossos dias. É muito provável, distinto leitor, que o médico que cuida de sua saúde tenha guardado o que lhe ensinaram na escola e continue a marcar suas receitas com o símbolo distintivo da corporação. Preste atenção da próxima vez.

De onde vem essa, digamos assim, logomarca? Pois parece que a origem é incrivelmente longínqua. Dizem que as raízes descem até o Egito antigo. O R barrado seria a transcrição, se assim podemos nos exprimir, do hieroglifo que simbolizava o olho esquerdo de Horus, um dos deuses da mitologia egípcia.

Olho de Horus

Olho de Horus

Por que o olho esquerdo? Ih, é uma história complicada, com briga entre deuses, assassinato, esquartejamento, muito sangue. Pra resumir, saiba-se que, numa luta entre Seth e Horus, o olho esquerdo deste último foi arrancado e picado em 64 pedaços. Toth, o deus da ciência e da medicina, foi quem conseguiu dar jeito de recompor o despedaçado olho de Horus.

Seja como for, é surpreendente que milhares de médicos ao redor do planeta encabecem suas prescrições, talvez sem o saber, com símbolo forjado milênios atrás.

Publicado originalmente em 22 agosto 2014.

Mudando de assunto…

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Dois artigos abordando direta ou indiretamente a relação entre câncer e psiquismo chamaram minha atenção nestes últimos dias.

O primeiro, um vídeo de Dráuzio Varella, no qual ele afirma enfático que “não há nenhuma possibilidade” de que distúrbios de caráter estritamente psicológico possam provocar “mutações genéticas”. En passant, ele ainda discorre sobre a falta de comprovação científica de que a religiosidade ou a espiritualidade possam interferir positivamente para a cura do câncer. Diz ainda, com ar paternalista de desaprovação, que as tentativas de associar o aparecimento de um tumor cancerígeno a aspectos psicológicos e a não resposta ao tratamento à “falta de vontade” do paciente são duplamente cruéis, já que instilam culpa em uma pessoa já combalida pela doença.

Doente 1O segundo, um artigo publicado na Folha de São Paulo por Marcelo Leite, no qual ele contesta asperamente a decisão de juízes do STF e de congressistas no sentido de liberar a produção e distribuição da fosfoetanolamina. Ao longo de seu arrazoado, ele equipara a assim chamada “pílula do câncer” a coisas como barbatana de tubarão, cogumelo do sol e maca peruana e conclui autocraticamente: “São pseudomedicamentos que se aproveitam da credulidade e do desespero dos enfermos e de seus parentes para vender uma esperança desumana”. Mais para a frente, ele argumenta ainda que as pessoas que aprovaram o uso dessa droga sem o aval da Vigilância Sanitária são “os mesmos que não pensam duas vezes antes de desperdiçar milhões do contribuinte quando forçam o SUS a pagar terapias duvidosas com células-tronco e que tais em países asiáticos”.

Um minuto de silêncio para absorver o impacto dessas informações e para lamentar a morte do verdadeiro espírito científico. Tudo isso em dois sentidos principais: o primeiro, aquele que considera que só se pode chamar de “ciência” as investigações quantitativas; o segundo, aquele que ignora que resultados obtidos em um estudo podem ser contestados por outros, dependendo da premissa de base, da acurácia dos instrumentos utilizados e dos conhecimentos vigentes à época de cada estudo. Ai, Santo Einstein, que seria de ti nas mãos desses iluminados?

Doente 3Respeito o desejo que esses doutores manifestam de proteger incautos de curandeiros e de falsas promessas. Não posso deixar, no entanto, que eminências pardas da medicina alopática mexam impunemente num vespeiro do qual faço parte. Reconheço a veracidade desta ou daquela afirmação isolada, admito que sua indignação pode ser legítima, mas pasmo com a ligeireza intelectual com que esses senhores estabelecem conexões entre fatores absolutamente díspares. Para mim, é como alardear que está provado cientificamente que baratas não ouvem pelas pernas, já que um estudo controlado mostrou que elas não saem do lugar quando expostas a ruídos altos, sem mencionar que suas pernas foram previamente arrancadas uma a uma.

Seres humanos não são máquinas de laboratório. Não possuem apenas corpos físicos que podem ser submetidos a estímulos físico-químicos para anotação de reações orgânicas. Gostemos ou não, humanos contam também com todo um aparato psíquico que interage e influencia decisivamente suas reações orgânicas a esses mesmos estímulos. E, pouca gente se dá conta disso, há uma proibição ética universal de testar reações psíquicas em laboratório.

Todo cientista que se orgulhe desse título conhece muito bem o assim chamado “efeito placebo”. Para quem nunca ouviu falar dele, eu explico: o simples fato de estar recebendo uma pílula (de açúcar ou substância inerte) – ou, de forma mais insidiosa, o simples fato de estar recebendo atenção de pesquisadores médicos ‒ pode fazer com que o paciente experimente “cura” de seus sintomas. Em outras palavras, a crença psicológica – ou ato de fé, para religiosos e espiritualistas ‒ de que se está recebendo a resposta desejada para dar fim ao sofrimento humano é tão forte que é capaz de promover alterações orgânicas importantes, na mesma direção da droga que está sendo pesquisada.

Se isso é verdade facilmente constatável no caso de tratamentos experimentais, por qual razão a interferência psíquica não seria verdadeira para determinar o aparecimento de doenças, inclusive as que implicam mutações genéticas, como o câncer? Wilhelm Reich, um médico, psicanalista e cientista natural, dissidente de Freud, dedicou boa parte de sua vida ao estudo da sexualidade humana e do câncer. Já na primeira metade do século 20, ele conceituou o câncer como uma espécie de “desistência” da pessoa frente aos desafios da realidade (os contornos psicanalíticos dessa tese podem ser conhecidos mais em detalhe em seus livros) e afirmou que o órgão afetado será sempre simbólico dessa desistência.

Doente 2Que as emoções humanas interferem no sistema imunológico é fato sabido há mais de meio século. Que depressão e culpa são fatores intervenientes e críticos para o rebaixamento das defesas orgânicas também. Que pacientes acometidos por câncer e outras doenças terminais podem ter expectativas de vida mais altas e maior probabilidade de remissão de seus quadros graças a suas atitudes, crenças, estilos de vida e perspectivas espirituais são outras descobertas científicas relevantes, como o demonstrou à exaustão o médico americano Carl Simonton. A esperança de um futuro melhor é parte constituinte e indissociável do psiquismo humano saudável.

Emprestar paternalisticamente à credulidade de leigos alguns resultados favoráveis obtidos no consumo de certas substâncias ou em tratamentos experimentais é uma atitude que, a meu ver, não ajuda a identificar as causas nem a aprender a lidar com o sofrimento físico, a dor psicológica e o desalento espiritual da humanidade. Um pouco de humildade para encarar a complexa estrutura multifatorial humana me parece fundamental para fazer avançar o conhecimento científico. Mal não faz. Como diz um ditado popular, arrogância e água benta cada um pega o quanto aguenta.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

A origem da receita

José Horta Manzano

Você sabia?

Quem vai ao médico, nos dias de hoje, não se dá conta de que a regulamentação da profissão ― em terras europeias e americanas ― é relativamente recente.

Da Idade Média até o século XIX, a arte de curar foi exercida por corporações disparates, tais como: homens de igreja, barbeiros, boticários, tira-dentes, curandeiros, charlatães, feiticeiras.

Prescription 2A Revolução Francesa, entre outros feitos, tornou a sociedade consciente de que certas práticas ancestrais reclamavam por normatização. O sistema métrico, por exemplo, é fruto daquela época. Até então, havia um rosário de unidades de medida ― de peso, de capacidade, de tamanho. Pés, polegadas, quintais, braças, arrobas variavam de uma região a outra.

A Revolução, assim como normalizou as unidades de medida, apontou para a necessidade de sistematizar outros atos e procedimentos que cada um costumava, até então, executar a seu modo. A regulamentação de certos ofícios começou naquela época.

A valorização das profissões da área de saúde ― medicina, cirurgia, farmácia ― gerou, como corolário inevitável, o rebaixamento de curandeiros e feiticeiras. Barbeiros passaram a dedicar-se unicamente à pilosidade de seus clientes, deixando sangrias e extrações dentárias para profissionais habilitados.

Olho de Horus

Olho de Horus

Embora já fosse adotada esporadicamente desde o século XVII, ganhou força aquela marca de que uma receita tinha sido prescrita por um profissional. Tratava-se de um R barrado ― este aqui: .

Está em uso até nossos dias. É muito provável, distinto leitor, que o médico que cuida de sua saúde tenha guardado o que lhe ensinaram na escola e continue a marcar suas receitas com o símbolo distintivo da corporação. Preste atenção da próxima vez.

De onde vem essa, digamos assim, logomarca? Pois parece que a origem é incrivelmente longínqua. Dizem que as raízes descem até o Egito antigo. O R barrado seria a transcrição, se assim podemos nos exprimir, do hieroglifo que simbolizava o olho esquerdo de Horus, um dos deuses da mitologia egípcia.

Olho de Horus

Olho de Horus

Por que o olho esquerdo? Ih, é uma história complicada, com briga entre deuses, assassinato, esquartejamento, muito sangue. Numa luta entre Seth e Horus, o olho deste último teria sido arrancado e picado em 64 pedaços. Toth, o deus da ciência e da medicina, foi quem conseguiu recompor o despedaçado olho de Horus.

Seja como for, é surpreendente que milhares de médicos ao redor do planeta encabecem suas prescrições, talvez sem o saber, com símbolo forjado milênios atrás.