Cantoria parlamentar

José Horta Manzano

Como no Brasil, o parlamento suíço é bicameral – formado por duas câmaras. O Conselho dos Estados funciona como nosso senado: representa os cantões. A cada cantão, independentemente do número de habitantes, correspondem dois senadores.

Palácio federal, Berna, Suíça

Palácio federal, Berna, Suíça

O Conselho Nacional, análogo a nossa câmara, representa o povo. É composto por 200 deputados. Cada cantão elege um número de deputados proporcional a sua população.

A última sessão de setembro marca o fim da legislatura. É quando as duas câmaras se reúnem sob o mesmo teto. Dado que este ano – agora em outubro – há eleições para renovação das câmaras, a derradeira sessão foi particularmente emocionante.

Coral 1Os eleitos que não vão se recandidatar sentiam já saudades do ambiente do qual sabem que não mais farão parte. Já os que pleiteiam novo mandato se perguntavam, ansiosos, se estariam de volta na próxima legislatura ou se aquela sessão seria a última.

De repente, para surpresa geral de todos os eleitos, estalou um flash mob. Para os não iniciados, a melhor explicação do neologismo é um outro neologismo. Image o distinto leitor um rolezinho civilizado, bem organizado, bem-comportado e bem-intencionado.

Sem que nenhum dos parlamentares tivesse sido informado, um grupo coral tinha sido convidado para atuar no recinto. Os cantores vieram disfarçados. Alguns usavam farda de funcionário, outros portavam crachá de jornalista, havia ainda os que carregavam câmeras, como se cinegrafistas fossem. Outros cantores estavam também disseminados nas galerias.

Num determinado momento, para estupor geral, o grupo se põe a entoar, a cappella(*), um suave canto que, passado o espanto, trouxe o encanto. Surpresos e deslumbrados, os parlamentares se entreolhavam, fotografavam, filmavam, mandavam tuítes e esseemeesses.

Parlamento suiço, Berna

Parlamento suiço, Berna

Para não desconsiderar ninguém, o grupo entoou cantos populares nas três línguas oficiais do país, donde a apresentação ter durado mais de seis minutos. Ao final, o comentário espirituoso de um dos deputados foi o seguinte: «Na última sessão do ano, costumamos ter muitas moções. Desta vez, tivemos muitas emoções.»

Quem sabe os netos de nossos netos ainda não verão um dia, em Brasília, algo semelhante. Ânimo, cidadãos, nada é impossível!

Está no youtube. Aos interessados basta clicar aqui.

Interligne 18h

(*) Diz-se a cappella de um canto que não é acompanhado por instrumentos.

Rolê ao molho alemão

Riem 1

Centro comercial Riem
Munique, Alemanha

Na Alemanha também tem… rolezinho, sim, senhor!

O estilo alegre e o semblante descontraído dos participantes é indicação certeira de que não estão infringindo regras nem driblando repressão.

A coreografia e os sons são um bocadinho diferentes do que se costuma fazer na Tupiniquínia. Alemão, sacumé, é mais organizado, mais preciso.

Conseguem surpreender os frequentadores sem amedrontá-los. Merecem aplausos no final.

Para assistir, clique aqui.

O trem das onze

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 1° fev° 2014

Desde que Nostradamus escreveu suas centúrias, faz meio milênio, profecias passaram de moda. Técnicas previsionais vêm evoluindo, mas ainda não são infalíveis. A curto prazo, é até fácil prever. A médio prazo, a margem de incerteza se amplia e a coisa se complica. A longo prazo, é missão quase impossível. Mais fácil tirar a sorte grande do que predizer a situação do planeta daqui a dez anos.

Em outubro de 2006, com a oportuna desistência da Argentina, do Chile e da Colômbia, a candidatura brasileira a sediar a Copa do Mundo de 2014 foi sacramentada pela Fifa. Faz mais de 7 anos. Pareceu a todos — por que negá-lo? — uma excelente perspectiva. O tempo era de vacas gordas, obesas até. Tudo era sorrisos. Nosso povo, embevecido, acreditava que o futuro tinha chegado, que estávamos no Primeiro Mundo, que a pobreza tinha desaparecido. Semicerrando os olhos, dava até para ouvir o silvo de trens-bala cortando montes e cerrados.

Trem da Cantareira Fonte: Expotremdasonze.blogspot

Trem da Cantareira
Fonte: Expotremdasonze.blogspot

A euforia era tamanha que nossos descuidados dirigentes sapecaram seu jamegão numa Lei Geral da Copa, demandada pela Fifa, em que abandonávamos parte de nossa soberania. Afinal, o privilégio de sediar o evento justificava um que outro arranhão em nossa legislação. Nossos mandachuvas já antegozavam a consagração suprema de seu peculiar modo de governar.

No entanto… a vida reserva surpresas. Nenhum guru foi capaz de prever que, um ano antes da copa, num certo junho, o gigante adormecido estremeceria e daria sinal de vida. Não vale a pena repisar aqui o susto que o Brasil e o mundo levaram. Aconteceu.

De lá para cá, um incômodo concurso de circunstâncias arrefeceu a euforia. Economia em perdição, corrupção às escâncaras, desmandos, volta da inflação trouxeram desalento. Black blocs, rolezinhos, acidentes em estádios, atraso nas construções, gente graúda na cadeia, nós logísticos encruados atiçaram o fogaréu. Parece que as coisas teimam em não dar certo. E essas redes sociais, então! Desprezando soberbamente o empenho do governo em manter discrição sobre fatos desagradáveis, botam a boca no trombone. Todo o mundo fica sabendo de tudo! Um desplante e uma dor de cabeça.

Uma semana atrás, o gigante mostrou que continua a se mexer na cama. Manifestações violentas voltaram. Nossa presidente, em viagem ao exterior na companhia de comitiva pletórica, teve de escafeder-se para evitar cobranças embaraçantes.

Os ventos estão soprando desnorteados. Promessas já não parecem mais surtir efeito. Um clima pré-anárquico se insinua. E pensar que, daqui a pouco mais de quatro meses, um pontapé marcará o início da «Copa das Copas». Que fazer? Como fugir ao vexame que se prenuncia — em transmissão direta a bilhões de telespectadores? Mais que isso: terminada a copa, como assegurar o apaziguamento dos ânimos?

À primeira vista, parece que não tem mais jeito. Mas sejamos otimistas. O que passou, passou — não dá para voltar atrás. Mas ainda resta uma esperança de evitar o pior. No apuro, é respirar fundo, arregaçar as mangas, fazer das tripas coração e dar ao povo o que ele reclama. Um Brasil esgarçado por anos de desleixo não se transfigurará em quatro meses. Mas resta um último recurso para acalmar o gigante.

Estação Jaçanã Fonte: Expotremdasonze.blogspot

Estação Jaçanã
Fonte: Expotremdasonze.blogspot

Todos sabem o que transtorna os brasileiros: corrupção, compadrio, malfeitos, promiscuidade entre o público e o privado, permissividade, fiscalidade extorsiva, desleixo no trato da coisa pública, nível de instrução cronicamente baixo. Discursos e palavrório não servem mais. Convocação de plebiscito tampouco. Mas os mesmos congressistas que foram capazes de costurar, tim-tim por tim-tim, os mais de 100 artigos da Lei Geral da Copa ainda têm tempo hábil para alinhavar uma Lei Geral do Brasil Decente — um elenco de normas apto a repor o país nos trilhos. E dentro do «padrão Fifa», faz favor!

As próximas semanas são cruciais e não podem, sob nenhum pretexto, ser descuradas. Uma legislação nova e rígida tem de ser preparada, discutida, votada, aprovada e sancionada dentro do mais curto prazo possível. Que respeitem a Constituição, mas que não nos venham com promessas. De pactos não cumpridos, estamos até aqui. E que trabalhem a toque de caixa, que faltam cinco para a meia-noite.

O momento é grave. Esta é a chance derradeira, senhoras e senhores do andar de cima! É o trem das onze — e já está apitando a partida. Se bobear, só amanhã de manhã. Se houver amanhã.