Bolsonaro questiona urna eletrônica por má-fé

Pedro Doria (*)

Todo ano de eleição, nós, jornalistas, arranjamos algum jeito de produzir algo explicando como funciona o sistema de votação brasileiro. No jargão das redações, é uma “matéria de serviço”. Sua utilidade é ajudar o eleitor a se nortear no dia do voto. É para que ele entenda o processo. Neste ano, explicar como funcionam a urna e a contagem dos votos, porém, não é mero serviço. É uma defesa ativa da democracia. E, sim, nosso sistema está entre os mais seguros e eficientes do mundo.

O principal ponto que garante a segurança da eleição brasileira é que todo o processo, apesar de digital, não ocorre na internet. Nem as urnas nem os computadores que contam os votos estão na grande rede. Em seu discurso, o presidente Jair Bolsonaro se aproveita de conceitos pouco compreendidos para deixar as pessoas inseguras. Confusas. A ação é de clara má-fé. O presidente da República mente, mente acintosamente, mente sabendo que está mentindo.

Porque a urna em que digitamos nossos votos não está ligada à internet, um hacker não pode entrar nela e modificar qualquer coisa. Poderia se estivesse em frente, fisicamente, à máquina. Mas não seria nada discreto. Teria de ligar um teclado, espetar um pen drive, fazer uma operação que chamaria a atenção de todos ao redor. Para ter efeito e mudar os resultados de uma eleição, seria necessária a ação de milhares de hackers trabalhando em milhares de urnas cada um. Sem que qualquer um percebesse. Não é razoável acreditar na possibilidade.

Quando a votação se encerra, o presidente da mesa ordena que a urna imprima cópias do boletim. Ali está, no papel, o número de votos registrados para cada candidato e partido naquela urna. Esse documento é afixado na porta da zona eleitoral, em público. Se você, eleitora ou eleitor, quiser confirmar que seu voto para um candidato obscuro a deputado estadual foi registrado, basta passar no local em que votou e confirmar que pelo menos um ponto ele garantiu.

Já houve eleições municipais em que prefeitos celebraram vitória antes de haver resultado oficial, simplesmente porque os fiscais do partido foram mais ágeis que o TRE. Somaram os votos de boletim em boletim. Foi o que ocorreu em Jaboticabal, interior de São Paulo, em 2020. O prefeito que fez festa, aliás, é do PL de Bolsonaro.

Além do registro em papel, o presidente de mesa também grava os resultados num pen drive que tem assinatura eletrônica e é criptografado. Essa mídia é transportada fisicamente para uma das centrais locais da Justiça Eleitoral, onde, após a assinatura ser checada para garantir que não houve adulteração, os dados são mandados para Brasília. Para a sede do TSE. Como? Por satélite, numa rede privada que o tribunal contrata e, claro, não está conectada à internet.

Em Brasília, os votos chegam a um supercomputador da Oracle que presta um serviço chamado, no jargão técnico, de cloud on-premise. Nuvem no seu local. Sim, se chama nuvem. Mas tem esse nome porque é uma infraestrutura como a de nuvem, porém privada. Colocada no escritório do cliente que busca, justamente, a certeza de que não é possível violar via internet seu sistema.

Bolsonaro, por causa disso, sugere que os dados estão na nuvem. Não, não estão. Fala de uma sala secreta – a contagem ocorre dentro de um computador, não de uma sala.

Vários estados americanos, todos republicanos, fazem eleição digital sem voto impresso, parcial ou integralmente. Várias cidades francesas. São os dois países que inventaram a democracia. Não se trata de uma jabuticaba brasileira. A eleição é segura. E Bolsonaro, obviamente, está com medo de perder.

(*) Pedro Doria é jornalista e escritor.

O Brasil está sendo atacado

Acabo de ler um artigo que o jornalista Pedro Doria postou em seu blogue alojado no jornal O Globo. É muito interessante. Fala sobre os ataques de piratas informáticos que o Brasil vem sofrendo atualmente. Quem quiser ler o pdf, que clique aqui. (Não tenha receio – já está incluído no preço.)

Face, Google, Twitter e o golpe

Pedro Doria (*)

Prezados Zuck, Sundar e Jack,

Aqui no Brasil, não costumamos escrever a CEOs como vocês, de Facebook, Google e Twitter, chamando pelo apelido ou prenome. Mas vou me permitir escrever assim, na informalidade americana tão típica no Vale do Silício. É para ser mais direto.

É preciso que vocês prestem atenção na política brasileira. Agora.

Em 6 de janeiro último, uma turba invadiu o Capitólio, em Washington. A polícia legislativa não acreditava que isto seria possível. Dá para entender. Numa democracia longeva que não interrompeu o ciclo de eleições regulares nem com uma guerra civil, como seria possível imaginar que cidadãos americanos invadissem o Parlamento para interromper a homologação de um pleito? Mas aconteceu. Pessoas foram radicalizadas a esse ponto em ambientes digitais e aí insufladas por um presidente que desprezava a ideia de uma sociedade livre.

No Brasil, a história nos obriga a imaginar essa possibilidade.

Minha geração de jornalistas aprendeu o ofício com colegas quinze ou vinte anos mais velhos que enfrentaram, na condição de repórteres e editores, a ditadura mais recente. Alguns desses amigos, que ainda trabalham nas redações, gente por quem temos afeto, foram exilados, presos e torturados pelo exercício das liberdades políticas essenciais: a de pensar, a de se expressar, a de se manifestar, a de publicar e a de se reunir para debater.

Donald Trump segue persona non grata em várias das redes. A decisão de excluí-lo seguiu um princípio que qualquer democrata endossa: o Paradoxo da Tolerância, descrito pelo filósofo austríaco Karl Popper. No limite, uma sociedade aberta não pode abrir espaço para que intolerantes usem destas liberdades para ameaçar o regime democrático.

A República brasileira nasceu com um golpe militar, em 1889. De lá para cá houve golpes de Estado em 1891, 1930, 1937, 1945, 1955 e 1964. Só um deles, o de 1955, fracassou. Em rigorosamente todos estes momentos, a ruptura de regime começou no momento em que foi quebrada, nas Forças Armadas, a exigência de disciplina que proíbe militares de se envolverem na política.

Há duas semanas, pela primeira vez desde a restauração da democracia no Brasil em 1985, um general da ativa subiu ao palanque em apoio ao presidente. Seus superiores no Exército, intimidados pelo mesmo presidente, nada fizeram. O sinal histórico de ameaça à democracia foi dado.

Em um ano teremos eleições. Como Trump, Jair Bolsonaro vem espalhando entre seus seguidores que há risco de fraude. Não é a única das mentiras que seu movimento trabalha diariamente para espalhar. São mentiras que têm por objetivo disseminar naquela parcela radicalizada da população elementos que a convençam de que não devem confiar nas instituições da democracia.

Bolsonaro está seguindo o script de Trump. Não há, na história do Brasil, nada que nos garanta que o desfecho será como o americano. Aqui, vivemos o receio concreto de que os generais não tenham mais pleno controle de suas tropas. E sabemos que os governadores não controlam mais plenamente suas polícias.

Me permitam ser explícito: numa situação limite, um 6 de janeiro, no Brasil, poderia contar com o apoio de parte da polícia enquanto o Exército nada faz.

Vocês conhecem as plataformas que comandam. Sabem do peso que elas têm em todos esses acontecimentos. Agir depois do ato fatal, como fizeram com Trump, aqui pode ser tarde demais.

Nós, brasileiros, não temos qualquer tipo de influência sobre as decisões que vocês tomam. Mas somos nós e nossos filhos que sofreremos pelas decisões que tomarem. É hora de ligar o alerta vermelho em Menlo Park, Mountain View e San Francisco.

O golpe, se houver, fracassado ou não, será batizado com o nome das empresas que vocês comandam.

(*) Pedro Doria é jornalista e escritor. O artigo foi publicado no Estadão de 11 junho 2021.

Militares nos EUA e no Brasil

Nos EUA, militares seguiram a lei em vez de Trump, e afastaram temor que agora há no Brasil

Pedro Doria (*)

Comandante do Estado-Maior das Forças Armadas americanas, o general Mark Milley discursou em novembro de 2020 sobre o dever de cada militar em sua visão, após o presidente Donald Trump promover uma série de mudanças no alto escalão do Pentágono. “Não fazemos juramento a um rei”, ele afirmou, “a um tirano ou a qualquer pessoa. Juramos defender a Constituição dos Estados Unidos.”

O cargo de Milley está acima do dos três comandantes de cada uma das Armas e ele é o militar mais graduado do país, imediatamente abaixo do secretário da Defesa, que em geral é civil. Existe um motivo para que, em democracias liberais, militares não possam se manifestar politicamente. Não é uma razão trivial. É, isso sim, uma razão da qual depende a essência da democracia.

As Forças Armadas são, o próprio nome diz, a instituição mais armada de uma nação. Tem tanques, mísseis, caças, toda sorte de armas, e profissionais especialistas em seu manuseio. Elas precisam existir. Se um país é atacado, precisa se defender. A existência de Forças Armadas já é um motivo para evitar guerras.

Mas isso cria, para democracias, um dilema. Armam-se essas instituições e seus integrantes – e o que acontece se elas decidem se envolver em política? O debate público não pode envolver violência. Não pode, portanto, ter a participação de elementos que ameacem de alguma forma, com violência, a defesa de seus ideais. É por isto que qualquer cidadão, quando escolhe a carreira militar, abre mão imediatamente de se manifestar publicamente sobre política.

Porque tem acesso às maiores armas de um país, não pode entrar no debate sobre política. É preciso que o debate público ocorra sem que um lado tenha força militar.

Não é uma peculiaridade do Brasil. Está no alicerce de qualquer democracia. O que o alto-comando do Exército decidiu na quinta-feira, ao não punir o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello por ter participado de uma manifestação com o presidente Jair Bolsonaro, é, portanto, isto: militares já podem se manifestar publicamente em favor do presidente da República. Uma decisão temerária: o Exército acaba de se colocar na política.

(*) Pedro Doria é jornalista e escritor. O artigo foi publicado no jornal O Globo de 4 junho 2021.