O general e a gravata

José Horta Manzano

Curioso para conhecer Pazuello, o ex-ministro que eu nunca tinha tido oportunidade de ver nem de ouvir, fui dar uma espiada em seu depoimento de ontem na CPI. Devo admitir que fiquei um tanto decepcionado. Depois de tudo o que já li sobre ele, imaginava dar de cara com um General Trovão, um Figueiredo dos tempos atuais, um líder do tipo “deixa comigo, que eu mato e arrebento”. Em vez disso, o homem está mais pra Zangado, um dos anões que rodeavam a Branca de Neve, aquele que nunca sorria. Parece um Zangado falante, mas sempre de maus bofes.

Na foto tirada durante o depoimento, o general aparece de olhos fortemente avermelhados. Fica a nítida impressão de ele não ter dormido na noite anterior – o que poderia explicar o quase-desmaio que sofreu à tarde. É difícil imaginar que ele tenha passado a noite se agitando num baile funk, mas é concebível que tenha ficado acordado até altas horas recapitulando as respostas que lhe tinham sido aconselhadas pelos media trainers contratados pelo Planalto. Pode ser também que, nervoso, tenha simplesmente perdido o sono.

Fiquei surpreso com a inabilidade dos senadores para conduzir o interrogatório. O próprio interrogado parecia mais bem preparado que eles, quando deveria ser exatamente o contrário. Os inquiridores é que tinham de surpreender o convocado com perguntas inesperadas, incisivas e inescapáveis. Em vez disso, notei certa displicência entre os parlamentares, como se estivessem surpresos pelo fato de o general dar respostas firmes sem tropeçar. É verdade que senador não está necessariamente formado para a função de promotor público, mas a CPI tem como se fazer assessorar por especialistas trabalhando em tempo real. Se não o fez, foi porque não quis.

Fiquei encantado com a gravata do general. Não me esqueço de quando esse modelo foi apresentado ao mundo. Foi em Copenhague (Dinamarca), em outubro de 2009, no dia em que o Comitê Olímpico Internacional anunciou que atribuía ao Rio de Janeiro a organização das Olimpíadas 2016. Representando o Brasil, um grupo eufórico estava presente. Quando souberam do resultado, soltaram gritos e deram pulos de contentamento. Na época, a gente imaginou que fosse por patriotismo. Usavam todos esse modelo de gravata.

Como modelo, até que ela não é feia, com as cores da bandeira. Só que os primeiros usuários, além de não serem modelos de desfile de moda, tampouco eram o que se pode chamar de modelo de virtude. Os figurões mais proeminentes estão na foto acima, todos devidamente engravatados com o mesmo modelito do general. Vamos ver quem são. Da esquerda para a direita.

Eduardo Paes
Atual prefeito do Rio, é o único em atividade neste momento. Não chegou a ser preso, mas a lista das acusações de corrupção que o perseguem é longa como um dia sem comer.

Sergio Cabral
Foi governador do Rio. Condenado por corrupção e outros crimes, não só passou pela casa prisão, como ainda está lá. Condenado a mais de 200 anos de privação de liberdade, ainda deve permanecer encarcerado por algum tempo.

Carlos Arthur Nuzman
Era o presidente do Comitê Olímpico Brasileiro à época. Acusado de corrupção, passou pela casa prisão em 2017.

Lula da Silva
Foi presidente do Brasil. Condenado por corrupção e outros crimes, passou pela casa prisão, onde purgou mais de ano e meio.

Orlando Silva
Dos retratados, este parece ser o mais maneiro. Foi ministro do Esporte. Teve problemas com a justiça por ter comido uma tapioca de R$ 8,30 e posto na conta da Viúva. Visto que é arraia miúda demais, não passou pela casa prisão.

Não conheço o sexto cavalheiro.

Tendo em vista a folha corrida dos primeiros portadores da gravata verde-amarela, vale indagar que motivo levou o general a enrolar essa gravata de corruptos em torno do pescoço ontem. Algumas suposições:

• Ele não assistiu à cerimônia de 2009, portanto não sabe que os que lançaram a moda são personagens pouco recomendáveis, pra dizer o mínimo.

• Imaginando que ia acabar preso, já veio paramentado para seguir os passos dos que o precederam.

• A coisa é o que parece: sabe-se lá por que, vestiu a gravata em homenagem à bandidagem.

• Distraído, saiu de casa de camisa aberta, como quem se prepara para um passeio num shopping de Manaus. Foi Bolsonaro que, ao vê-lo descamisado, emprestou sua gravata de estimação.

Pode ser alguma dessas razões. Ou nenhuma das anteriores. O distinto leitor o que acha?

O cantor das multidões

José Horta Manzano

Os mais jovens hão de me perdoar. Que é que se há de fazer? Cada um tem sua história, cada um se lembra daquilo que conheceu, cada um tem seus ídolos.

Se um dia eu lhes falar de Noel Rosa ou de Chiquinha Gonzaga, estarei relatando o que li ou o que ouvi dizer. Não fomos contemporâneos neste vale de lágrimas. Assim como meu sobrinho nascido em 2012 ― tenho um, não é figura de expressão ― aprenderá pelas coletâneas de músicas antigas quem foi Roberto Carlos ou o que cantava Beyoncé. Assim é a vida.

Eliete Negreiros escreveu um belo artigo publicado no dia 15 de fevereiro na Revista Piauí. Traz algumas pinceladas de Orlando Silva (1915-1978). Aquele que um dia foi o cantor das multidões teve uma existência de altos e baixos. Quem quiser conferir, que faça uma visita por aqui.

Não se pode dizer que Orlando fosse um deus de beleza, não era nenhum Apolo. Sua estrela começou a brilhar, como a de tantos outros, no rastro de um encontro fortuito, obra do acaso. Não tivesse havido aquele vis-à-vis com Chico Alves ― o inconteste rei da voz ―, jamais o jovem teria sido projetado no cenário musical brasileiro. Ele trazia um único predicado: sua voz. Melodiosa, afinadíssima, potente, um tiquinho anasalada, inimitável.

Para Chico, o indiscutível rei da época, 17 anos mais velho, o modesto novato despontava como uma promessa de continuidade. Não lhe pareceu ― como nunca foi ― um concorrente ou uma ameaça. Dizem que Francisco Alves, inteligente e arguto, era pessoa muito generosa.

Orlando teve uma fase de ouro fértil e festejada, mas, infelizmente, demasiado curta para alguém de tamanho talento. Não durou mais que uns dois ou três anos, nos idos de 1937, 1938. Minha mãe contava que chegou a presenciar alguma de suas apresentações. Na época, o espetáculo ocorria ao vivo, no superlotado auditório da Rádio Record, rua Quintino Bocaiúva esquina com rua Direita, em São Paulo ― o prédio ainda está lá. Ao final, as mocinhas sacavam tesouras de suas bolsas e se acotovelavam para cortar um pedaço da gravata do artista. Queriam levar para casa uma relíquia, um troféu.

O desastre de que o cantor foi vítima, relatado no artigo de Eliete, obrigou-o a longo tempo de hospitalização, quando recebeu doses de morfina para alívio das dores. O medicamento cavalar amenizou-lhe os sofrimentos, mas desgraçou-lhe a existência.

Orlando Silva - 1960    Crédito: jhm

Orlando Silva – 1960
Crédito: jhm

Como todos os opiáceos, a potente morfina induz à adição. Nosso desventurado Orlando Silva desceu aos abismos da dependência. O entorpecente, alidado ao consumo de bebidas alcoólicas, afastou o cantor de seu público. O ostracismo durou mais de uma dúzia de anos.

Quando Orlando tentou uma volta à ribalta, muito tempo havia passado, já estávamos nos anos 50. A valsa tinha saído de moda e o samba-canção começava a ocupar lugar na preferência dos ouvintes, já prenunciando a bossa-nova.

A voz do cantor também já não era a mesma. Não que tivesse envelhecido, não tinha ainda 40 anos de idade, mas o lampejo cristalino da juventude havia desaparecido.

Por teimosia, ou mais provavelmente por necessidade, Orlando persistiu. Gravou ainda alguns discos, mas as mocinhas já não disputavam retalhos de sua gravata.

Por mero acaso, tive ocasião de vê-lo pessoalmente, numa viagem que fizemos juntos num ônibus da Cometa, de Águas da Prata a São Paulo. Foi de relance, em janeiro de 1960. Munido de minha máquina fotográfica caixotinho, como se usava na época, tirei uma foto do cantor através do vidro. Estávamos esperando pela partida do coletivo. Foi de novo minha mãe quem exclamou: «Olha, aquele é o Orlando Silva!».

Na época, eu estava mais interessado em Ray Charles e Chubby Checker, mas assim mesmo bati a chapa. Saiu meio desajeitada, meio desfocada, mas fiz questão de inseri-la aqui no artigo.

Orlando Silva não estava mais portando gravata, que a moda tinha passado. Ainda que estivesse, já fazia tempo que as gentes haviam esquecido o cantor das multidões. Não foi senão muitos anos mais tarde que aprendi a conhecer e a apreciar sua arte.

Como costumava dizer minha avó:

Tudo passa
O tempo corre
Passa o tempo
E tudo morre.