De amargar

José Horta Manzano

Tem notícias que são de amargar. Não sei se ainda se usa essa expressão, quem sabe não. Para os mais jovens, que talvez não entendam, explico. De amargar traduz um estado de espírito amargurado, chateado, contrariado, desagradado. Certas notícias nos deixam nesse estado.

A notícia que li é sobre dinheiro vivo. Falando nisso, adoro esse costume de dizer que dinheiro em espécie é dinheiro vivo. Me faz imaginar dinheiro pulando e dançando em cima da mesa. Ou da cueca, dependendo do gosto do freguês.

Manchete Estadão, 18 jul° 2018

Bom, agora chega de brincadeira, e vamos ao que interessa. Leio que as autoridades competentes vão controlar o dinheiro vivo declarado por candidatos com relação às eleições deste ano. A manchete do jornal deixa bem claro que será a primeira vez que o fisco efetua tal controle.

Não, mas… espere um pouquinho! De brincadeira estão eles! Com a corrupção que corrói este país desde que o primeiro navegante arribado subornou um índio pra receber ouro em troca, como é possível que a autoridade fiscal nunca tenha cuidado de controlar a circulação de dinheiro vivo?

Volta e meia se fica sabendo que um indivíduo portando três ou quatro mil reais foi detido para averiguações. É sinal claro de que é sempre duvidosa a honestidade de qualquer cidadão que manipule fortes somas de dinheiro vivo. Como é possível, então, que nunca tenham fiscalizado políticos?

É aquele tipo de notícia de deixar embasbacado. É de amargar.

Voto em cédula de papel

José Horta Manzano

A discussão é antiga, mas a solução ainda não apareceu. Portanto, vale a pena continuar malhando o ferro. Falo do voto eletrônico, uma especificidade brasileira, rejeitada por unanimidade pelo resto do mundo.

É verdade que houve tempo em que a abolição do voto em cédula de papel trouxe orgulho a muita gente. É que, antes do aparecimento da maquineta de votar, a apuração era muito demorada. Nos anos 50, o resultado não chegava antes de uma semana ‒ se tudo corresse bem. O suspense era irritante. É por ter apressado a contagem dos votos que a geringonça virou coqueluche e se tornou motivo de orgulho nacional.

É curioso que, antes de investir bilhões no sistema eletrônico, ninguém tenha pensado em verificar como se faz no estrangeiro pra contar votos. Alemanha, Itália, Suíça e muitos outros países têm cédulas complexas, em que o eleitor tem diversas opções: escolher somente o partido; escolher partido + nomear candidatos; cancelar nomes e/ou acrescentar outros; escolher candidatos do partido A mas também dar voto ao partido B. Apesar da complexidade das cédulas e da ausência de maquinetas de votar, o resultado sai em poucas horas. Onde está o milagre?

Pois o «milagre» vem da optimização da apuração. Em vez de recolher milhares de urnas e transportá-las ao centro de apuração, cada secção faz a própria contagem. Os mesários começam assim que se encerra a votação. Em seguida, vai rápido. O resultado de cada urna é enviado à autoridade eleitoral, que faz o cômputo final. Durante a apuração manual, é facultada a presença de fiscais dos diversos partidos, uma garantia contra fraude.

É simples, rápido e barato. Se adotássemos esse sistema, não seria necessário investir na compra de meio milhão de urnas eletrônicas ‒ uma economia bem-vinda. Não sei qual é o preço de uma maquineta dessas mas, se custar, digamos, 500 reais, a economia já será de 250 milhões. Só nesse item! O acoplamento de uma impressora às máquinas existentes, ideia em discussão atualmente, só complica e encarece o sistema sem melhorar a segurança.

Há outras vantagens. A contagem acompanhada e vigiada por fiscais é fator inibidor de fraudes. Mais que isso: em caso de contestação, os votos podem ser facilmente recontados.

Quando se sabe que piratas informáticos conseguem se introduzir em servidores da CIA, da Nasa e de governos ao redor do planeta, é permitido concluir que conseguem acessar o que quiserem. O voto manual faz barreira contra piratagem externa e, naturalmente, contra picaretagem interna.

Nenhum sistema é infalível, mas o voto em cédula de papel é, sem dúvida alguma, mais seguro que o eletrônico.

Controlando a falta de controle

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Até agora eu vinha me recusando a entrar no debate a respeito do mais recente escândalo brasileiro, o da carne. Sou, por assim dizer, parte desinteressada da questão, uma vez que sou vegetariana por opção há muito tempo. Por outro lado, sou também naturalista e tenho verdadeiro horror aos aditivos químicos de que a indústria alimentícia se vale para alterar a textura, consistência, cor, cheiro ou sabor de seus produtos. Isso posto, aviso aos carnívoros que podem contar com minha irrestrita solidariedade sempre que forem matreiramente induzidos a erro.

Ao conhecer as reações de nossas autoridades federais à operação Carne Fraca, no entanto, percebi que não poderia mais me eximir. Há alguns ângulos do escândalo que, em minha opinião, não estão recebendo a devida atenção. A polêmica em torno do assunto evidenciou, antes de mais nada, o secular conflito de interesses entre o lucro dos grandes empresários, a imagem internacional do país e as questões atinentes aos interesses e necessidades da população, sempre relegados a segundo plano. Mais grave, as acusações lado a lado acabaram servindo ao propósito de desviar as atenções do foco da operação.

Raciocine comigo: os meios de comunicação acolheram um tsunami de reações indignadas de consumidores, mas praticamente ninguém se dispôs a analisar o escândalo sob a óptica da corrupção dos fiscais e de um superintendente do Ministério da Agricultura. Hipóteses não faltam para explicar esse desvio inicial. Em primeiríssimo lugar, a quase ninguém escapa o fato de que a esmagadora maioria dos nossos compatriotas se sente cotidianamente traída pelas elites políticas e empresariais. Ou seja, descobrir que mais agentes públicos estavam se deixando enredar com propinas para não levar a cabo com decência as tarefas para as quais são pagos já não constitui surpresa alguma. Quem nunca deu como certa a possibilidade de um fiscal achacar empresários ou se deixar subornar, independentemente da área em que atua?

Tratada como mero “detalhe” irrelevante do escândalo, a conduta criminosa dos encarregados da fiscalização da carne foi rapidamente esquecida e cedeu lugar para o apedrejamento moral dos empresários do setor. Sem nem mesmo saber quantos e quais eram os inescrupulosos que não hesitaram em contornar as regras sanitárias para auferir lucros maiores, boa parte da população se deixou envolver numa discussão paralela a respeito dos valores e hábitos nutricionais de cada um. Novo round da luta “nós” contra “eles” teve início. Coxinhas e mortadelas inesperadamente colocados no mesmo barco não viram alternativa a não ser virar seus canhões contra vegetarianos e veganos, relembrando-os do abuso de agrotóxicos e da utilização, na lavoura nacional, de pesticidas proibidos em outras partes do mundo.

Aturdidos todos com a falta de opção para compor o cardápio familiar, acabamos nos esquecendo da necessidade de aprofundar as investigações para confirmar ou não as suspeitas de envolvimento do atual Ministro da Justiça(!) na estratégia de abafar o caso, substituindo fiscais honestos por outros mais “cordatos”. Daí veio o segundo desvio ‒ intencional ou não ‒ das atenções. Presidente e ministro da Agricultura apressaram-se em buscar os holofotes e os microfones para reafirmar o rígido padrão sanitário brasileiro “reconhecido internacionalmente” (omitindo que, se a suspeita da PF se confirmar, alguns lotes de carne exportada não passaram por ele), para se queixar de não terem sido procurados antes para explicar os procedimentos permitidos e dirimir mal-entendidos quanto à linguagem utilizada no setor e, mais enfaticamente, para lamentar a provável perda de credibilidade dos exportadores brasileiros num setor e num momento crucial para nos tirar da crise.

Em suma, o que era originalmente um crime contra a saúde do consumidor perpetrado em nome do enriquecimento pessoal transformou-se em lamúria contra nossas perversas elites para, finalmente, ser enquadrado como crime contra a saúde econômica do país. Sem esquecer que, no processo, se fez uma pequena pausa para nossas autoridades federais reclamarem do desequilíbrio entre os três poderes da República e sugerirem uma vez mais que a Operação Lava a Jato vem causando danos irremediáveis à nação.

Um feito e tanto.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Ética e utilidade pública

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Mesmo sem ter sido chamada, quero meter o bedelho nessa disputa entre o veterinário que resolveu dar plantões gratuitos para atender a população carente e os Conselhos de Medicina Veterinária ‒ Regional e Federal.

Sinto-me qualificada para dar alguns pitacos nessa questão, uma vez que desfruto de longa experiência de convívio com cães e veterinários de todos os tipos. Já enfrentei muitos conflitos com profissionais míopes e mesquinhos. Já disse com todas as letras a vários que a medicina veterinária herdou muito pouco dos méritos da medicina humana e todos os seus defeitos. Nas duas áreas de especialização, não é nada incomum encontrar aquilo que chamo de “mecânicos de corpos”, que se limitam a tentar consertar sintomas de mau funcionamento orgânico pedindo uma lista infindável de exames desnecessários, caros e, por vezes, dolorosos.

Cachorro 26Alguns exemplos ilustrativos do que quero dizer. Certa vez precisei localizar um veterinário que se dispusesse a adotar um tratamento alternativo para combater a leucemia de minha cachorra, que consistia em combinar a quimioterapia convencional com um medicamento antroposófico. Uma das médicas que consultei recusou-se terminantemente a atender o caso, alegando que, caso o tratamento desse certo, eu iria dizer que o mérito era da medicina alternativa e, se desse errado, eu culparia a quimioterapia e ela. Ponto para a insensibilidade.

De outra vez, uma amiga próxima viu um cachorro passando mal bem em frente a um consultório veterinário vizinho e foi correndo até lá solicitar atendimento de urgência. O profissional em questão sequer se deu ao trabalho de olhar para o pobre infeliz. Dirigindo-se à mulher aflita, disse calmamente que só o atenderia se ela se dispusesse a pagar pelo tratamento, já que se tratava de um animal de rua. Placar até aqui: insensibilidade 2 x profissionalismo 0.

O jogo não termina aí, felizmente. Posso dar testemunho do espírito de grandeza, nobreza de alma, solidariedade e compaixão de vários outros médicos veterinários. Já passei por situações comoventes em que esses profissionais largaram tudo o que estavam fazendo para atender a uma emergência com meus animais, abriram suas agendas gentilmente para encaixar uma consulta ou gastaram um bom tempo ao telefone respondendo a meus temores, dúvidas ou, ainda, discutindo opções de tratamento que eu poderia utilizar por conta própria – sem cobrar a mais por isso e, algumas vezes, aceitando que eu pagasse dias mais tarde ou parcelando o pagamento.

Cachorro 27Voltando ao caso em questão, acho que, dessa disputa, há no mínimo um efeito colateral positivo a comemorar: ficamos sabendo todos que o Conselho de Medicina Veterinária existe e nos enfronhamos com alguns detalhes do código de ética dos profissionais da área. Somente o fato de esse conselho de classe ter despertado de seu sono secular e ter vindo a público dizer o que pensa dos desafios da realidade brasileira já é um superavanço. Quem duvidar pode acessar o site do emérito Conselho paulista e tentar encontrar nele algum espaço para fazer contato, registrar uma reclamação ou esclarecer uma dúvida. Quem encontrar qualquer forma de transpor o muro da solene indiferença com que a população é tratada concorre a um saco de ração premium de 15 quilos!

Algumas perguntas não querem calar na minha cabeça. Onde estão os fiscais do Conselho para verificar as condições higiênicas e o tipo de ingredientes usados por muitos fabricantes de ração para cães e gatos e para afiançar que as promessas contidas nas embalagens e nos anúncios publicitários correspondem à verdade? Onde estão os auditores do Conselho para monitorar os preços escorchantes praticados pelos fabricantes de medicamentos veterinários, produtos de higiene e limpeza especializados, petiscos e acessórios e determinar se a relação custo-benefício é realmente satisfatória? Por que o conselho não se incomoda com a prática quase universal de misturar a administração de clínicas veterinárias com a de pet shops?

Cachorro 29A reação do presidente do Conselho paulista, ao reafirmar que não se pode considerar como de utilidade pública o atendimento gratuito se o profissional não estiver vinculado a uma ONG ou instituição de benemerência e ameaçar punir o “infrator”, lembrou-me a que teve um arcebispo da Igreja Católica em um caso famoso ocorrido no nordeste do Brasil há alguns anos. Uma menina de apenas 10 anos, estuprada pelo próprio padastro, havia engravidado. Aflita, a mãe da garota procurou um ginecologista para se aconselhar. O médico garantiu à mulher que a gestação era de alto risco, já que o corpo esquálido da menina não conseguiria sustentar o feto até o final da gravidez. Concordaram ambos que o melhor caminho a ser seguido seria um aborto. A mãe, penalizada e indignada, autorizou a cirurgia. Quando o sacerdote soube do acontecido, resolveu excomungar de uma só penada a mãe, a menina e o médico. Ao ser interpelado sobre a razão de haver excluído o agressor da pena de excomunhão, candidamente alegou que o crime por ele cometido era de menor gravidade, já que não atentava contra a vida.

Na minha santa ingenuidade, eu acreditava que os ministros da Igreja Católica eram escolhidos para defender a alma de seus fiéis e não seus corpos. Como convencer, então, uma autoridade eclesiástica de que o que havia ocorrido era, na verdade, o assassinato de uma alma infantil? Fiquei tão indignada naquela ocasião quanto estou agora. Da mesma forma, eu ingenuamente acreditava que a missão do Conselho era defender o bem-estar animal e não proteger humanos acomodados de eventual “concorrência desleal”. Será que o código de ética da categoria não contempla nem penas por omissão de socorro, como acontece com médicos de gente? Recorri até ao dicionário para tentar entender os meandros semânticos da expressão “utilidade pública” e constatei, horrorizada, que é de fato preciso que o governo reconheça o caráter benemérito de uma instituição (não pessoa) para conceder a ela algumas regalias.

Cachorro 28Pensando bem, faz sentido, ao menos no que tange à lógica humana e à lógica comercial. Nossas leis também não são feitas para premiar os justos e os de bom coração, mas sim para impedir o avanço dos oportunistas e malfeitores. O que é de estranhar ‒ e lamentar amargamente ‒ é que os dignos representantes do Conselho de Medicina Veterinária não tenham aprendido nada com seus clientes e pacientes. Se um dia eles não tiverem nada mais importante para fazer, aconselho que assistam a milhares de vídeos que circulam todos os dias na internet a respeito de ética animal.

Auxiliar semelhantes – sejam eles da mesma espécie ou não – em situação de fragilidade ou de perigo iminente, mesmo que para isso seja preciso oferecer a própria vida, é cláusula pétrea de toda Constituição animal.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Por via terrestre

José Horta Manzano

Anteontem o mundo ficou sabendo que, ao retornar do exterior por via terrestre, residentes no Brasil passavam a ter seu direito a importar sem impostos amputado de metade. O limite de valor da isenção tributária ― que já era baixo ― encolhia de 300 a 150 dólares.

Jornais paraguaios expressaram seu pesar. Tanto o ABC Color quanto outros portais. Para nosso pequeno vizinho, as divisas despejadas por compristas brasileiros são importantes.

Ontem, catapimba! Deu-se o dito pelo não dito. Em 24 horas, tivemos ordem e contraordem. Mais um assombroso improviso de nosso lamentável Executivo. A decisão amadorística terminou, como não podia deixar de ser, num desastre para a imagem de seriedade que o governo apreciaria(?) projetar.

A segurança jurídica é um dos sustentáculos da democracia e um dos atributos maiores dos países civilizados. Por que é que grandes empresas mundiais estabelecem sua sede ou sua base de operações neste ou naquele país? Os critérios são múltiplos. Entre eles, está naturalmente a facilidade de encontrar mão de obra e funcionários especializados. Tamanho do mercado, eficiência da infraestrutura e vantagens fiscais também contam. Acima de tudo, porém, paira a segurança jurídica ― a razoável certeza de que leis e regras não serão mudadas da noite para o dia.

Fronteira Brasil-França (Amapá-Guiana Francesa)

Fronteira Brasil – França    (Amapá – Guiana Francesa)                                                                                    imagens Google

Alguém imagina uma multinacional estabelecer sua central de operações na Venezuela ou na Argentina? Impensável. São países atormentados por um ordenamento jurídico ondulante, imprevisível, sinuoso, inseguro.

O recado que o Brasil passa ao mundo com esse tipo de vaivém jurídico é negativo e extremamente prejudicial a nossa imagem no exterior.

É verdade que já não nos enxergam como país confiável. Mas também não precisa confirmar essa deficiência a todo momento. Pra que exagerar? O caso em pauta deixa evidente que 24 horas de reflexão teriam bastado para evitar o vexame.

Interligne 18e

Obs: A regra trata de chegada ao Brasil por via terrestre, o que exclui transporte aéreo e marítimo. Fico curioso para saber como são tratados os viajantes que retornam a Tupiniquínia por via fluvial. Entre outros pontos de passagem de nossa longa fronteira, há, por exemplo, uma linha regular de balsa entre St-Georges (Guiana Francesa, França) e Oiapoque (Amapá, Brasil). Os passageiros, navegando pelo Rio Oiapoque, não entram por via terrestre. Como é que fica?