Holanda versus Turquia

José Horta Manzano

Para federar um povo e obter apoio unânime, nada como apontar um inimigo comum. Todos têm de sentir que o orgulho nacional está ameaçado. Se a ofensa vier de fora do país, melhor ainda. A ideia não é nova. Desde sempre ‒ especialmente de um século para cá ‒, tem sido utilizada com esperteza por mandachuvas. Alguns usam do artifício com esmero, enquanto outros são mais desajeitados.

É inconstestável o sucesso de um Adolf Hitler, que conseguiu cristalizar em torno de sua figura a quase totalidade do povo alemão ao apontar os judeus como origem e causa de todos os males nacionais. Stalin foi outro que se sustentou durante décadas no topo do poder culpando imaginários “inimigos do povo”. Assim também agiram Chávez e os bondosos irmãos Castro ao designar o “império“ como inimigo prestes a destruir o país.

Países Baixos e suas províncias

Uma ditadura argentina decadente valeu-se dessa estratégia em 1982. Passou a ideia de que o país estava sendo vilipendiado pelo Reino Unido, que ocupava havia século e meio um naco do território nacional. A Guerra das Malvinas logrou apoio popular mas terminou num desastre militar que acabou por levar de cambulho o que restava de ditadura.

Em nosso país, bem que Nosso Guia & clique fizeram o possível e o impossível para cindir os brasileiros entre “nós“ e “eles“, noções vagas e nunca explicadas que cada um entendeu como quis ou como pôde. Não tendo convencido, a estratégia acabou não dando certo. Aliás, em matéria de estratégia, o lulopetismo mostrou-se particularmente manquitola.

A Holanda ‒ que convém chamar de Países Baixos, dado que Holanda é o apenas o nome das duas mais importantes regiões do país ‒ atravessa momento crítico. Daqui a dois dias, os eleitores vão às urnas renovar a câmara de representantes. Um certo Herr Wilders, candidato de extrema-direita, ameaça balançar o coreto. Suas ideias e propostas são radicais e drásticas. Entre elas, a proibição pura e simples de praticar a religião maometana, veja só. É improvável que consiga maioria no parlamento, mas pode baralhar a política do país.

Modesta refeição do ministério turco

A Turquia também atravessa momento complicado. O presidente Erdoğan convocou os eleitores para um plebiscito que terá lugar mês que vem. A intenção é mudar a Constituição eliminando o cargo de primeiro-ministro e transformando o regime em presidencialista, o que dará imenso poder ao quase-ditador. As pesquisas não são lá muito animadoras, razão pela qual cada voto importa.

Milhões de turcos vivem no estrangeiro, inclusive nos Países Baixos. Para motivá-los a votar «sim», o governo turco tem mandado ministros e emissários organizar comícios eleitorais em países europeus. Para reforçar, decidiram usar a velha tática de designar um «inimigo» externo. Escolheram a Holanda. Cavando um pretexto qualquer, dispararam palavras agressivas contra o governo de Haia. Para não levar desaforo pra casa ‒ o que daria votos ao candidato de extrema-direita ‒, o governo holandês viu-se na obrigação de tomar medida forte: proibiu a entrada no país de ministros turcos.

Ministra turca expulsa dos Países Baixos

Foi a conta. A Turquia e os Países Baixos estão em pé de guerra. A mídia, naturalmente, alimenta a polêmica. Redes sociais fervilham. A bandeira holandesa do consulado em Istambul foi arrancada e substituída por bandeira turca. A Turquia promete represálias ‒ que ninguém imagina quais possam ser.

Tudo não passa de encenação, mas o povão acredita, e é isso que importa. Por um lado, a movimentação tem servido à causa do presidente turco, que aumenta seu capital de votos. Por outro, está servindo também ao atual governo holandês, que demonstra ser capaz de defender-se sem entregar as rédeas à extrema-direita.

Entre mortos e feridos, salvar-se-ão todos. (Uma mesoclisezinha de vez em quando não faz mal a ninguém.)

Lá vêm os holandeses

José Horta Manzano

Aqui na Europa, principalmente nos países mais quentes, a chegada da primavera é anunciada pelo alongamento dos dias, pelo chilrear dos passarinhos, pelas folhas que brotam dos troncos nus das árvores e… pela chegada dos holandeses.

Caramujo 2Todos os europeus dão grande valor à chegada dos dias de sol e calor. É compreensível. Após 7 ou 8 meses de frio, vento, neve, gelo, chuva e céu cinzento, o sol é recebido com reverência.

É costume tirar férias no período que vai de maio a setembro. Quem estiver com a carteira mais recheada toma um avião e embarca para algum destino longínquo, tipo Tailândia ou República Dominicana. Volta com munição para fazer vizinhos babarem de inveja. Quem estiver menos abonado escolhe um pacote para Malhorca ou para a Turquia. O sol e o calor são garantidos e acaba saindo mais em conta.

Por alguma razão que desconheço, os simpáticos holandeses têm especial predileção por deslocar-se com a casa nas costas, feito caramujo. De maio a setembro, as estradas europeias ficam coalhadas de veículos que servem de meio de transporte e de casa ao mesmo tempo. Conforme a língua, têm nome diferente: trailer, motor-home, caravane, camping car, remolque, Wohnwagen, camper. Os portugueses costumam dar-lhe o sugestivo nome de casa móvel.

Caravane 1É incrível como país tão pequeno consegue exportar tantos viajantes, cada um com a família no trailer. Vêm quase todos para o sul: França, Itália, Espanha, Portugal, Grécia, Croácia. São simpáticos, os holandeses. Povo alegre, exuberante, daqueles que falam alto, riem muito, são bons copos em qualquer reunião. Gente alta, corpulenta e extrovertida.

Acampamento holandês

Acampamento holandês

Dizem as más línguas que os comerciantes não os apreciam particularmente. É que parece que, tirando a água e o pão, já trazem todos os mantimentos de casa. Assim, não apresentam grande interesse para quitandeiros, feirantes e hoteleiros. Não posso confirmar, estou-lhe vendendo o peixe pelo preço que paguei.

Fiquei surpreso quando soube que um grupo de bravos batavos(1) havia atravessado o Atlântico para se estabelecer temporariamente em São Paulo a fim de trazer apoio à seleção holandesa de futebol. Ainda mais surpreendido fiquei quando soube que a onda laranja(2) havia montado acampamento à beira da Represa Guarapiranga, nas cercanias da cidade. Acampar em São Paulo!

Enfim, cada um tem direito de armar sua barraca onde bem lhe aprouver. Isso tudo deixa uma certeza: vão faltar alguns holandeses nas estradas europeias este verão.Interligne 18c

(1) Batavo é o outro nome que se dá aos holandeses. Quem quiser variar pode usar também neerlandeses.

(2) Sabe por que o uniforme deles é cor de laranja? Porque os soberanos dos Países Baixos pertencem à dinastia de Orange-Nassau. A origem do nome Orange é bem antiga e tem a ver com a cidadezinha de mesmo nome, situada no sul da França. Mas essa já é uma outra história. Entre orange e laranja, ninguém duvidou: a cor tornou-se símbolo do país. E tingiu o uniforme dos jogadores.

Lá como cá

José Horta Manzano

A cidade de Bruges fica na provícia de Flandres Ocidental, no norte da Bélgica. Seus canais lembram uma ultraconhecida cidade italiana, daí seu apelido de Veneza do Norte. Na região fala-se flamengo, um dos dialetos do holandês. Cá entre nós, holandês é apenas o nome popular do idioma. Quem quiser se exprimir corretamente e impressionar diga neerlandês.

Aliás, o verdadeiro nome da língua é, realmente, neerlandês. Holanda do Norte e Holanda do Sul (Noord-Holland e Zuid-Holland) são duas das doze províncias que compõem o Reino dos Países Baixos. São as mais importantes, é verdade, mas não as únicas. Dizer que a língua do país é o holandês equivale a dizer que os brasileiros falam carioca. É inapropriado.

Na periferia de Bruges fica a cidadezinha de Zedelgem, pouco mais de 20 mil habitantes, um daqueles lugares pacatos, onde pouca coisa acontece. A vila é mais conhecida por seu edifício medieval, o lindíssimo Castelo de Baesveld. A quem interessar possa: o monumento pode ser alugado para casamentos e outras celebrações. Informações na prefeitura.

Castelo de Baesfeld, Bélgica Crédito: belgiumview.com

Castelo de Baesfeld, Bélgica
Crédito: belgiumview.com

Algo fora do comum aconteceu estes dias no tranquilo vilarejo. Caiu uma chuva de dinheiro. Nada de sobrenatural, vou contar-lhes como ocorreu. Deu na televisão.

Um assalto ― coisa rara naquelas bandas ― deu errado. Malfeitores se apoderaram de dois cofres-fortes e os embarcaram num furgão. Assim que se puseram a escapar do lugar do crime, perceberam que estavam sendo seguidos pela polícia.

Para atrapalhar os que os perseguiam, atiraram um dos cofres no meio da rua, com o carro em movimento. Com o choque, a caixa-forte se partiu e uma chuva de notas atapetou a rua principal. Notas verdes de 100 euros caindo do céu? A Bélgica é país chuvoso, por certo, mas em princípio o que costuma cair é água fria. A população nunca tinha assistido a espetáculo tão fascinante.

A Bélgica não é conhecida por abrigar gente desonesta, mas, sacumé, a ocasião faz o ladrão. Quem pôde, saiu à rua para catar nem que fosse algumas notas. Parece até que uma distinta senhora chegou ao local empunhando uma vassoura, para racionalizar e apressar a preciosa colheita antes que algum aventureiro lançasse mão.Ladrão

A polícia conseguiu recuperar boa parte do butim, assim mesmo faltava meio milhão de euros. O prefeito do lugarejo, cioso da fama de honestidade de seus governados, teve uma ideia: mandou instalar uma espécie de caixa de cartas onde cidadãos arrependidos poderiam inserir, de forma anônima, as cédulas surrupiadas.

A emenda saiu pior que o soneto. Na calada da noite, outros ladrões vieram e levaram… a caixa de cartas. Com seu conteúdo, naturalmente.

Lá como cá…