Ingressar no trem

Ingressar no trem

José Horta Manzano

Este blogueiro é do tempo em que, no Brasil, ainda se viajava de trem. Que não se assuste o distinto leitor! Não estamos falando do tempo de Matusalém. Já havia sido inventado o motor a explosão, que diacho! Chevrolets, Buicks e Studebakers congestionavam as ruas. Constellations, Caravelles e DC-8s cruzavam os céus. Ônibus interestaduais se aventuravam pelas poucas (e perigosas) estradas de rodagem, nem sempre asfaltadas.

Assim mesmo, talvez pela inércia do costume, ainda se viajava de trem. Não valia a pena apanhar trem para certos percursos, que de ônibus chegava-se muito mais rápido. Mas havia lugares aonde, simplesmente, ônibus não chegava.

Pra ter direito a viajar, o passageiro tinha de comprar um bilhete. Na verdade, o nome completo era “bilhete de passagem”, que o povo acabou encurtando pra passagem. Sem bilhete, ninguém podia viajar – com exceção do maquinista e do pessoal de bordo, incluindo aquele senhor que vinha picotar as passagens.

Faz muito tempo que, em nome do progresso e por força dos lobbies petroleiro e automotivo, o trem foi perdendo status e acabou morrendo de inanição, o coitado.

Bom, pra quem não sabe, há terras em que ele continua sendo o meio de transporte preferencial, quando não único. Na Europa, por exemplo, é assim. Implantam-se novas linhas, de alta velocidade ou não. Acrescenta-se uma terceira via a trechos muito frequentados, que só contavam com duas. Viajar de trem continua na moda.

A reportagem do Estadão diz que novo trem leva turistas pra um passeio em região frutivinícola. Dá também o preço do ingresso. Quando li essa palavra, aplicada a viagem ferroviária, engasguei. Como é que é? Ingresso no trem? Não é assim que se diz. Compra-se ingresso para entrar em cinema, museu, ‘concerto’ de pop star. Para comprar o direito de viajar de trem, não é o termo mais adequado.

Quando vejo algo fora de lugar, gosto de dar uma espiada na fonte. Fui ao site que propõe as excursões. Lá me dei conta de que “ingresso” é liberdade tomada pelo jornal. No original, a palavra utilizada é “ticket”. Ai, meu São Benedito!

Não sei se será por chiquê ou por falta de conhecimento mesmo. Não se vende mais bilhete ferroviário. O chefe do trem não entra mais no vagão gritando “Mostrar as passagens, faz favoooor!” Os dois termos estavam com cheiro de naftalina. A sociedade organizadora preferiu desempoeirar. “Ticket”, que soa estrangeiro, é tããão mais atual, não é mesmo?

Abrindo fronteiras?

José Horta Manzano

O decréscimo de virulência da covid-19 permite a países europeus programar a reabertura de fronteiras. Por definição, fronteira é uma linha arbitrária fixada para separar dois Estados. Para fechá-la, basta a decisão de um deles: se a estrada estiver barrada por vontade de um dos lados, ninguém passa. Já para abrir, precisa que ambos os países estejam de acordo. Dito assim, parece fácil de entender. Na prática, pode ser um pouco mais complicado.

No fim de semana que passou, um curioso desentendido se estabeleceu entre a Suíça e a Itália, vizinhos de parede. Há que saber que a linha que separa os dois países, com 740km de extensão, é a mais longa fronteira externa das 6 com que conta a Itália, e também a mais longa das 5 com que conta a Suíça. Ela é cortada por uma dezena de estradas de ferro e várias dezenas de estradas de rodagem – sem mencionar os incontáveis caminhos, trilhas e passagens a pé.

A fronteira está fechada há dois meses. É compreensível: cada país já estava sobrecarregado com a pandemia no próprio território e não desejava importar mais doença. Passado o pico do contágio, vai chegando a hora de reabrir as passagens. Faz alguns dias, a Suíça anunciou que, em 15 de junho, liberaria a fronteira com a Alemanha, a França e a Áustria; a Itália, país mais gravemente infectado, ficou pra mais tarde.

Fronteira entre Chiasso (Suíça) e Como (Itália)

No entanto, este fim de semana, o governo de Roma subitamente informou que todas as fronteiras da Itália serão reabertas dia 3 de junho. Desapercebidos de que toda fronteira tem necessariamente dois lados, não consultaram os vizinhos. Ofendido, o governo suíço já avisou que mantém o que havia decidido: nenhuma abertura antes de 15 de junho.

Armou-se uma situação curiosa. O governo suíço não se opõe ao desejo de quem quiser sair do país em direção à Itália, já que a fronteira está aberta do lado de lá. Logo, sair pode, o que não pode é voltar. Portanto, a partir de 3 de junho, quem quiser cruzar a fronteira no sentido Suíça-Itália pode fazê-lo livremente. No entanto, quem quiser voltar vai encontrar portão fechado até segunda ordem.

Taí o que se chama viagem sem volta. Atenção, turista incauto, quem avisa, amigo é!

Briga

José Horta Manzano

A animosidade entre cidadãos, por razões político-ideológicas, é herança nociva da passagem do lulopetismo pelo topo do poder. Talvez seja o mal maior causado ao país por aquele bando de gananciosos. Diferentemente de uma crise econômica, que tem conserto, a cicatriz deixada por quinze anos de ‘nós x eles’ vai demorar pra desaparecer – se é que desaparecerá um dia.

A insistência nesse discurso excludente deu origem a disputas que se infiltraram no seio de famílias. Até hoje, tem pai que não fala com filho. Amizades se desfizeram. Vizinhos viram a cara um pro outro. Essa herança, sim, pode ser qualificada de maldita. Não pesou no bolso dos brasileiros: atingiu-lhes a alma. O ambiente belicoso deu margem a muita briga.

Briga é palavra interessante. Etimologistas atribuem-lhe origem celta. Fora de dúvida, é pré-romana, utilizada há milênios. Está presente em numerosas línguas europeias. O significado não é idêntico em todas elas, mas sempre gira em torno da noção de litigar, combater, disputar, incomodar, quebrar, despedaçar.

É parente do alemão brechen (quebrar), do sueco bråka (lutar), do inglês break (quebrar). Em francês, briguer é disputar (uma promoção, por exemplo). O mesmo significado tem o italiano brigare. O espanhol bregar tem o mesmo sentido de nosso conhecido brigar. É interessante notar que a raiz aparece até em serbo-croata (брига = briga), que significa preocupação, distúrbio.

Há controvérsia, mas muitos acham que os celtas diziam brig ou briga para designar uma cidade fortificada. Assim, Coimbra, cujo nome originário era Conímbriga, faz parte da família. Há uma cidadezinha na Suíça chamada Brig. Devia ser fortificada desde tempos antiquíssimos porque está situada em lugar estratégico. Fica ao pé da estrada de montanha que conduz ao Colo do Sempione(*), a rota mais utilizada para atravessar os Alpes antes que perfurassem túneis.

Não por razões de ideologia do governo, mas devido ao Brexit, que rachou o país em dois, praticamente todos os britânicos perderam algum amigo de dois anos pra cá. São as brigas que estouram nos pubs depois de algumas canecas de cerveja.

Mas há uma diferença fundamental entre britânicos e brasileiros. Em Londres, os campos do ‘nós’ e do ‘eles’ estão perfeitamente delineados. Os cidadãos pró-Brexit estão de um lado e os anti-Brexit, do outro. Já no Brasil, o ‘nós x eles’ foi criação artificial, de geometria variável. A linha demarcatória entre os dois campos é nebulosa, podendo se modificar e variar dependendo da conveniência de quem discursa.

(*) Colo, palavra pouco utilizada em nossa língua, indica a parte mais baixa entre dois picos de uma cadeia de montanhas. É passagem propícia para a construção de estrada. Tem significado próximo de garganta, desfiladeiro.

Páscoa e passagem

José Horta Manzano

Muito antes que o primeiro humano se equilibrasse sobre dois pés, a Terra já estava lá naturalmente. E também o ciclo da natureza que se renovava a cada ano. Dizem os cientistas ‒ e, certamente, terão razão ‒ que os primeiros hominídeos surgiram no continente africano. Faz sentido. Desprovidos do pelame de um urso e da independência de uma águia, os humanos só podiam ter aparecido em terras tropicais sob clima quente e clemente.

O aumento da população, a escassez da caça, secas devastadoras impeliram os primeiros grupos a migrar. Muitas e muitas gerações depois de Lucy, os primeiros bandos alcançaram territórios mais ao norte onde o clima já não era marcado pela alternância de estações secas e úmidas, mas por uma estação quente e confortável, seguida por um período frio e agressivo.

As novas condições eram bem diferentes da suavidade tropical, mas os humanos já haviam desenvolvido novas capacidades. O uso de utensílios, o domínio do fogo e, finalmente, a invenção da agricultura permitiram a sobrevivência nos novos territórios. A adaptação não deve ter sido fácil nem rápida. Muitos milênios hão de ter corrido, mas o homem acabou por amoldar-se às novas condições. A prova maior dessa acomodação é o fato de estarmos aqui ainda hoje.

No verão, a vida é mais suave. A caça é farta. A agricultura nutre os viventes. Na estação fria, a paisagem é outra. A neve pode ser linda em cartão postal, mas os antigos temiam a chegada dos primeiros ventos gelados. As folhas caem. A vegetação adormece. A caça desaparece. Os dias encolhem. Se ainda hoje, com todo o conforto que o progresso nos legou, o inverno nos parece longo, fico a imaginar como deve ter sido para os humanos de milênios atrás. O fato é que a chegada da primavera, com pássaros cantando de novo e árvores vestidas de verde, traz um imenso alívio. A natureza renasce. A vida retoma a suavidade. É tempo de festa.

Desde as primeiras primaveras, os descendentes de Lucy sentiam-se animados com a volta dos belos dias. À medida que os homens foram desenvolvendo um sentimento de religiosidade, sentiram que era hora de agradecer a quem lhes devolvia a alegria de viver. Politeístas num primeiro momento, os agrupamentos humanos se habituaram a reunir-se em regozijo para comemorar o renascimento da natureza. Todos os deuses eram homenageados. Gregos, romanos, sumérios, egípcios sentiam a mesma euforia. Cada um desenvolveu maneira própria de demonstrar agradecimento. Fogueiras e sacrifício de animais foram as manifestações primitivas mais comuns.

O aparecimento do monoteísmo não eliminou o entusiasmo pela chegada da bela estação. Sacrifícios foram abolidos, abrindo espaço para práticas mais civilizadas.  O povo judeu insituiu o Pessach. O Êxodo e a travessia do deserto guardam uma inequívoca simbologia. A ideia de passagem está presente. Comemora-se o fim de um tempo de sofrimento e a chegada de uma era promissora.

Os cristãos seguiram na mesma linha. Escolheram o mesmo período do ano para fixar a Páscoa. O símbolo do renascimento continua presente na ressureição de Jesus, o nazareno. Não por acaso, chineses, turcos, curdos, persas e outros povos também elegeram a época do retorno da primavera para celebrar o renascimento, a renovação. Todos festejam um recomeço que traz consigo a promessa de uma vida melhor.

Que seja melhor para nós todos!

Boa Páscoa!

Lua de mel em Paris

José Horta Manzano

Você sabia?

Lua de mel em Paris! Taí um sonho que, acalentado por muitos, só chega a ser realizado por um punhadinho de sortudos. Milhões de apaixonados aspiram a celebrar o casamento ou, pelo menos, a festejar o enlace com passeio de alguns dias na capital francesa.

Casamento 2Orientais são particularmente afeiçoados a esse tipo de viagem simbólica. A Europa, por si, já exerce grande atração. Mas a França ― e Paris em especial ― é o fino do fino.

Todo ano, na bela estação (entre maio e setembro), tem-se notícia de casamentos individuais ou coletivos protagonizados por turistas estrangeiros que visitam a França especialmente para isso.

Mas há um porém. De uns dez ou quinze anos pra cá, a rigidez das autoridades de imigração tem aumentado. Isso é consequência de realidades novas: terrorismo que se alastra, imigração clandestina que aumenta, taxa de desemprego que se eleva, estagnação econômica que persiste. Em resumo, o bolo tem crescido menos. Já não dá pra dividi-lo em tantas fatias como antes. Visitantes têm de convencer os controladores de que não estão vindo para ficar.

Leio hoje a (des)aventura vivida por um casal brasileiro. A notícia não diz, mas imagino que devam ter arquitetado durante meses o projeto de se casar e, em seguida, passar a lua de mel em Paris. Compraram um pacote turístico, daqueles que já incluem passagem e hospedagem. Casaram-se e, tranquilos, embarcaram para a viagem dos sonhos. Deu pesadelo.

Ao desembarcar em Paris, nosso casal de pombinhos respondeu, como se deve, ao interrogatório dos prepostos. Verificação feita, o hotel onde deveriam se hospedar foi incapaz de confirmar a reserva. Desastre! Foi a conta. Estrangeiros jovens que não mostrarem reserva de alojamento, passagem de volta e dinheiro para manter-se tornam-se imediatamente suspeitos.

Casamento 1Inflexíveis, as autoridades obedeceram ao regulamento. Não permitiram que o par saísse do aeroporto. De lá mesmo, foram despachados de volta no primeiro avião. Dá pra imaginar a decepção.

Chegando ao Brasil, os viajantes, lesados e desenxabidos, processaram a operadora de turismo. Ganharam em primeira instância, mas a empresa recorreu da sentença. Finalmente, instância superior acaba de confirmar a decisão: a companhia de viagens está obrigada a indenizar os prejudicados. Receberão quase 24 mil reais, o triplo do valor do pacote.

A decisão de justiça me parece pra lá de acertada. A operadora de turismo, usando expediente comum no Brasil, tentou fugir da responsabilidade alegando que a culpa era do hotel. Pode até ser. Acontece que os viajantes tinham assinado contrato com a operadora, não com o hotel. Portanto, será a empresa turística a responder pelos percalços ― o que não a impede de mover ação contra o hotel posteriormente.

Nossos votos de felicidade ao casal!

Páscoa

José Horta Manzano

Muito antes que o primeiro humano se equilibrasse sobre dois pés, a Terra já estava lá, naturalmente. E também o ciclo da natureza que se renovava a cada ano.

Dizem os cientistas ― e, certamente, terão razão ― que os primeiros hominídeos surgiram no continente africano. Faz sentido. Desprovidos do pelame de um urso, da independência veloz de uma águia, das mandíbulas de um lobo, da faculdade de adaptação térmica de uma marmota, os humanos só poderiam ter aparecido em terras tropicais, sob clima quente e clemente.

O aumento da população, a escassez da caça, secas devastadoras impeliram os primeiros grupos a migrar. Muitas e muitas gerações depois de Lucy, os primeiros bandos alcançaram territórios mais ao norte.

O clima das regiões temperadas já não era mais marcado pela alternância de estações secas e úmidas, mas por uma estação quente e promissora, seguida por um período frio e inóspito.

As condições eram bem diferentes da suavidade tropical, mas os humanos já haviam desenvolvido novas capacidades. O uso de utensílios, o domínio do fogo e, finalmente, a descoberta da agricultura permitiram a sobrevivência nos novos territórios.

A adaptação não deve ter sido fácil nem rápida. Muitos milênios hão de ter corrido, mas o homem acabou por amoldar-se às novas condições. A prova maior dessa acomodação é o fato de estarmos aqui ainda hoje.

Nestes tempos de calefação central e luz elétrica, é preciso um esforço de imaginação para avaliar o efeito que a sequência inexorável das estações do ano produzia em nossos antepassados.Primavera

Aqueles que sempre viveram no lugar que foi um dia descrito como uma terra que, em que se plantando, dará tudo têm de fazer um esforço de imaginação ainda maior. Em terras europeias, asiáticas e no Oriente Médio não é bem assim.

No verão, a vida é mais suave. A caça é farta. A agricultura nutre os viventes. Na estação fria, a paisagem é outra. A neve pode ser linda em cartão postal, mas os antigos temiam a chegada dos primeiros ventos gélidos. As folhas caem. A vegetação adormece. A caça desaparece. Os dias encolhem. Se ainda hoje, com todo o conforto que o progresso nos legou, os invernos nos parecem longos, fico a imaginar como deve ter sido para os humanos de cinco ou dez mil anos atrás.

O fato é que a chegada da primavera, com pássaros cantando de novo e árvores revestidas de verde, traz um imenso alívio. A natureza renasce. A vida retoma a suavidade. É tempo de festa.

Desde as primeiras primaveras, os longínquos descendentes de Lucy sentiam-se felizes com a volta dos belos dias. À medida que os homens foram desenvolvendo um sentimento de religiosidade, sentiram que era hora de agradecer a quem lhes devolvia a alegria de viver.

Politeístas num primeiro momento, os agrupamentos humanos se habituaram a reunir-se em regozijo para comemorar o renascimento da natureza. Todos os deuses eram homenageados. Gregos, romanos, sumérios, egípcios sentiam a mesma euforia. Cada um desenvolveu sua própria maneira de demonstrar agradecimento. Sacrifício de animais e fogueiras foram as manifestações primitivas mais comuns.

O aparecimento do monoteísmo não eliminou o entusiasmo pela chegada da bela estação. Sacrifícios foram abolidos, e práticas mais civilizadas ocuparam o espaço.

Os judeus insituíram o Pessach. O Êxodo e a travessia do deserto guardam uma inequívoca simbologia. A ideia de passagem está presente. Comemora-se o fim de um tempo de sofrimento e a chegada de uma era promissora.

Os cristãos seguiram na mesma linha. Escolheram o mesmo período do ano para fixar a Páscoa. O símbolo do renascimento continua presente na ressureição de Jesus, o nazareno.

Não por acaso, chineses, turcos, curdos, persas e outros povos também elegeram a época do retorno da primavera para celebrar o renascimento, a renovação. Todos festejam um recomeço que traz consigo a promessa de uma vida melhor.

Que seja melhor para nós todos!

Boa Páscoa!